AMEAÇA AOS DIREITOS REPRODUTIVOS DAS BRASILEIRAS

 

Elaine Senise Barbosa

24 de junho de 2024

 

No Brasil, os direitos reprodutivos das mulheres encontram-se sob ameaça. Os fundamentalistas religiosos querem impor uma proibição quase absoluta do direito ao aborto.

A lei brasileira proíbe o aborto, com três exceções. As duas primeiras, instituídas no Código Penal de 1940, permitem o aborto em casos de estupro e em caso de risco de morte para a gestante; a terceira exceção foi admitida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2012, para casos de anencefalia do feto, cuja inviabilidade da vida fora do útero foi entendida como forma de tortura psíquica.

Em nenhum desses casos foi estabelecido um limite de tempo para a realização do procedimento, porque leis reconhecem direitos, enquanto os aspectos médicos devem ser cuidados pelos profissionais da área de saúde. É o exemplo da anencefalia. O avanço do conhecimento médico e da técnica tornaram possível constatar essa anomalia ainda em fase intrauterina, mas já em estágio avançado da gravidez.

Gráfico apoio ao PL1904

               Fonte: DataFolha 20/6

A sociedade brasileira, majoritariamente contrária ao aborto, admite tais exceções. Pesquisa Datafolha divulgada em 20 de junho constatou que 66% da população brasileira é contra mudanças na lei. Número tão expressivo indica que mesmo setores conservadores e religiosos admitem as exceções legais. No caso de gravidez decorrente de estupro, o sentimento popular é o de que as mulheres não devem ser obrigadas a criar o fruto de um ato tão violento, especialmente quando se sabe que em boa parte desses casos trata-se de meninas mal entradas na puberdade. Questão de direitos humanos básicos.

Daí, a rápida – e surpreendente, por seu caráter plural – reação social ao Projeto de Lei 1904/2024, de autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que pretende transformar em crime de homicídio esses abortos legais, quando realizados após a 22ª semana de gestação. Para ele, não importa que a vida da mãe possa estar em risco. Também não importa que a proposta possa levar meninas estupradas a serem condenadas a 20 anos de prisão, enquanto os estupradores, quando pegos, recebem pena máxima de 8 anos. O absurdo foi rapidamente denunciado pelos movimentos feministas e a pecha de “PL do estuprador” pegou.

 

Direitos ameaçados em 23 segundos

A tramitação legislativa do PL 1904 foi aprovada em regime de urgência, após o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (Progressitas-AL), aceitar o encaminhamento do deputado Eli Borges (PL-TO), líder da Frente Parlamentar Evangélica.

“O projeto foi apresentado no mesmo dia em que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, determinou a suspensão da resolução aprovada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) para proibir a realização da chamada assistolia fetal para interrupção de gravidez após 22 semanas de gestação. A técnica utiliza medicações para interromper os batimentos cardíacos do feto, antes de sua retirada do útero”, informa a Agência Câmara de Notícias. Faltou a nota técnica de que assistolia fetal é o método recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para abortos após a 20ª semana e que o CFM tomou decisão que não lhe compete.

Projetos de lei devem passar pela Comissão de Constituição e Justiça, que analisa o mérito da proposta e se ela está de acordo com as leis fundamentais do país. O mecanismo de urgência para votar um projeto de lei está previsto apenas para casos de interesse geral, sobre os quais existem consensos amplos, que permitem acordos entre lideranças partidárias. A urgência pula os filtros do processo legislativo. Nesse caso, configura um golpe baixo.

Em que momento o direito ao aborto se tornou um tema urgente para a sociedade brasileira? O assunto tabu, sobre o qual recaem as penas de danação no inferno ou nas urnas, transfere uma questão de saúde pública para o da moralidade religiosa. Mas, exatamente por isso, a bancada evangélica fundamentalista não perdeu tempo.  E, subitamente, o país recebeu a notícia de que a Câmara dos Deputados, em 12 de junho, em 23 segundos, considerou legítimo aprovar a urgência de um absurdo jurídico que viola direitos reprodutivos consolidados das mulheres brasileiras, agride os direitos da criança e pisoteia tratados internacionais assinados pelos Estado brasileiro.

 

Reféns de oportunistas

Ao ser confrontado com a reação contrária ao PL de sua autoria, o pastor-deputado Sóstenes Cavalcante (PL-AL) foi sincero: o objetivo era testar se o presidente Lula teria coragem de vetar as mudanças e ficar contra a bancada evangélica. Homem do chefão evangélico Silas Malafaia, o pastor não viu problema algum no fato usar a saúde física e mental de meninas e mulheres para fazer chantagem política. Já Arthur Lira usou a saúde de meninas e mulheres para garantir o apoio da bancada evangélica na operação para fazer seu sucessor no comando da Câmara.

