A LEI DE TRUMP

 

Demétrio Magnoli

 

Violação da lei internacional, disseram porta-vozes da ONU e de países europeus. Ninguém ditará aos EUA como devem se conduzir na defesa da pátria, replicou o secretário da Guerra, Pete Hegseth. A Casa Branca promove sucessivas execuções extrajudiciais em águas sul-americanas do Caribe e do Pacífico sob uma alegação que tenta circundar a lei internacional. Mas a “guerra às drogas”, na versão de Trump, é um pretexto apoiado em outro pretexto.

São, já, cerca de 80 vítimas fatais – e contando. Aeronaves de ataque F-35, baseadas em Porto Rico, realizam bombardeios letais contra pequenas embarcações supostamente utilizadas por narcotraficantes para o transporte de cocaína até os EUA. A palavra-chave, no caso, é “supostamente”. Inexistem provas da acusação – e os EUA nem mesmo se preocupam em produzi-las. Contudo, mesmo se tais provas existissem, as ações seriam ilegais.

O dispositivo militar reunido pelo Pentágono no Caribe abrange diversos grupos navais de combate, inclusive o USS Gerald Ford, maior porta-aviões do mundo, equipado com mísseis Tomahawak, um submarino de propulsão nuclear e dezenas de aeronaves F-35, além de embarcações de apoio e aviões de reconhecimento. Só o USS Gerald Ford e seu grupo de combate tem capacidade bélica superior à maior parte das forças armadas do mundo.

 

Fontes: Pentágono; Banco de Dados de Localização e Conflitos Armados (Acled)

Não faz sentido imaginar que o impressionante poder de fogo concentrado na área tenha como objetivo eliminar diminutos barcos de narcotraficantes. A “guerra às drogas” funciona como pretexto para uma operação de desestabilização da ditadura venezuelana de Nicolás Maduro. A estratégia provavelmente não envolve uma invasão terrestre clássica, mas ações bélicas em solo venezuelano destinadas a provocar uma cisão nas forças armadas do país, pilar de sustentação do regime.

O ponto de Trump não é a natureza do regime de Maduro: o presidente dos EUA nada tem contra autocratas e, inclusive, admira alguns, como Putin. Também não é, ao contrário do que reza uma lenda urbana, o desejo de controlar o petróleo do país sul-americano: no início de seu governo, levantou sanções para permitir à Chevron uma aliança com a estatal PDVSA na exploração de reservas venezuelanas.

Por meio da batizada Operação Lança do Sul, Trump busca a mudança de regime na Venezuela para extirpar a influência da China e da Rússia na região. A lógica repousa sobre o conceito de esferas de influência: sob seu ponto de vista, o “Hemisfério Ocidental” pertence à área de hegemonia geopolítica dos EUA.

 

“Conflito armado não-internacional”

Porta-aviões USS Gerald Ford

O pretexto, porém, precisa da cobertura de outro pretexto – ou seja, de uma narrativa político-jurídica capaz de oferecer uma película de legitimidade às execuções extrajudiciais. Não é tarefa simples: em outubro, o almirante Alvin Hosley, chefe do Comando Sul da Marinha dos EUA, pediu demissão, aparentemente preocupado com as ramificações legais das execuções extrajudiciais.

O Departamento de Justiça entrou em campo para executar sua missão. Um parecer confidencial ofereceu a Sean Parnell, porta-voz do Pentágono, a oportunidade de alegar que os bombardeios obedecem tanto às leis dos EUA quanto às leis internacionais. O segredo: classificar as ações letais como parte de um “conflito armado não internacional” travado à sombra do Artigo 2 da Constituição americana.

A Constituição dos EUA reserva ao Congresso, não ao Executivo, a prerrogativa de declarar guerra. Contudo, de acordo com antiga jurisprudência, o presidente dispõe do poder de reagir pelas armas a um ataque estrangeiro. Numa decisão de 1863, ligada a ordens do presidente Abraham Lincoln no contexto da Guerra Civil, a maioria dos juízes decidiu que:

“Se a guerra for feita por uma invasão de uma nação estrangeira, o presidente não só está autorizado, mas obrigado a resistir à força por meio da força. Ele não inicia a guerra, mas deve aceitar o desafio sem aguardar qualquer autorização legislativa. E, seja a parte hostil um invasor estrangeiro ou  estados organizados em rebelião, não deixa de ser uma guerra.”

O governo dos EUA redefiniu o narcotráfico como “narcoterrorismo”, conectando a “guerra às drogas” com a “guerra ao terror”. Segundo a sua narrativa, os EUA sofrem uma “invasão” de “narcoterroristas” que, pela introdução de drogas, matam milhares de americanos. Seria, portanto, uma guerra defensiva contra um inimigo não-estatal (mas, como se verá, supostamente amparado por um governo estrangeiro). Os bombardeios figurariam como atos legítimos de guerra dirigidos a “combatentes inimigos”.

Obviamente, a narrativa carece de sentido. “Não conheço nenhum outro lugar na lei doméstica ou na lei internacional, onde alguém tenha argumentado que introduzir drogas em um país é o tipo de violência organizada que pode desencadear um conflito armado e dar à nação o direito de matar pessoas simplesmente porque fazem parte de uma suposta força inimiga”, declarou Martin Lederman, vice procurador-geral assistente do Departamento de Justiça dos EUA no governo de Barack Obama e, hoje, professor na Universidade de Georgetown.

O senador democrata Adam Schiff, ex-promotor federal, sintetizou o problema: “Parece que você encomendou uma tarefa a um advogado: ‘dê-me o melhor argumento possível para justificar por que isso é legal – seja tão inventivo quanto quiser’. Se esse parecer fosse adotado, ele não restringiria qualquer uso de força em qualquer lugar do mundo.”

Bombardeio de embarcação na costa da Venezuela, em 2 de setembro, em imagem do Pentágono

As embarcações destruídas podem ou não estar ligadas ao narcotráfico. Pescadores do litoral da Venezuela, da Colômbia e do Equador são recrutados pelos traficantes para o serviço de transporte de drogas. Mas são, no máximo, soldados rasos dos cartéis do tráfico. E, de mais a mais, a maior parte do fentanyl chega aos EUA por via terrestre, através da fronteira mexicana, e a maior parte da cocaína, pelo Pacífico, não pelo Caribe, onde se concentram os mais numerosos bombardeios americanos.

O narcotráfico é uma questão de segurança pública, de polícia, não uma guerra de agressão. As patrulhas de fronteira marítima dos EUA, com ou sem ajuda da Marinha, teriam o dever de abordar e prender tripulantes de embarcações ligadas ao tráfico de drogas. Pretexto, contudo, não passa de pretexto.

A volta final do parafuso: a Casa Branca classificou o ditador Maduro como dirigente de uma gangue do “narcoterrorismo” e ofereceu um prêmio de US$ 50 milhões por sua cabeça. O “inimigo não-estatal” converte-se, por tal declaração, em inimigo semi-estatal. E o “conflito armado não-internacional” desliza rumo a conflito internacional com o regime venezuelano. 

 

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