O “direito a ter direitos”

A internacionalização dos direitos humanos foi antecipada no plano das ideias pela reflexão do filósofo Kant. Como é sabido, o centro da doutrina moral de Kant é o ser humano que não tem preço, mas dignidade, e, por isso, é concebido como um fim em si mesmo não devendo ser tratado como meio, pois não tem equivalente (1). Esta visão do ser humano, não só no plano interno dos Estados, mas no internacional, ecoa no primeiro dos considerandos da Declaração Universal que se inicia com “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana”.

A possibilidade do reconhecimento planetário da dignidade da pessoa humana foi conjeturada por Kant em dois importantes textos. Em “Ideia de uma História Universal de um ponto de vista cosmopolita” (1784), discute a história humana na perspectiva do futuro que é, para ele, o futuro da espécie. Realça que a história humana só pode ter unidade, regularidade e continuidade teleológica quando considerada sob o ângulo universal e não na perspectiva de um Estado.

Daí o caráter circunscrito de que se reveste em Kant a “razão de Estado”, inclusive a das grandes potências. Kant conjetura sobre uma razão abrangente da humanidade que faça o Direito valer universalmente na história (2). É por esse motivo que a ONU, como um tertius entre os Estados, que possa, com razão abrangente, viabilizar a validade universal do Direito, é uma concepção tributária da visão kantiana, do possível na vida internacional.

No plano jurídico, Kant discute, em Projeto da Paz Perpétua (1795), o direito público interno (jus civitatis), o direito internacional público (o jus gentium) que rege as relações dos Estados entre si a ele agregando um direito cosmopolita, o jus cosmopoliticum. Este diria respeito aos seres humanos e aos Estados em suas relações de interdependência como cidadãos de um Estado universal da humanidade.

Numa visão de futuro que transcende a lógica de Westfália e os seus desdobramentos jurídicos, a conjetura de um direito cosmopolita é a grande inovação conceitual trazida por Kant na leitura da realidade internacional. Tem como fundamento o direito à hospitalidade universal, vale dizer, um direito comum a todos os seres humanos da face da Terra. Segundo Kant, a condição para a sua efetivação requer uma época da história em que a violação do direito ocorrida num ponto da Terra seja sentida em todos os demais pontos da Terra (3).

É justamente a sensibilidade em relação à violação dos direitos, presente na época histórica da criação da ONU, que leva à Declaração Universal. Esta é uma expressão do potencial do jus cosmopoliticum, de um direito novo, atento no plano internacional à relevância axiológica de se respeitar a dignidade da pessoa humana.

Esta sensibilidade está na raiz do evento histórico singular, corporificado na Declaração Universal, e pode ser analisada com base num dos conhecidos conceitos da teoria do Direito: o das fontes materiais. Fontes materiais são o conjunto de fenómenos de ordem social, econômica ou científica ou então de natureza ideológica – como o engajamento moral, religioso e político que levam à criação ou modificação de normas na ordem jurídica. É, assim, uma análise das fontes materiais o que permite explicar a gênese da Declaração Universal.

As etapas iniciais da positivação dos direitos humanos no plano internacional foram distintas das que se verificaram no plano interno. Não representaram a expressão de um olhar sobre o futuro da espécie, na lógica kantiana de um direito cosmopolita atento a uma razão abrangente da humanidade, pois sua fonte material obedeceu a uma lógica política mais delimitada da agenda internacional.

Esta lógica não foi a das agendas internas da extensão da cidadania e da inclusão social que historicamente levaram à afirmação dos direitos civis e políticos, subsequentemente a dos direitos económicos, sociais e culturais e que foram sendo positivados tendo como ponto de partida a irradiação do modelo da Revolução Francesa. Este modelo postulava senão uma coincidência pelo menos uma convergência entre os direitos humanos e os direitos dos povos: um direito de titularidade coletiva lastreado no princípio das nacionalidades, base da soberania popular e expressão de um novo critério de legitimidade. Tal critério, cabe lembrar, foi questionando a legitimidade dinástica dos antigos regimes que acordaram a Paz de Westfália.

No século XIX, uma primeira mobilização internacional em prol da dignidade humana foi o empenho na proibição do tráfico de escravos. Apoiada na esquadra britânica, voltou-se para a abolição da escravatura como uma instituição incompatível com a modernidade política e econômica. Cabe, igualmente, referência ao início do direito internacional humanitário com a criação da Cruz Vermelha. A fonte material deste direito – o do jus in bello (o direito dos conflitos armados) – está ligada à percepção e à consciência do que sofrem os seres humanos nas guerras. O jus in bello voltou-se para disciplinar, por meio de normas jurídicas e com base na reciprocidade, a proteção e a assistência às vítimas militares e civis da guerra. Viu-se complementado por normas que almejavam restringir os meios usados em guerras para evitar, na medida do possível, o padecimento humano.

No século XX, o Pacto da Sociedade das Nações, já discutido antes, contemplou de forma circunscrita os direitos humanos no seu artigo 23 e criou dois regimes setoriais. O artigo 23 menciona o tratamento equitativo de populações indígenas e se refere ao tráfico de mulheres e crianças, ao tráfico de ópio e outras drogas nocivas e à importância da fiscalização do comércio de armas e munições. A fonte material deste artigo derivou da unidade planetária do campo diplomático-estratégico trazida pela revolução técnica e econômica que foi unificando o mundo no século XX. Isto ensejou tanto uma abertura ao direito à diversidade quanto à percepção de que, para lidar com crimes transfronteiras, era necessária a cooperação penal internacional.

