SUDÃO – A FOME QUE NINGUÉM VÊ (23/6/2025)

 

Elaine Senise Barbosa

               

Se perguntarmos a qualquer pessoa hoje qual é a pior crise de fome na atualidade, é quase certo que a resposta será “Gaza”. Mas, de acordo com um relatório da ONU, a maior crise de fome ocorre no Sudão. Lá também, os casos de violência sexual atingem números chocantes, sendo praticada por todos os envolvidos na guerra civil que dilacera o país desde 2023.

Ao contrário da comoção provocada pela crise humanitária em Gaza, o grande público ignora o desastre humanitário no Sudão. Cerca de 25 milhões de sudaneses – praticamente metade da população de 48 milhões – vive em insegurança alimentar, o que significa que essas pessoas não sabem se conseguirão algo para comer a cada dia. A dependência de ajuda humanitária é imensa, e esse trabalho também se tornou alvo das ações dos exércitos rivais, que roubam os alimentos e os recursos médicos e atacam as equipes envolvidas nessas atividades.

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Refugiados sudaneses fugindo para o vizinho Sudão do Sul. No fim, sobram as crianças e mulheres…

 

Disputa em equilíbrio, destruição prolongada

A disputa entre as Forças Armadas do Sudão (SAF), do general Abdel Fattah al-Burhan, reconhecido oficialmente como o representante do governo, e as Forças de Apoio Rápido (RSF) do general Hemedti (Mohammed Hamdan Dagalo) completou 2 anos em abril e prossegue, sem sinal de término pois nenhum dos lados parece capaz de derrotar o oponente.

Nesse tempo, ganharam expressão grupos paramilitares de alcance regional, que se alinham à SAF ou à RSF em função de identidades étnicas, sendo o islamismo uma peça fundamental nesse jogo.  Na crise em Darfur, ambas as partes impediram a chegada de ajuda aos civis. Todos os envolvidos cometem crimes de guerra e crimes contra a humanidade rotineiramente.

Segundo o informe da HRW: “A RSF e seus aliados cometeram assassinatos ilegais generalizados, incluindo execuções em massa, violência sexual, alvejaram propriedades civis e usaram repetidamente armas explosivas pesadas em áreas densamente povoadas. A SAF e as forças aliadas bombardearam indiscriminadamente áreas povoadas e destruíram deliberadamente a infraestrutura civil, cometeram atos de violência sexual e execuções sumárias, torturaram detidos e mutilaram corpos.”

Em março, as forças da SAF, leia-se general Burhan, retomaram o controle da capital, Cartum, controlada pela RSF desde o início da guerra.  Em resposta, os homens do general Hemedti atacaram Porto Sudão a partir de drones, a cidade servia como base para o governo militar, além de ser a principal porta de entrada para a ajuda humanitária. Combatentes do RSF avançaram para o sul e se aliaram a um grupo armado local que controla as montanhas Nuba, na fronteira com o Sudão do Sul. O objetivo é alcançar a fronteira com a Etiópia para abrir novas rotas de suprimentos militares.

Combatente da RSF, Sudão

Combatente do RSF, a força militar que desafia o exército oficial

A RSF também está sitiando a capital de Darfur do Norte, el-Fasher, que é defendida por uma coalizão de ex-rebeldes de Darfur, de maioria Zaghawa, a etnia que se opõe aos árabes da RSF e teme ser massacrada caso seja derrotada.

 

Vítimas invisíveis

O conflito armado se espalha pelo país, resultando na destruição completa de dezenas de vilarejos, alguns atacados mais de uma vez, sempre com grande número de mortos e feridos.  A improvisação que comanda os exércitos em disputa, seu caráter miliciano, faz do saque de víveres um ato intrínseco à operação militar. No fim, desorganiza-se o sistema produtivo baseado na agricultura de subsistência e no comércio local.

Cada vila incendiada é uma roça que desaparece. O preço do trigo e do sorgo está 100% mais caro do que no ano passado e a fome se espalha. Os combatentes armados tratam os civis como inimigos e as cenas são de pessoas massacradas pelas ruas, estupros coletivos, detenções em massa e fuzilamentos sumários.

Os que fogem procuram os campos de refugiados internos ou externos. Estima-se que metade da população sudanesa foi obrigada a deixar suas casas. São 15 milhões de menores precisando de ajuda humanitária, em 2023, eram 7,8 milhões, de acordo com a UNICEF.

Até os hospitais e clínicas são alvos de ataques, para roubo de suprimentos médicos, com rastros de destruição e morte, deixando os civis com ainda menos chances de ajuda.

Enquanto as crises humanitárias se multiplicam, as verbas disponíveis são cada vez menores. O apelo da ONU por US$ 4,2 bilhões teve apenas 13,3% do financiamento esperado, até o final de maio. O encerramento do programa USAID, determinado por Donald Trump, atingiu duramente alguns programas de ajuda no Sudão, incluindo atendimento aos casos de estupro.

Civis deixam Cartum, 2023

População foge -mais uma vez – da capital, Cartum

A Organização Mundial da Saúde, OMS, alertou para o risco de doenças infecciosas se espalharem entre a população por causa da falta de um sistema de saúde e de serviços básicos, são dezenas de milhares de casos de cólera e dengue. As taxas de vacinação despencaram. Os campos de refugiados são ainda mais sujeitos ao risco epidêmico.

 

Influências externas

A SAF conta com o reconhecimento do Egito, Turquia e outros países do Oriente Médio, incluindo Catar e Irã, e deles compra armas. Mesmo assim, não tem sido capaz de derrotar a RSF. O governo militar acusa os Emirados Árabes Unidos (EAU) de fornecer suprimentos para a RSF, incluindo os drones usados em Porto Sudão. A EAU nega qualquer envolvimento.

A ONU e a União Africana trabalham buscando algum tipo de negociação que pacifique o país, mas os resultados têm sido ruins, pois a instabilidade no domínio territorial faz com que os poucos acordos alcançados, do tipo permitir a circulação de comboios com comida para distribuição, sejam rapidamente rompidos pelo avanço do exército do inimigo. Esses senhores da guerra e seus homens não temem a pressão internacional e se utilizam da crise de fome para obter mais recursos e prolongar a disputa por mais tempo.

Volker Perthes, representante da ONU para o Sudão

Volker Perthes é o representante especial da ONU para o Sudão, mas ele já foi declarado “persona no grata” pelo governo local.

Os diplomatas dizem que a guerra do Sudão é um problema africano que precisa de uma solução árabe. O caminho para a paz no Sudão depende dos Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Egito. Segundo reportagem da BBC, numa conferência de paz realizada em Londres, em abril, não se chegou a nenhum acordo por divergências entre a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos. O Egito, por sua vez, avalia se Burhan será capaz de manter sob controle os radicais islâmicos que o ajudaram a retomar Cartum.

Agora, todos os olhos se voltam para o desenvolvimento da guerra entre Israel e Irã. O Sudão não é prioridade de ninguém.

 

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