No final de julho de 2018, o eleitorado de Zimbábue participou maciçamente na primeira eleição subsequente ao golpe militar que levou à renúncia do então presidente, Robert Gabriel Mugabe, que governara o país desde a independência em 1980. O que segue é um relato muitíssimo pessoal sobre esse evento extraordinário no contexto de uma história que, muito parcialmente, vivi, na década de 1960, como jovem antropólogo fazendo a sua primeira pesquisa de campo, e depois como representante da Fundação Ford, entre 1989 e 1993. Meu ponto de vista é também temperado por uma “fase britânica”, o meu nascimento, criação e formação acadêmica, e uma “fase brasileira”, de 1970 para o presente, mais que metade da minha vida, portanto.
Do Brasil, tentava acompanhar os eventos em Zimbábue da melhor maneira possível, mas sempre com muita dificuldade. Nessa época, não havia internet e dependíamos dos lentos correios e caríssimos telefones para contatos com o exterior.
Ao longo da década de 1970, dois partidos nacionalistas travaram uma guerra de guerrilha contra os brancos: a União Nacional Africana do Zimbábue (ZANU), com sua ala militar, o Exército de Libertação Nacional Africano de Zimbábue (ZANLA), liderado por Robert Mugabe, e a União do Povo Africano do Zimbábue (ZAPU), com seu Exército Revolucionário do Povo do Zimbábue (ZIPRA), liderado por um dos mais antigos e respeitados entre os líderes nacionalistas, Joshua Nkomo. Mugabe era da etnia shona e Nkomo, da etnia ndebele.
Essa guerra foi conhecida como a segunda chimurenga. Com razão pois, como tinha previsto durante a minha pesquisa, e bem documentado por David Lan no seu livro Guns and Rain, contou com a importantíssima participação dos antepassados, como a primeira chimurenga. Crescendo muito, predominantemente nas zonas rurais mas também com incursões rápidas em algumas cidades, e sobretudo após a independência de Moçambique em 1975, a guerra encerrou-se apenas em 1979 com um acordo de paz assinado em Londres.
O acordo resultou numa nova constituição democrática e incluiu a criação de um programa de reforma agrária na base de “willing seller, willing buyer” (“vendedor com vontade de vender, comprador com vontade de comprar”). O custo dessas transações seria subsidiado por um fundo estabelecido pelo governo britânico que somou um total de US$ 44 milhões. O acordo também estipulou que a nova constituição e o programa de reforma agrária só poderiam ser modificados depois de 1990.
Na primeira eleição com sufrágio universal, em 1980, Mugabe foi eleito primeiro-ministro com 1.668.992 votos, contra 638.879 para seu velho rival Joshua Nkomo. Em 1987, tornou-se presidente, quando a presidência puramente cerimonial foi alterada para uma presidência executiva. A rivalidade entre Mugabe e Nkomo persistiu e foi assumindo feições étnicas, como um conflito entre os shona e os ndebele. Entre 1984 e 1987, Mugabe lançou uma campanha (gukurahundi) contra os chamados “dissidentes”, supostamente veteranos do ZIPRA.
Mais de 20 mil pessoas na província de Matabeleland, território de predomínio dos ndebele, foram massacradas pela quinta brigada do Exército de Zimbábue, treinada por norte-coreanos e coordenada por Emmerson Mnangagwa, subordinado e confidente de Mugabe. Com a oposição virtualmente eliminada, Mugabe fez Nkomo e a ZAPU se incorporarem ao seu partido, agora chamado de União Nacional Africana do Zimbábue – Frente Patriótica (ZANU-PF).
Em 1989, tive a oportunidade de voltar para o Zimbábue, agora independente , onde fui responsável pela abertura de um escritório da Fundação Ford na capital, Harare. Imbuído do mesmo entusiasmo que tinha tido na década de 1960, me meti a reaprender chishona, conseguindo fazer o discurso nessa língua no ritual da inauguração do escritório da Fundação. O evento contou com a presença do então vice-presidente Joshua Nkomo, que eu tinha visitado quando ele foi preso no campo de detenção de Gonakudzingwa, no extremo leste do país, quase na fronteira com Moçambique, em 1966.
