A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, aprovada no dia 10 de dezembro de 1948 na terceira sessão da Assembléia Geral da ONU, em Paris, estabeleceu um novo paradigma na esfera do Direito Internacional: a defesa dos direitos humanos como valor supremo. A Declaração de 1948 marcou mais um passo no processo civilizatório da nossa espécie, especialmente por meio dos entes políticos que são os Estados.
O conceito de humanidade é uma construção do nosso intelecto, desenvolvida ao longo de pelo menos dois milênios, na esteira do universalismo religioso que formatou tanto o cristianismo quanto o islamismo. Em ambos os casos, pertencer à comunidade religiosa tornava possível superar diferenças aparentes em nome de uma ética baseada na fraternidade espiritual. No século XVIII, foi a vez de os iluministas trazerem para o campo da Filosofia e do Direito a reflexão sobre a natureza do ser humano e sobre a existência de direitos que lhe são intrínsecos, como a vida, a liberdade e a igualdade.
Ao admitir, sob o impacto de uma “era das revoluções”, a existência de direitos inerentes à pessoa, evoluímos do conceito de súdito para o de cidadão, ou seja, de mero cumpridor de ordens a portador de direitos civis. O reconhecimento dessa nova condição ocorria no âmbito do Estado, instituição criada para ordenar a sociedade através das leis. De acordo com Thomas Hobbes, a criação do Estado refletia a passagem do direito natural, baseado na força, para o direito positivo, apoiado nas leis, as quais se efetivavam tanto pelo monopólio da violência quanto pela soberania do Estado sobre seu território e população.
Mantido esse pressuposto, os direitos civis dependem do “contrato político” entre governados e seus governos. Em outras palavras, para que o direito exista não basta que a multidão grite por ele nas ruas: é indispensável a sua judicialização. Ao mesmo tempo, nesse Estado hobbesiano, o Direito Internacional não reconhecia qualquer força ou instrumento que pudesse se imiscuir na relação entre os Estados e seus habitantes. O “contrato” circunscrevia-se ao espaço limitado pelas fronteiras nacionais.
As declarações de direitos emanadas das revoluções liberais tinham por alicerce a universalidade dos direitos naturais. Assim também pensava o filósofo Immanuel Kant, para quem o traço mais relevante da condição humana é a dignidade, que não pode ser medida ou matizada, figurando como valor moral absoluto.
Em Paz perpétua, de 1795, Kant sugeria a criação de um jus cosmopoliticum que “diria respeito aos seres humanos e aos Estados em suas relações de interdependência como cidadãos de um Estado universal da humanidade“. [1] O ponto revolucionário estava na defesa da dignidade humana como valor superior à soberania dos Estados. Por extensão, haveria que se criar um novo tipo de instituição com poder para interferir em qualquer território em nome desse bem comum.
Foi essa noção de Direito Humanitário que levou à criação tanto da Convenção de Genebra (1864) quanto da Cruz Vermelha (1876), em uma tentativa de regular as guerras, no momento em que a industrialização começava a transformar os conflitos armados em carnificinas de proporções inimagináveis. Todavia, como afirmara Kant profeticamente, o passo de ruptura só ocorreria quando a violação da condição humana em algum ponto da Terra fosse sentida em todos os lugares como um problema de interesse geral.
Estátua de Immanuel Kant no Palais Universitaire de Estrasburgo (França)
Conceitos como o de genocídio ou o de crimes contra a humanidade são filhos das duas grandes guerras mundiais, mas foram os milhões de mortos da segunda, vítimas das máquinas e burocracias criadas por outros homens para gerar mais mortes, que finalmente as inscreveram na linguagem do Direito. Muitas das vítimas não eram combatentes – elas simplesmente pertenciam à “raça”, religião ou etnia marcada como “errada” pelos governantes de turno. A filósofa Hannah Arendt foi a primeira voz, naqueles tempos, a identificar o surgimento de um novo paradigma político, o Estado totalitário, e sua maior vítima, o apátrida.
Embora os despossuídos de direitos tenham começado a se multiplicar após o final da Primeira Guerra Mundial, como resultado da reorganização político-territorial da Europa centro-oriental, foi com a ascensão dos totalitarismos que o processo de cassação de direitos atingiu o ápice. Nas palavras da filósofa:
A desnacionalização tornou-se uma poderosa arma da política totalitária, e a incapacidade constitucional dos Estados-nações europeus de proteger os direitos humanos dos que haviam perdido os seus direitos nacionais permitiu aos governos opressores impor a sua escala de valores até mesmo sobre os países oponentes. (…) a incrível desgraça do número crescente de pessoas inocentes demonstrava na prática que eram certas as cínicas afirmações dos movimentos totalitários de que não existiam direitos humanos inalienáveis, enquanto as afirmações das democracias em contrário revelavam a hipocrisia e covardia ante a cruel majestade de um mundo novo. A própria expressão “direitos humanos” tornou-se para todos os interessados – vítimas, opressores e espectadores – uma prova de idealismo fútil ou de tonta e leviana hipocrisia. [2]
Apátridas, indesejáveis ou minorias – todos estavam sujeitos à perda de direitos pela exclusão da tríade território-povo-nação, fundadora do Estado contemporâneo. Segundo Celso Lafer:
“Os displaced people, por conta da dissociação entre os direitos dos povos e os direitos humanos, acabaram destituídos dos benefícios do princípio da legalidade por falta de vínculo efetivo com qualquer ordem jurídica nacional. Tornaram-se indesejáveis erga omnes (em relação a todos) e desempossados da condição de sujeitos de direitos, privados de valia e, por isso, no limite, supérfluos e descartáveis.” [3]
Confrontado com o extermínio de inocentes em larga escala, o governo dos Estados Unidos não negou sua tradição diplomática idealista ao fazer do resgate dos direitos humanos um dos principais objetivos da reorganização mundial do pós-guerra. Onze meses antes do ataque à base naval de Pearl Harbor (7 de dezembro de 1941), Franklin Roosevelt proferia o célebre discurso das “Quatro Liberdades” perante o Congresso, reafirmando a importância da liberdade para a felicidade humana e comprometendo-se com uma nova ordem internacional apoiada sobre as liberdades de expressão, de religião, de viver ao abrigo de necessidades e de viver sem medo. A partir de então a ordem do pós-guerra começou a ser pensada também em termos de descolonização, pois a universalidade dos direitos humanos não podia admitir a negação da autodeterminação dos povos.
