“Passados vinte anos (2012), nenhuma autoridade competente foi capaz de atribuir responsabilidades pelo Massacre do Carandiru. Apesar de diversos esforços da sociedade civil, os processos de responsabilização disciplinar, criminal, civil e internacional iniciados após o massacre foram interrompidos ou permanecem sem conclusão. No Brasil, os órgãos do sistema de justiça nem sequer chegaram a declarar formalmente que o episódio que levou (pelo menos) 111 cidadãos sob a custódia do Estado à morte se tratou de um massacre. Essa declaração veio apenas da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. A documentação produzida por nosso sistema de justiça continua referindo-se aos eventos do dia 2 de outubro de 1992 como “rebelião” ou “motim” do Pavilhão 9 daquela casa de detenção.” (“Massacre do Carandiru: vinte anos sem responsabilização”).
O Carandiru na década de 1980
Doze anos depois, a constatação acima segue válida. A 4ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo acaba de anular as condenações dos 74 policiais militares que permanecem como réus (alguns já faleceram) dos processos que julgam o que ficou conhecido como Massacre do Carandiru, e que prescreverá definitivamente em 2026.
Para os 25 desembargadores que compõe o colegiado, os processos não conseguiram determinar quais crimes foram cometidos por cada um dos réus. Para o relator do caso, o desembargador Ivan Sartori, os policiais militares agiram em legítima defesa e seguiam ordens de seus superiores hierárquicos. O colegiado também considerou válido o indulto de Natal concedido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro em 2022, dias antes de seu mandato chegar ao fim, beneficiando agentes de segurança condenados por crimes cometidos há mais de 30 anos.
No Brasil anistiamos os crimes da ditadura militar e seguimos anistiando crimes cometidos por agentes do Estado. Aos que justificam tais atos, inclusive aqueles que deveriam zelar pelas leis e pelo aprimoramento das instituições, nunca é demais lembrar um fundamento civilizacional: o Estado e seus representantes não podem seguir a lógica e o modus operandi de quem viola as leis, sob risco de instaurarmos a “guerra de todos contra todos”. A expansão do PCC e das milícias estão aí para provar nossa regressão como sociedade.
O Ministério Público de São Paulo recorreu da decisão (9/10) uma vez que o processo ainda não havia chegado ao fim. Para o promotor Mauricio Antonio Ribeiro Lopes, a decisão é inconstitucional.
Já a advogada de parte dos réus, Ieda Ribeiro de Souza, defende a anulação do processo porque o exame balístico que poderia identificar a autoria dos disparos nunca chegou a ser feito pois “os projéteis sumiram de dentro do Fórum”. A defensora expõe a chaga que costuma acometer a justiça brasileira: já que nenhuma das autoridades responsáveis – o governador Luiz Antônio Fleury Filho, o Secretário de Segurança Pública Pedro Franco de Campos e os coronéis da Polícia Militar que comandaram a invasão – foi indiciada ou condenada, sobrou para o “elo mais fraco”.
Todavia, o “elo mais fraco” continuou vivo e trabalhando na mesma Polícia Militar, alguns chegando a posições de comando na ROTA na época em que Geraldo Alckmin era governador de São Paulo. Já as famílias dos mortos, constituídos em sua maioria por réus primários que aguardavam julgamento por crimes patrimoniais, não dispuseram de apoio ou direito à indenização, apesar do Estado ser responsável por presos custodiados.
Assim começa “Diário de um Detento” escrito pelo preso Jocenir Prado e transformado em rap por Mano Brown e os Racionais MC’s.
Rebeliões em presídios eram comuns na São Paulo dos anos 1980. A superlotação, o tratamento desumano dado aos presos, a morosidade da Justiça eram as causas das frequentes revoltas. O fenômeno das facções estava surgindo, no rastro do Comando Vermelho criado no Rio de Janeiro. Em São Paulo ainda predominavam as gangues rivais, cujos desentendimentos estavam na origem de vários desses levantes em cadeias.
