DARFUR, PAISAGEM DO MEDO

Víctor Daltoé dos Anjos

(Geógrafo/UFSC, doutorando em Geografia/USP e pesquisador de 1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos)

27 de maio de 2024

 

Em Darfur, no Sudão, dilacerado pela guerra civil, pertencer à etnia “errada” pode significar uma sentença de morte. Os zaghawa, fur e massalit, povos muçulmanos e não-árabes, sofrem com a ofensiva de milícias árabes ligadas às Forças de Apoio Rápido (RSF), poderosa facção rebelde que domina boa parte de Darfur. No entanto, o temor também vem dos céus com os bombardeios da força aérea, o trunfo do exército sudanês contra os revoltosos. O cotidiano na região é de fome, deslocamento forçado, milicianização e limpeza étnica.

Darfur, paisagem do medo

Recém chegados, refugiados sudaneses descansam sob uma árvore em Adré, no Chade.

Segundo o Acnur (Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), mais de 8,8 milhões de sudaneses foram deslocados à força desde o início do conflito, há um ano. O impacto é mais intenso na região de Darfur, que concentra 38% dos 6,8 milhões de deslocados internos. Dali partiram quase 600 mil refugiados, principalmente para o Chade, país fronteiriço. Os outros vizinhos que mais abrigam refugiados sudaneses são o Sudão do Sul (670 mil), que se recupera de uma recente guerra civil, e o Egito (500 mil).

A insegurança alimentar segue o rastro da guerra. Segundo a FAO, órgão das Nações Unidas para alimentação e agricultura, cerca de 18 milhões de sudaneses estavam à beira da fome em abril de 2024, mais de ⅓ dos habitantes do país. O impacto no abastecimento é ampliado pela extensão dos combates por quase todo o território nacional, inclusive nas zonas mais densamente povoadas. Cerca de 90% das pessoas em emergência de segurança alimentar vivem em Cartum, a capital, no Cordofã, centro do território, em Darfur, no oeste, e na Gezira, o “celeiro agrícola” do país, entre os Nilos Branco e Azul.

Em Darfur, quem leva vantagem são as Forças de Apoio Rápido (RSF), grupo rebelde liderado pelo general Mohamed Dagalo, que rompeu com o governo em abril de 2023, dando início à guerra civil. As RSF são herdeiras das janjaweed, milícias árabes que aterrorizaram minorias não-árabes de Darfur entre 2003 e 2008, sob a égide do ex-ditador Omar al-Bashir (1989-2019). Em 2023, sob supervisão do general Dagalo, os rebeldes tomaram quatro das cinco capitais de estados de Darfur, e agora cercam El Fasher, a única fora de seu controle.

O sítio a El Fasher teve início em abril de 2024, cortando o fornecimento externo de eletricidade e água potável de uma cidade que possuía um milhão de habitantes antes da guerra. A possibilidade de sua conquista pelas RSF envolve um símbolo de peso, já que El Fasher é a capital histórica de Darfur, região com tradição de autonomia política.

 

Do sultão ao Sudão

Darfur possui um território tão extenso quanto a Espanha e se localiza no Sahel, anel subúmido ao sul do Saara composto por estepes e planícies. O centro geográfico de Darfur é marcado pela Jebel Marra, a única cadeia montanhosa saheliana, onde as chuvas de relevo formam cursos d’água que irrigam as planícies semi áridas circundantes. Grandes centros urbanos, como Nyala, El Fasher e El Geneina, contrastam com um extremo norte dominado pelo deserto do Saara.

Darfur, paisagem do medo - MAPA 1

Darfur se localiza estrategicamente nos limites com vários vizinhos do Sudão, como Líbia, Chade, Sudão do Sul e República Centro-Africana

O Sultanato de Darfur (1640-1916) se formou no cruzamento de caravanas que ligavam o Sahel ao vale do Nilo, tendo os escravizados como mercadorias valiosas. Os fur, um dos povos islamizados da região sob influência do império de Karnem-Bornu, na região do Lago Chade, tinha os montes Jebel Marra como seu Dar, termo árabe para “terra”. Em Darfur, outros povos não-árabes foram subordinados, como os zaghawa e os massalit, mas desde o século XVIII o sultanato tinha de lidar com tribos árabes nômades cada vez mais incisivas.