Joshua Nkomo, no campo de detenção de Gonakudzingwa, em novembro de 1964, recebe as visitas de Judith Todd, filha de Sir Garfield Todd, ex-primeiro-ministro da Rodésia do Sul, e do estudante Steve Lombard
Peter Fry (de óculos escuros) visita Nkomo em Gonakudzingwa, em novembro de 1964
Nos primeiros meses, o país me parecia próspero, com as estradas tão maravilhosamente livres de buracos como no período colonial. Embora a população branca tivesse diminuído de aproximadamente 300 mil antes da independência para 80 mil, quase 500 grandes fazendeiros predominantemente brancos continuaram a produzir tabaco, algodão, milho, proteína animal etc., que alimentavam a população e as indústrias de transformação e que geravam valiosas divisas através da exportação. Os poucos que conheci eram muito diferentes dos que imaginava antigamente. Mostraram-me orgulhosamente as habitações e escolas que construíram para os seus trabalhadores, bem como me explicaram os seus esquemas de incorporar os pequenos agricultores locais nos mistérios do cultivo de produtos para exportação como flores e tabaco.
O trabalho da Fundação me levava a ver projetos interessantíssimos, talvez o mais interessante sendo “Campfire”. De acordo com a voga de desenvolvimento sustentável, então na sua infância, este projeto procurava garantir a preservação do meio ambiente e dos animais selvagens no vale do rio Zambezi com a permanência, participação e desenvolvimento das comunidades humanas da área. As plantações eram protegidas dos elefantes por uma cerca elétrica alimentada por energia solar. Os técnicos do governo estimavam quando era necessário o abate de elefantes para manter os rebanhos de tamanho adequado para a área – e os milionários caçadores da Europa e dos Estados Unidos foram recebidos para satisfazer suas vontades mortíferas a preço de ouro, que revertia para a comunidade.
A concepção deste projeto foi de um antropólogo que conhecera na minha primeira visita a Zimbábue. Ao ler os relatórios do projeto, vi que a atuação dele simplesmente não constava, mesmo sendo o autor intelectual e o pivô que ligava todos os seus componentes, isto é, a comunidade, o Estado, a companhia de turismo e os bancos. Ele me disse, sempre genuinamente modesto, que não queria que seu papel fosse reconhecido nos documentos oficiais. Eu achava que teria sido melhor registrar a importância do velho antropólogo branco. Mediadores como ele, fora dos nexos políticos e de parentesco locais, podem ter atuações cruciais. Mas não era e continua não sendo de bom tom fazer esse tipo de observação no mundo dos desenvolvimentistas profissionais. Afinal, eles têm forte interesse em demonstrar que todos os seus projetos emanam do povo.
John Conradie em uma caverna com pinturas rupestres no Zimbábue, em 1992
Algo semelhante ocorreu com meu velho amigo John Conradie, aquele que passou 13 anos na cadeia de Smith. Uma vez solto, ele trabalhou um par de anos com cooperativas que não funcionaram muito satisfatoriamente – e registrou a ironia de que, para uma cooperativa funcionar bem, deve existir uma noção muito clara e generalizada da responsabilidade individual. Em seguida, fundou uma série de pré-escolas para filhos e filhas de trabalhadores nas fazendas locais. Seu programa andou maravilhosamente bem até a agencia de desenvolvimento holandesa que apoiava o projeto exigir uma governança mais “democrática”. Em dois anos, o projeto entrou em colapso, afundado num pântano de acusações mútuas de toda ordem entre os funcionários que compuseram a nova diretoria democrática.