O primeiro fruto desse compromisso foi a Declaração das Nações Unidas contra o Eixo, de janeiro de 1942. O documento reafirmava o direito de todos os seres humanos às “Quatro Liberdades”. Em abril de 1945, na Conferência de São Francisco que instituiu oficialmente a ONU, o tema dos direitos humanos foi explicitamente inserido por insistência, sobretudo, dos países latino-americanos, que em fevereiro haviam se reunido na Cidade do México para uma conferência panamericana na qual o tema tinha sido longamente debatido.
Assinatura da Carta da ONU, São Francisco, 26 de junho de 1945
Segundo a Carta da ONU, a comunidade internacional deixava de ser apenas a expressão dos Estados, para refletir, também, valores comuns a toda a humanidade. A Carta internacionalizava os direitos humanos procurando reduzir o poder discricionário dos governos sobre seus governados.
Na Alemanha, enquanto isso, era instituído o Tribunal de Nuremberg. O tribunal era uma “corte dos vencedores”, sem dúvida, mas agia na moldura do devido processo legal. O lugar escolhido, Nuremberg, era o símbolo das leis do nazismo, ou seja, da violação codificada dos princípios de justiça. O Tribunal Militar Internacional, criado pelo Acordo de Londres, tinha competência para julgar crimes de guerra, crimes contra a paz e crimes contra a humanidade. Os dois últimos inovavam as práticas do Direito Internacional. Outra inovação foi a decisão de julgar indivíduos por violação às leis internacionais, uma vez que o Direito Internacional, tal como entendido até aquele momento, tinha como objeto apenas as relações entre os Estados. Era uma ruptura de paradigmas:
(…) transita-se de uma concepção “hobbesiana” de soberania, centrada no Estado, para uma concepção “kantiana” de soberania, centrada na cidadania universal. Cristaliza-se a idéia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos na esfera internacional, na condição de sujeito de direitos. [4]
A Declaração de 1948 provavelmente não teria uma aprovação quase unânime nos tempos atuais. Com o fim da Guerra Fria, no início dos anos noventa, parecia que os direitos humanos finalmente triunfariam. O Muro de Berlim caiu no mesmo ano em que se começava a desmontar o regime do apartheid na África do Sul. Todavia, a realidade mostrou-se mais complexa.
O advento do pensamento multiculturalista se, por um lado, obrigou o velho Ocidente a rever seus preconceitos e narrativas, por outro, serve de abrigo (frequentemente pouco percebido por seus militantes) a propostas e pensamentos ainda mais retrógrados, pois a defesa da diferença é usada como negação da universalidade. Os direitos humanos encontram-se em meio a uma luta ideológica, ameaçados por argumentos de soberania nacional e tradições culturais. No fundo, a ofensiva mira a ideia de unidade da humanidade, alicerce geral da política proclamada no pós-guerra:
Hoje, os Estados evocam suas “circunstancias nacionais” na ONU para não aplicar a Declaração de 1948. Em nome de resistir ao imperialismo, grupos tratam o universalismo como forma de neocolonialismo. Para a luta contra a discriminação surgem categorias etno-raciais. Em nome da diversidade cultua-se o que divide. Em nome da “autenticidade” retoma-se a ideia do outro como exótico, objeto de curiosidade, não como semelhante em potencial. Em nome da tolerância, toleramos os intolerantes. (…) a “guetização” cultural avança, enquanto as liberdades individuais recuam. Tomadas isoladamente, as concessões parecem esparsas e isoladas. Postas lado a lado, elas formam o quadro de uma renúncia massiva.[5]
[1] LAFER, Celso. “Declaração universal dos direitos humanos (1948)” IN: MAGNOLI, Demétrio (Org.). História da paz. São Paulo, Contexto, 2008, p. 300.
[2] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 302.
[3] LAFER, Celso. “Declaração universal dos direitos humanos (1948)”. Op. cit., p. 302.
[4] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. São Paulo, Saraiva, 2006, p.12.
[5] FOUREST, Caroline. La derniére utopie – menaces sur l’universalisme. Paris, Bernard Grasset, 2009, p. 8-9.
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