TERROR EM BURKINA FASO

 

Víctor Daltoé dos Anjos 

(Geógrafo/UFSC, doutorando em Geografia/USP e pesquisador de 1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos)

 

Em 24 de agosto, Burkina Faso, país da África Ocidental que sofre uma das piores e mais negligenciadas crises de refugiados da atualidade, motivada pelas guerrilhas jihadistas que se espalham pela região do Sahel, foi palco de um brutal atentado terrorista causador de centenas de mortes. 

Jihadistas do Jama’at Nusrat al-Islam wal-Muslimin (JNIM), aliado da Al Qaeda, abriram fogo contra centenas de civis que estavam escavando trincheiras para proteger a cidade de Barsalogho, no norte do país. Eles foram enviados a mando dos militares, tornando-se presa fácil para os jihadistas que agem na região há quase uma década. Segundo o jornal francês Le Monde, vídeos divulgados pelos jihadistas mostram pilhas de corpos nas escavações, ao lado de picaretas e pás abandonadas.

Na era digital, as imagens do terror se difundem velozmente, semeando o medo e estimulando ainda mais burquinenses a deixarem suas casas para engrossar as fileiras do deslocamento forçado. Eram mais de dois milhões de deslocados internos no país no início de 2023, atrás apenas de Sudão, República Democrática do Congo, Somália e Nigéria no continente africano.

grupo Ansarul...

O jihadismo se espalha pelo sahel manipulando minorias oprimidas. O terror funciona

O número de mortos pelo atentado, o maior na história de Burkina Faso, ultrapassa 200 vítimas, mas o Coletivo Justiça por Barsalogho, formado logo após o ataque, afirma que as vítimas chegam a 400. Fica ainda mais escancarada a gravidade da crise que se desenrola no país desde 2015, quando grupos jihadistas aliados à Al Qaeda e ao Estado Islâmico se infiltraram a partir dos vizinhos Mali e Níger, colocando em sua órbita formações rebeldes locais.

Em Burkina Faso, os civis têm sido alvos cada vez mais recorrentes dos ataques desde o golpe militar de setembro de 2022, já que o capitão Ibrahim Traoré, o presidente burquinense, incita os cidadãos a lutar contra os jihadistas, colocando-os na linha de frente do conflito.

 

Violência em diversas formas

A crise de Burkina Faso soma o terror jihadista, o arbítrio do regime militar comandado por Traoré desde 2022 e, mais recentemente, a formação de milícias de “autodefesa civil” atuando ao lado do Exército. Mas, ao atentado de Barsalogho deve ser adicionado um outro componente, que envolve ciclos locais de violência e represálias alimentados pela violência étnica e religiosa.

A cidade de Barsalogho se localiza no norte do país, onde as savanas tropicais encontram as estepes do Sahel, faixa semiárida que beira o deserto do Saara. Lá, integrantes da etnia mossi, majoritários no país e religiosamente animistas ou cristãos, convivem com os fulas, povo islâmico e historicamente ligado à pecuária. Desde 2016, quando se alastrou o conflito burquinense, a região é palco tanto da expansão jihadista como de ataques contra os fulas, estigmatizados por uma associação preconceituosa entre islamismo e terrorismo.

Entre os séculos XV e XIX, os fulas (“peuls”, no francês colonial) se expandiram desde o Oceano Atlântico, no atual Senegal, até o planalto de Adamaua, no norte de Camarões, carregando consigo o islamismo e seus rebanhos. As fronteiras desenhadas pelo imperialismo europeu e chanceladas pelos Estados africanos pós-coloniais fragmentaram ainda mais a presença da etnia fula, já dispersa anteriormente. E, em Burkina Faso, os fulas encontraram-se em um Estado estruturado em torno da hegemonia mossi.