No plano cultural, a bela tradição musical de Zimbábue, dominada naquele momento por Thomas Mapfumo e Oliver Mutukudzi, continuava a abrir novos caminhos entre as tradições locais e de fora. E, no vetusto Ballet Nacional de Zimbabwe, que antes treinava as filhas dos colonizadores para ingressar nas salas de aula do Ballet Real de Londres, a direção atraiu jovens bailarinos negros e incorporou música zimbabuana no repertório. Conseguir meninas negras foi mais difícil, por conta da ideia geral de que mulheres no palco são de “moral duvidosa”.
Além disso, a educação primária tinha sido universalizada e a Universidade de Zimbábue seguia na sua tradição de ensino e pesquisa de qualidade. Parecia, então, que o jovem país desmentiria a profecia sombria da Frente Rodesiana [veja o Capítulo 1]. Certamente não era igual àquela sociedade colonial hiper-organizada, cartesianamente esquadrinhada e controlada que conhecera em 1965, mas parecia continuar propiciando uma vida bastante agradável aos brancos fazendeiros e negros africanos mais educados, mantendo um padrão de vida não muito diferente daquele que observara durante a minha pesquisa de campo para o pessoal mais pobre, sobretudo os que moravam nas áreas rurais.
Mas, mesmo assim, escutavam-se algumas vozes de gente que achava que comia mais pão na época colonial. Com o passar do tempo, fui ficando gradualmente mais preocupado, sobretudo depois da minha visita à terceira aldeia onde tinha morado vinte anos antes, para encontrar Amai Sheke (em Zimbábue, é comum uma mulher deixar de ser conhecida pelo seu nome próprio depois do nascimento do primeiro filho, no caso, Sheke). Amai Sheke era mulher do meu amigo Nestor – que, eu sabia, morrera em 1979 ou 1980.
Nestor e Amai Sheke, junho de 1965
Nestor, um grande construtor, colocara o telhado na casa vizinha, onde eu moraria. Comprei os eucaliptos e feixes de palha e fui passar duas semanas na cidade, imaginando meu futuro chalé rústico. Na volta, a decepção! Minha casa tinha um chapéu de latas de zinco que, além de feias e quentes, naquelas bandas sinalizavam grande riqueza. “Meu Deus, Nestor,” exclamei, “o que é isso?”. Ele olhou-me sem pestanejar: “Peter, talvez você não perceba com clareza, mas vivemos em tempos de grande conflito e tensão. Uma casa com teto de palha acaba em segundos quando pegar fogo. Para evitar qualquer perigo, resolvi te dar emprestadas minhas latas de zinco, que comprei um tempo atrás para um dia construir uma nova casa para a minha família dormir.” Arrasado, balbuciei minhas desculpas, sabendo que tinha ganho um amigo e tanto. Naquela aldeia, passei os meses mais felizes da minha pesquisa de campo.
Mas volto à minha visita, em 1989. Comprei cobertores para Amai Sheke e peguei o caminho de terra até a aldeia. Quando me viu, Amai Sheke ululou e me convidou para entrar na cozinha. Como fazem os homens, instalei-me no banco do lado direito da porta, enquanto ela batia palmas, cantarolava, dançava em volta do fogo no centro da casa exclamando “Nestor arimupenyu”, “Nestor is alive!”. Me dissolvi em lágrimas, e mais ainda quando Amai Sheke relatou a morte do seu marido. Acusado de ter se vendido ao exército de Nkomo, os soldados da ZANLA o colocaram num grande saco plástico e enterraram-no até morrer sufocado.
Um pensamento passou imediatamente pela minha cabeça, pensamento esse que ainda hoje me atormenta. Poderia ter sido morto, como tantos outros, por questões de discordância e/ou invejas locais? E tal inveja poderia ter se originado, em parte, devido ao fato dele ter sido meu amigo?