O Complexo Penitenciário do Carandiru, localizado na zona norte da cidade de São Paulo, havia sido criado na década de 1920. Nos anos oitenta, a população carcerária começou a crescer exponencialmente, junto com as instalações do presídio, que chegou a dispor de sete pavilhões e foi considerado o maior complexo prisional da América Latina. Em 1992 viviam ali aproximadamente 7,2 mil pessoas, 2,7 mil apenas no Pavilhão 9, onde tudo aconteceu.
“Amanheceu com Sol, 2 de outubro (…), dois ladrões considerados passaram a discutir, mas não imaginavam o que estava por vir”. Rapidamente os agentes penitenciários interromperam a briga, mas a situação continuou tensa e transformou-se em rebelião quando todos os presos receberam ordem para voltar às suas celas antes do horário costumeiro às 16 horas. Começaram então a queimar colchões e destruir as celas enquanto alguns faziam acertos de conta contra rivais. Como de costume, a Polícia Militar e o Batalhão de Choque foram convocados para controlar a situação.
Sob o comando geral do coronel Ubiratan Guimarães estavam 341 policiais munidos de armas de grosso calibre, bombas e cães. Ao constatarem a presença da Tropa de Choque, os presos retornaram às suas celas e cortaram a luz do Pavilhão 9. No começo da noite veio a ordem para invadir, dada pelo Secretário de Segurança Pública. Os policiais, sob forte tensão e esperando serem atacados com armas brancas, talvez contaminadas com sangue de aidéticos (muitos detentos eram portadores da doença, que na época quase não dispunha de tratamento), entraram nos corredores escuros e enfumaçados atirando com fuzis e submetralhadoras.
A ação durou no máximo 20 minutos e deixou 111 detentos mortos (soube-se depois que oito deles foram acertos de conta entre presos), e mais 130 feridos. Nenhum policial foi morto, 22 foram feridos. Foram disparados 515 tiros e as tubulações de água foram perfuradas. Rapidamente, os corredores tornaram-se rios de sangue. Naquela noite, o diretor do Carandiru informou à imprensa que a rebelião havia sido controlada e oito presos estavam mortos.
“Dia 3 de outubro, diário de um detento.”
Sábado era dia de visitas na Casa de Detenção e, com esse pretexto, o Pavilhão 9 foi lavado de cima a baixo na sexta-feira, os corpos foram retirados do local e as cápsulas das balas disparadas foram recolhidas. Toda a cena do crime de Estado foi adulterada, impedindo que qualquer investigação pudesse ser rapidamente realizada. Sob crescente pressão externa, o governador paulista admitiu as 111 mortes.
Quando os jornais começaram a publicar as fotos de dezenas de corpos nus enfileirados nos corredores, houve forte reação da sociedade civil. Contudo, apesar do choque causado pela brutalidade das imagens, muita gente apoiou o massacre. Não importava o fato da maioria dos mortos não ter sido julgada (84 dos 111, 51 deles com menos de 25 anos). Muitas não se sensibilizavam com o argumento de que é responsabilidade do Estado manter a segurança dos presos e que a polícia tem o dever de seguir as leis. Surgiam as sementes do bordão extremista “direitos humanos para humanos direitos”.
Após rebeliões em penitenciárias, o procedimento padrão era levar todos os presos para o pátio, onde ficavam nus para uma revista geral
Mas o Brasil era então um país recém-saído da ditadura militar e havia um certo comprometimento das elites políticas com uma ordem mais democrática e menos violenta. Talvez por isso, o governador Fleury, que não estava na cidade em 2 de outubro e jamais condenou o ocorrido, tratou de demitir Pedro Campos, o secretário de segurança e afastar o coronel Ubiratan, que logo passou à reserva para, em 1994, lançar-se à vida política.
Já a Polícia Militar abriu inquérito no dia seguinte para esclarecer os fatos, enquanto peritos criminais produziam centenas de exames e laudos.