Grande Mesquita Ouagadugu

Grande Mesquita de Uagadugu, a capital de Burkina Faso

 

Unidade nacional versus minoria étnica

Os fulas, assim como os tuaregues e os tubus, são um povo nômade e marginalizado pelos Estados sahelianos surgidos da descolonização. Em 2012, teve início uma nova rebelião tuaregue no Mali e líderes fulas iniciaram agitações no país, proporcionando terreno fértil para a expansão do jihadismo. Em 2016, no norte de Burkina Faso, que possui uma porosa fronteira com o Mali, surgiu o grupo jihadista Ansarul Islã, envolvendo principalmente fulas, que logo entrou na órbita do JNIM, o aliado da Al Qaeda local.

No réveillon de 2019, seis mossis foram assassinados por jihadistas em vilarejos próximos a Yirgou, no norte burquinense. A resposta foi uma onda de perseguição e assassinatos contra os fulas da região de Barsalogho promovida por milícias mossi recém-criadas, os koglweogo (“guardiões do mato”). Em agosto daquele ano, centenas de cidadãos marcharam em Uagadugu, a capital, contra a estigmatização étnica no país. Mas, desde aquele momento, os ciclos de violência tornaram-se rotineiros. 

Os koglweogo serviram como modelo para os Voluntários de Defesa da Pátria (VDP), patrocinados pelo governo de Traoré. O efeito dessa militarização da sociedade civil fez de 2023 o pior ano dos conflitos em Burkina Faso, com 7,6 mil mortes, informa a organização Human Rights Watch. Os militares têm ampliado o uso de civis em seu esforço de guerra, intensificando a espiral de vingança pelos jihadistas. Em Noaka, a 25 quilômetros de Barsalogho, dezenas de integrantes da milícia VDP foram mortos em um atentado durante o mês de junho de 2024. 

No trágico sábado de 24 de agosto, evidenciou-se o resultado dessa política estatal criminosa. As vítimas do atentado foram sabidamente expostas aos jihadistas, pois  bases do JNIM vigiam a cidade de Barsalogho e, no entanto, aqueles trabalhadores não foram protegidos pelos militares burquinenses. 

Segundo o ACLED (Dados de Localização e Eventos de Conflitos Armados), o JNIM é o grupo jihadista responsável pelo maior número de ataques violentos no Sahel Central (Burkina Faso, Níger e Mali) em 2023, com 2,2 mil eventos, muito à frente dos mais de 500 ataques do  aliado do Estado Islâmico ou do Boko Haram, concentrado na região do Lago Chade.

 

Ditadura militar e insegurança civil

Palais Kossyam- Burk Faso

Palacio Kossyam, sede do governo nacional burquinense

Antes do atentado de Barsalogho, um dos piores massacres cometidos no conflito de Burkina Faso foi executado pelo próprio Exército, que comanda o país há anos. Em 20 de abril de 2023, na cidade de Karma, região de Yatenga e próxima do Mali, integrantes do Batalhão de Intervenção Rápida (BRI), unidade das forças armadas, tomaram a cidade e mataram cerca de 147 pessoas, incluindo 45 crianças, de acordo com relato da Anistia Internacional. Os moradores eram acusados de não impedir um grupo armado de atacar uma milícia civil pró-governamental.

Enquanto os burquinenses padecem no fogo cruzado entre jihadistas, milicianos e  Exército, o governo militar continua preocupado em garantir sua própria segurança. Entre os meses de maio e agosto, um obscuro grupo mercenário russo, a Brigada Bear (“Urso”), apareceu como corpo de guarda de integrantes do alto escalão do governo, que é aliado do ditador russo Vladimir Putin, assim como as novas juntas militares que tomaram o poder em golpes de Estado nos vizinhos Mali e Níger em 2021 e 2023, respectivamente. 

O regime do capitão Traoré não divulgou um número oficial de vítimas e apenas prometeu uma “resposta firme” ao atentado mais recente. Enquanto isso, em Barsalogho, os habitantes moderam sua revolta face à inação governamental com receio de represálias, com os membros do recém-fundado Coletivo Justiça por Barsalogho (CJB) evitando expor suas identidades ao entrar em contato com a imprensa internacional. Enquanto jazem os mortos, os vivos temem dissentir.

 

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