Nestor e Peter Fry, 1965
Esse evento foi mais que crítico na formação de um outro ponto de vista sobre o Zimbábue em geral e sobre o governo de Mugabe em particular. Em primeiro lugar, ficou cada vez mais claro que a primeira eleição foi ganha por Mugabe não apenas porque teria sido líder do exército que liberou o país, mas porque a ZANLA era campeã na produção de um clima de terror e medo em vastas áreas do país, superando a capacidade de amedrontar do outro exército, ZIPRA, e da polícia e do exército dos brancos. Em seguida, percebi que Mugabe herdou toda a legislação e todas as leis e o aparato policial de repressão criados durante o governo de Smith e seus antecessores para reprimir os partidos nacionalistas africanos. A Organização Central de Informação (CIO), por exemplo, continuava firme e forte. Deduzi que não teria havido uma revolução em Zimbábue, mas apenas uma rebelião.
As estruturas de comando e controle permaneceram intactas. Mudava-se apenas a raça dos donos do poder político e, até certo ponto, econômico. E, o que mais me entristeceu, foi observar que mesmo dez anos após a independência, negros e brancos continuavam mantendo pouquíssimo contato fora dos seus lugares de trabalho. Concomitantemente, os estereótipos raciais me pareciam quase tão fortes como antes. Me senti aprisionado, como masculino e branco, com pouco espaço para manifestar minha individualidade. Percebi a força enorme da história. Mantinha-se a segregação racial, instaurada através da legislação desde o início da colonização no final do século XIX e exacerbada no século XX. E tudo indicava que tardaria em ceder.
Essa sensação decorria, evidentemente, de implícita e explícita comparação com a minha experiência no Brasil. Mas também com Moçambique onde ia com certa frequência como parte do meu trabalho na Fundação Ford. Lá, havia uma classe média urbana multicolorida e não me senti nem privilegiado nem prejudicado pela minha brancura. Lá, inclusive, ouvi repetidamente um conselho que Samora Machel teria dado a Mugabe: “cuide bem dos seus branquinhos!”.
Escritório da Fundação Ford em Harare, em 1989
A situação começou a mudar em 1990, dez anos depois dos acordos de paz. Agora, Mugabe teria o direito de mexer com a constituição e o programa de reforma agrária. A desigual distribuição da terra tinha sido sempre o assunto dominante na luta pela independência. Durante minha pesquisa de campo, os membros dos partidos nacionalistas se denominavam orgulhosamente “sons of the soil” (vana vevu). E não sem causa, dada a enorme desigualdade racial na distribuição da terra. Com a densidade populacional aumentando de geração a geração devido às melhorias na saúde e na alimentação, as famílias nas reservas indígenas tinham cada vez menos terra – bastante desgastada também, aliás – para plantar e pastar os rebanhos.
Imagine tudo isso da perspectiva de uma típica moradora da reserva onde morei, como Amai Sheke, por exemplo. Ela cuidava do seu marido, da velha sogra, dos seus filhos e dos filhos órfãos de um cunhado. Além disso, junto com seus filhos, ela levava para pastar umas quatro ou cinco cabeças de gado e alguns cabritos, cuidava das suas galinhas e cultivava, com tração animal e sua enxada, milho, sorgo, amendoim, couve, abóboras, batata doce e legumes numa área de pouco mais de seis alqueires. Quando saía da reserva para visitar parentes em outros lugares ou para comprar algo na cidade próxima, passava por vastas fazendas “europeias” com suas sedes confortáveis, suas extensas plantações de milho e tabaco, cultivados com o uso de tratores, e trabalhadores africanos, entre eles, quem sabe, o seu marido e seus irmãos. A promessa dos partidos nacionalistas de restaurar aos seus donos originários a terra roubada pelo “povo sem joelhos” (vanhu vasina mabvi) calou fundo.
A expressão vanhu vasina mabvi é atribuída ao herói cultural Chaminuka que, antes da chegada da Coluna Pioneira, teria profetizado a vinda de um povo estranho. Não fazia referência à cor dessa gente, apenas ao fato de não terem joelhos.