Lira recuou e postergou a votação, após a repercussão social muito negativa do PL. Mas Sóstenes e seus fundamentalistas parecem dispostos a retomar a investida contra os direitos das mulheres utilizando-se do projeto do Estatuto do Nascituro, que criminaliza qualquer forma de aborto, inclusive os espontâneos ou causados por acidentes. O deputado alardeia, em suas redes sociais, notícias comprovadamente falsas sobre o uso de fetos abortados pela indústria de cosméticos. É isso um “líder espiritual”?    

Diz o ditado que, de onde nada se espera, nada sai mesmo. Decepção é quando não sai de onde se espera: o governo de Lula da Silva e do PT. Primeiro, os governantes lavaram as mãos: seus porta-vozes argumentaram, no momento inicial, que “só interessa economia”. Três dias depois, reagiram timidamente, ao perceberem a reação social ao projeto de lei fundamentalista.

O ministro da Previdência Social, Carlos Lupi (PDT-RJ), em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, esclareceu a postura governista. Segundo ele, a pauta do governo é econômica e social; os direitos individuais são individuais, e cabem ao Congresso. Por que será que tanta gente imagina que cidadania é valor fundamental para um governo de esquerda?

Não faltaram comentaristas prontos a atribuir exclusivamente a deputados homens a trama contra os direitos reprodutivos de mulheres e adolescentes. Falso: a representação feminina na Câmara fica abaixo de 20%, mas 33% das deputadas assinaram o PL 1904. O fundamentalismo não é masculino ou feminino, mas a expressão de uma reação política aos direitos individuais e ao Estado laico.

 

Quem retarda o aborto?

A pesquisa DataFolha publicada na sexta-feira mostra que mais de metade dos entrevistados, independentemente de gênero e religião (considerando o universo cristão como majoritário), é contrária à proposta do deputado Sóstenes Cavalcante. Uma semana após passar em regime de urgência, o PL fundamentalista entrou em modo descanso.

Gráfico apoio ao PL1904, sexo e religião

Fonte: DataFolha 20/6

 

Os brasileiros entenderam que a ideia de que grávidas optem por esperar os fetos se desenvolverem dentro de si para depois abortarem é tenebrosa e fantasiosa. Ela ignora que o corpo feminino muda e os hormônios trabalham para que o vínculo entre mãe e filho se estabeleça.

A pergunta a ser feita é: por que se ultrapassa esse prazo? Em parte, isso é consequência de medidas adotadas nos legislativos por essas lideranças religiosas, amplamente respaldadas por juízes e profissionais de saúde que colocam suas convicções pessoais à frente de seus compromissos profissionais. Na vertente fundamentalista, incluem-se lideranças católicas, que não atuam explicitamente na via política como fazem os evangélicos mas organizam-se em associações profissionais diversas. impondo suas convicções às leis. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) apoiou o PL 1904.

Quando se investe contra o espantalho da “ideologia de gênero” cortando verbas para programas de prevenção contra DST e gravidez infantil, proibindo a educação sexual nas escolas ou negando reconhecimento dos direitos da comunidade LGBT, o contraponto é o favorecimento da violência sexual e dos abortos tardios. Pesquisas realizadas por institutos de pesquisa e instituições as mais diversas foram apresentadas na última semana demonstrando que meninas, especialmente na faixa dos 9 aos 13 anos, são as maiores vítimas de violência sexual, na maioria das vezes praticada dentro de casa por parentes muito próximos. São elas que não tem noção de que estão sendo abusadas, de como funciona um ciclo menstrual, de que estão grávidas.

Obrigadas a se tornarem mães precocemente, essas meninas e adolescentes estão fadadas a abandonarem os estudos para trabalharem em empregos de baixa remuneração. Seus filhos terão a marginalidade social como futuro mais provável. Mas, para esses já nascidos, a política defendida pela maioria dos partidos é o aumento de penas e mais encarceramento. 

O que parecia ficção ficou subitamente próximo e os movimentos feministas encabeçaram a reação em defesa dos direitos reprodutivos das brasileiras

Positiva, em todo esse episódio, foi a reação da sociedade civil contra a política mesquinha feita nos gabinetes em Brasília. A reação veio, em primeiro lugar, das mulheres, representadas por dezenas de organizações da sociedade civil. Com elas, vieram jornalistas, juristas, líderes religiosos não fundamentalistas e amplos setores da população que se juntaram nas ruas para demonstrar que Suas Excelências agiam contra o que pensa a população. 

A máfia fundamentalista já avisou que não desistirá. As mulheres também não. E, graças ao golpe regimental frustrado, agora sabe-se que elas têm o apoio da maioria.

 

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