O relatório do inquérito trouxe as seguintes conclusões:
“(…) houve necessidade de fazer uma conferência dos presidiários, limpeza das instalações, avaliação dos mortos e feridos, coleta de material ilícito para perícia e comunicar o resultado às autoridades competentes” – e assim justificou-se a manipulação da cena.
Os laudos periciais atestavam que “atirador(es) posicionado(s) na soleira da respectiva porta (de cada cela), apontando sua arma para os fundos ou laterais” e “não se observou quaisquer vestígios que pudessem denotar disparos de arma de fogo realizados em sentidos opostos aos descritos, indicando confronto entre as vítimas-alvo e os atiradores postados na parte anterior da cela”. Os laudos constataram que “grande parte dos presos mortos foi atingida por mais de cinco projéteis e quase todas as vítimas que receberam tiros morreram”.
Mesmo assim, o relatório concluía que “não há indício da prática de crime pelos oficiais superiores (coronéis Ubiratan e Parreira, responsáveis pelo comando da tropa, bem como os tenentes-coronéis Chiari, Faroro e Nakaharada, comandantes dos Batalhões de Choque). O documento admitia possível excesso na ação policial, mas “motivado provavelmente pelo excesso de obstáculos colocados pelos presos, como resistência à ação policial, os quais valeram-se para tanto de uma série de recursos delituosos”.
Em março de 1993, valendo-se do mesmo relatório, o promotor da justiça militar Luiz Roque Lombardo Barbosa chegou a conclusões bem diferentes e ofereceu denúncia contra 120 policiais militares envolvidos na operação, descrevendo-a como “verdadeira ação bélica, pois os policiais militares, fortemente armados, desencadearam a maior matança já consignada mundialmente em um presídio”. Mas aqui também os oficiais superiores não foram indiciados pois não haveria prova de que dispararam suas armas.
Encerrada a fase do inquérito, começou uma longa e continuada série de procedimentos jurídicos que se arrastam até hoje, enquanto crimes prescrevem, como aconteceu por exemplo com as acusações de lesão corporal (ferimentos com arma branca e mordidas de cachorros).
Primeiro, a justiça militar entendeu que o julgamento deveria ocorrer na esfera cível porque envolvia autoridades civis. Depois, o Tribunal de Justiça de São Paulo passou dez anos para decidir se o caso era mesmo de sua competência e se deveria ir a júri popular.
Em 2002 o Complexo Penitenciário do Carandiru foi demolido. Vai sendo apagada a memória de um crime cometido pelo Estado. Em seu lugar foi criado o Parque do Povo. Ironia?
Em 2001 o coronel Ubiratan foi levado a júri popular e condenado pelas 102 mortes, resultando numa pena de 632 anos de reclusão. Enquanto sua defesa recorria, o coronel reformado foi eleito deputado estadual por São Paulo em 2002 – com o bizarro número 14.111. Como deputado, passou a ter foro privilegiado e, por isso, realizou-se um novo julgamento no Órgão Especial do TJ, no qual 25 desembargadores entenderam que o tribunal do júri havia errado, anulando o julgamento original e, portanto, a condenação.
Em setembro de 2006, Ubiratan foi assassinado com um tiro pela namorada, num crime de viés estritamente passional, mas que acabou atrasando mais uma vez o andamento dos processos.
Dado o grande número de réus e vítimas envolvidos, o TJ-SP decidiu desmembrar o julgamento em quatro partes, correspondentes a cada um dos quatro pavimentos do Pavilhão 9. Esses julgamentos foram realizados entre 2013 e 2014 resultando em condenações diversas para os réus, cuja defesa recorreu mais uma vez.
Assim chegamos a 2024 e à anulação de todos o processo pela 4ª Câmara de Direito Criminal. Em dois anos todos os crimes prescreverão e o Massacre do Carandiru entrará para a história como prova cabal de que a justiça, no Brasil, tarda e falha.
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