Mas o programa de reforma agrária que fez parte dos acordos de paz de 1980 não tinha tido grande impacto e acreditava-se, à boca pequena, que a maioria das fazendas redistribuídas não teriam caído nas mãos das famílias mais necessitadas, mas sim, da nova elite negra. Isso, em particular, enfureceu os veteranos dos dois exércitos, ZIPRA e ZANLA. Esses tinham lutado com a expectativa de serem os primeiros a se beneficiarem da reforma agrária. No lugar disso, ficaram sem terras e em situação econômica precária. Para reivindicar direitos, fundaram em 1989 a Associação Nacional dos Veteranos da Guerra de Libertação do Zimbábue (ZNLWVA).
Embora a Associação só viesse a adquirir importância política maior a partir de 1997, ficou patente para o governo que havia um crescente desapontamento com a lentidão de mudanças, sobretudo no que dizia respeito à terra. Em 1992, o governo esboçou as primeiras mudanças na reforma agrária, aprovando um conjunto de leis que permitia a expropriação compulsória da terra. Ao mesmo tempo, Mugabe insuflou a sua retórica contra os brancos, elegendo o Reino Unido e os britânicos como seu inimigo preferencial. Acabou por atribuir ao governo britânico a responsabilidade pelo “fracasso” do programa de reforma agrária.
Concomitantemente, houve um ressurgimento do nacionalismo cultural. Enquanto Smith reivindicara o estatuto de defensor dos padrões ocidentais cristãos, Mugabe se posicionou como arauto da cultura africana. Ambos, cada um com seus motivos, confundiram deliberadamente raça e cultura no afã de fortalecer as suas posições de poder.
De fato, a “indigenização” passou crescentemente a fazer parte da ordem do dia, às vezes levada a limites extraordinários. Um dia, fui visitar um projeto para o cultivo de árvores indígenas, financiado pela Fundação Ford num distrito rural de Zimbábue. Para visitar o projeto saímos da aldeia, a uma distância de uns cem metros, até um quadrado delimitado por uma cerca de arame farpado, contendo uma série de tristes miniaturas de árvores indígenas meio atrofiadas. Quando levantei meus olhos para a aldeia de onde havíamos partido, vi as casas e celeiros devidamente enfileirados, intercalados por imensas e frondosas mangueiras (Mangifera indica, originária do Sudeste Asiático), amadas em todas as aldeias pela sua sombra e por suas frutas.
Contemplei a ironia e, mais tarde, no almoço, verifiquei que meus comensais acharam que as mangueiras eram também indígenas. Lembrei da minha antiga pesquisa, na década de 1960, quando presenciei a manipulação de importantes símbolos de indigineidade na esfera religiosa em tempos de nacionalismo cultural, uma prática precursora, quem sabe, do projeto que acabava de visitar. Entre os sinais que indicavam o processo que culminaria na transformação de um indivíduo em médium dos antepassados temos diversas alergias que acabavam por exigir a adoção de um estrito regime alimentar. Kenneth, meu assistente, por exemplo, simplesmente parou de comer a papa básica (sadza) feita de milho, admitindo apenas aquela feita com o sorgo (zvio), corretamente considerado indígena. O fumo do cigarro o deixava com enjôo e ele repudiava as cervejas lagers Lion e Castle, em favor da cerveja de sorgo cozinhada artesanalmente pelas mulheres nas aldeias.
Quando terminou meu contrato de quatro anos na Fundação Ford, resolvi não pedir uma renovação e voltei para o Brasil como professor visitante no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Já andava muito preocupado com as atitudes cada vez mais hostis de Mugabe para com os brancos em geral e ingleses em particular, o que incluía a acusação de que nós, ingleses, teríamos levado a homossexualidade para uma África que antes a desconhecia. Mais um uso abusivo da deliberada e maliciosa confusão de raça e cultura. Pace Franz Boas. (Engraçado isso. Quando fui interrogado pela Polícia Federal em São Paulo, em 1978, na época do inquérito contra o jornal Lampião da Esquina, o delegado insinuou que eu me dedicava a perverter os brasileiros. Mal sabia ele que era exatamente o contrário!).