A criação da OIT – a Organização Internacional do Trabalho – foi um dos desdobramentos da Sociedade das Nações. O objetivo desta organização internacional especializada voltou-se para a padronização e harmonização, em nível adequado, das condições de trabalho, mediante a negociação e a celebração de convenções internacionais. São fontes materiais que levam à OIT e às suas atividades a ideia do pacifismo social, a inquietação operária, a importância de dar uma resposta política ao desafio da Revolução Russa e o problema do assim chamado “dumping social”, ou seja, o impacto das condições de trabalho no mundo e suas consequências para a concorrência entre os países, em materia de comércio internacional.

O outro regime setorial concebido pela Sociedade das Nações, que postulou a independência das nacionalidades, foi o de urna tutela própria das minorias. A fonte material deste regime surgiu com o desmembramento, no pós-Primeira Guerra Mundial, dos três grandes impérios multinacionais: o austro-húngaro, o otomano e o russo. A desagregação destes impérios magnificou o tema das minorias linguísticas, étnicas e religiosas em Estados nacionais. Estas não estavam à vontade e em casa com uma organização da vida coletiva baseada no princípio das nacionalidades, pois neste processo foi ocorrendo uma dissociação entre os direitos humanos e os direitos dos povos.

Esta dissociação cresceu de importância porque o período entre as duas guerras foi, na Europa e com irradiação pelo mundo, o de uma contestação à democracia, ao estado de direito e à relevância dos direitos humanos. A este magma de negatividade somaram-se as restrições à livre circulação das pessoas pelo fechamento das fronteiras – seja por motivações econômicas trazidas pela Crise de 1929; seja pelo ímpeto da xenofobia. Foi o que tornou inviável as grandes correntes migratórias como as do século XIX. É neste contexto que a União Soviética e a Alemanha nazista inauguraram o cancelamento em massa da nacionalidade pelo arbítrio discricionário de motivações político-ideológicas. No caso da União Soviética, o cancelamento vitimou os que foram ideologicamente considerados pelos governantes “inimigos objetivos” do novo regime. No caso da Alemanha nazista, a motivação do cancelamento foi o ímpeto avassalador do racismo antissemita.

O desdobramento disso tudo trouxe o ineditismo de um enorme número de displaced peopleos refugiados e os apátridas – que se viram expelidos, como mostrou a pensadora Hannah Arendt, da trindade Povo-Estado-Território (4). Os displaced people, por conta da dissociação entre os direitos dos povos e os direitos humanos, acabaram destituídos dos benefícios do princípio da legalidade por falta de vínculo efetivo com qualquer ordem jurídica nacional. Tomaram-se indesejáveis erga omnes (em relação a todos) e desempossados da condição de sujeitos de direitos, privados de valia e, por isso, no limite, supérfluos e descartáveis.

A inexistência de um direito à hospitalidade universal deu-se no caldo de cultura da difusão ideológica de regimes totalitários. Estes submeteram o ser humano ao todo. No nazismo, esta subordinação inequívoca do indivíduo ao seu grupo “racial” estava explicitada na divisa oficial do regime: “Du bist nichts, dein Volks ist alies” (Tu não és nada, o teu povo é tudo) (5). A negação dos direitos humanos como direitos subjetivos permitiu instaurar, pela ubiquidade do medo, uma dominação total lastreada no arbítrio ex parte principis (dos governantes) de um “estado de exceção permanente”. Foi o que favoreceu o encaminhamento dos displaced people para os campos de concentração.

Os campos de concentração foram a base material do crime de genocídio. Este não é um crime contra um grupo nacional, étnico ou religioso. É um crime cometido contra a humanidade, porque é uma recusa frontal da diversidade e da pluralidade – características da condição humana na lição de Hannah Arendt. É, além do mais, no ineditismo da sua escala e violência, a expressão da gratuidade do mal, pois o extermínio organizado e premeditado foi um fim em si mesmo. Não teve a justificá-lo nenhuma das habituais razões de um estado de necessidade que motivam a ação política desvinculada de critérios éticos.

      Libertação de Auschwitz, pelo Exército Vermelho, em 26/27 de janeiro de 1945

O genocídio – e Auschwitz, que o encarnou – foi, assim, percebido no pós-Segunda Guerra Mundial como a expressão, por excelência, do mal – o mal ativo soberanamente infligido por governantes e o mal passivo, sofrido por aqueles que, ex parte populi (os governados), padeceram uma pena sem culpa (6). Daí a convicção que foi se formando de que a construção de um mundo comum no segundo pós-guerra deveria levar em conta a hospitalidade universal que tinha sido contestada na prática pela condição dos refugiados, pelos apátridas e pelos campos de concentração.

A construção deste mundo comum, em função da experiência dos antecedentes acima elencados, tinha deixado claro que, para preservar a dignidade humana, era preciso ir além das Declarações de Direitos no plano interno. O “direito a ter direitos”, como sublinhou Hannah Arendt ao refletir sobre o assunto, só se tornaria viável com uma tutela internacional (7). Em síntese, estes são os elementos configuradores das fontes materiais, que explicam porque surgiu a Declaração Universal de 1948 e como a plena internacionalização dos direitos humanos pode ser qualificada como uma reação jurídica ao problema do mal.

Notas
(1) KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa, Edição 70, 1986, p. 77.
(2) Cf. KANT, Immanuel. Per la Pace Perpetua e altri scritti, a cura di Nicolao Merker. Roma, Riuniti, 1985, p. 47, 50, 54, 56 e passim.
(3) KANT, 1985, p. 37-42.
(4) ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 300-336.
(5) LOCHAK, Daniele. Les droits de l’homme. Paris, La Découverte, 2005, p. 34.
(6) BOBBIO, Norberto. Elogio da serenidade e outros escritos morais. São Paulo, Unesp, 2002, p. 182-183.
(7) Cf. LAFER, Celso. A reconstrução dos Direitos Humanos – um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo, Companhia das Letras, 1988.

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