Mas, além das dificuldades de ordem muito pessoal que me fizeram querer voltar ao Brasil, havia outra. Foi crescendo em mim a sensação de que os críticos da ajuda internacional tinham um bocado de razão. Nós tratávamos nossos beneficiários como “parceiros”. Mas que eufemismo! Alegávamos o tempo todo que respondíamos às “necessidades”, aos “anseios” dos zimbabuanos, mas tínhamos a decisão final sobre os financiamentos. Éramos responsáveis perante as fontes de recursos como governos, fundações e os generosos cidadãos britânicos que colocavam seus tostões em latas na Estação de Waterloo para financiar a Save the Children ou a Oxfam.
Bangalô onde Peter Fry morou, em Harare, 1992
Foi então que tive outro pensamento subversivo: nós, os agentes do desenvolvimento sustentável, seríamos realmente melhores que os velhos colonizadores rodesianos? Afinal, os colonizadores tiveram que conviver com as consequências dos seus projetos e decisões, mas nós não! Chegávamos, andávamos nos nossos carros com tração nas quatro rodas, vivíamos nos grandes bangalôs que os rodesianos abandonaram para, em seguida, voltarmos para casa sem mais nem menos.
De certa forma, isso fez com tenha gostado mais de trabalhar em Moçambique. Como a guerra civil entre Frelimo e Renamo impossibilitava o apoio a projetos de desenvolvimento no campo, nossa atuação ficou circunscrita às cidades. Assim, quase todo nosso apoio foi para pesquisa social, educação e cultura. Há melhor maneira de investir em qualquer sociedade? Apoiando com critério, e na base da concorrência possível, era viável oferecer oportunidades a muitos jovens, sem que fossem compelidos a seguir um caminho ou outro. Desse modo, oferecendo bolsas de estudo no Brasil para vinte jovens moçambicanos, a Fundação Ford ajudou a fortalecer as ciências sociais em Moçambique.
Essa era mais uma razão para voltar feliz ao Brasil. Aqui, poderia dar aula aos moçambicanos na universidade, exercendo meu ofício de professor num lugar onde reinaria maior liberdade de pensamento e expressão. Fui ingênuo. Meu projeto de estudar a transição do marxismo-leninismo para a democracia liberal em Moçambique foi interpretado por alguns como um pensamento reacionário. No intervalo do concurso para professor titular da UFRJ, saía da sala ao lado dos membros da banca, quando a antropóloga Ruth Cardoso, que fazia parte da banca e era mulher do então presidente Fernando Henrique, disse-me, jocosamente, que não queria ser vista muito perto de mim para não ser associada ao imperialismo anglo-americano.
Era, certamente, uma piada, mas tinha seu lado sério, pois um grupo de estudantes havia entrado na sala carregando placas de repúdio ao “imperialismo anglo-americano”, com a singela demanda “Fora Peter Fry”. Não os tinha visto na hora, porque minha posição como candidato à vaga de professor titular fez com que estivesse de costas para o protesto silencioso. Felizmente para mim, lá estava presente Regina Casé, que fez com que conseguisse espantar a tristeza por meio do riso.
Regina Casé com Peter Fry, no concurso para professor titular, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, 1995
Mas eu também quis voltar para um lugar onde pudesse me sentir como um indivíduo, e não apenas como um branco. Zimbábue tinha me ensinado que o racismo se torna mais forte e duradouro quando incorporado às leis. E, no Brasil, havia racismo, mas nada de leis raciais. Pelo menos naquela data longínqua de 1993. E eu apostava que o Brasil, na sua necessária cruzada contra a discriminação racial, teria a originalidade de perceber essa imensa vantagem sobre o Zimbábue, a África do Sul e os Estados Unidos, entre outros países.
Nisso, errei. Mas essa é (ou não é, quem sabe?) outra história.
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