No século XIX, o Egito otomano se expandiu de forma sistemática ao longo do vale do Nilo, com uma onda de ocupação árabe, e colocou Darfur na sua órbita. O sultanato fornecia uma cota de cativos e também permitia a passagem de caravanas que alcançavam a África tropical em busca de braços. Na década de 1870, os egípcios conquistaram o Darfur com as tropas privadas do traficante de escravos Zubeir Pashá, mas logo o imperialismo britânico transformou o Egito em um “protetorado” de Londres e Darfur também foi submetida.

Darfur foi arrastada pela Revolta Mahdista (1881-1898), um importante movimento de oposição local contra a pressão britânica pelo fim do tráfico de escravos. Os líderes mahdistas tiveram que lidar com focos de resistência anti-árabe em Darfur, organizada por lideranças zaghawa e fur, herdeiras do antigo sultanato. Séculos de tráfico haviam acumulado sucessivas camadas de ressentimento e rivalidade entre os povos da região, novamente independente após a derrota do Mahdi por tropas anglo-egípcias, em 1898.

O destino do último sultão de Darfur, Ali Dinar (1898-1916), foi selado na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando seguiu o chamado da jihad e apoiou o império turco-otomano. Dinar tombou em campo de batalha contra os britânicos, que anexaram Darfur ao Sudão Anglo-Egípcio. A região só se tornaria independente na década de 1950. Em plena alvorada da descolonização africana, Darfur se tornou parte da periferia não-árabe de um Sudão onde elite árabe concentrada em Cartum dava as cartas.

 

Do abandono aos massacres

Darfur se tornou palco de guerra civil e perseguição étnica em larga escala no início do século XXI. O caso difere da longa luta de libertação nacional do Sudão do Sul, não-islâmico e não-árabe, independente desde 2011. Por décadas, a região foi uma remota periferia desprovida de investimentos públicos, dominada por autoridades tribais apoiadas pelo governo central, a fim de enfraquecer a classe média urbana, como já faziam os britânicos. Enquanto isso, os métodos de repressão eram afiados no sul do país.

Darfur, paisagem do medo - MAPA 2

Darfur está dividida em cinco estados, numa estratégia deliberada da ditadura de Omar al-Bashir em fragmentar politicamente a região 

Os inúmeros conflitos entre comunidades sedentárias de agricultores não-árabes e pastores nômades, predominantemente árabes, eram resolvidos com atos de vingança e acordos de anciãos. Todavia, as intensas secas de 1984-1985 multiplicaram as disputas, com nômades árabes, que rumavam cada vez mais para o sul agrícola em nome de pastagens e acesso à água, muitas vezes se tornando seminômades e fundando comunidades. A elite árabe de Cartum pendia para seu lado.

O regime de Jafar Nimeiri (1969-1985) lidou com as tensões em Darfur nomeando autoridades não-árabes para cargos relevantes, mas sem obras de infraestrutura e medidas de combate à pobreza. Como resultado, a insatisfação local foi cada vez mais canalizada via sentimento étnico. A apropriação de terras por tribos árabes se intensificou e a contestação cresceu principalmente entre os zaghawa, responsáveis pela criação do Movimento de Libertação do Sudão (SLM), federalista e laico, e o Movimento Justiça e Igualdade (JEM), islâmico e conservador.

Em 25 de abril de 2003, o SLM lançou um ataque-surpresa ao aeroporto de El Fasher, destruindo sete aeronaves militares e matando uma centena de soldados. O regime do ditador Omar al-Bashir foi pego de surpresa, mas logo terceirizou uma campanha de repressão através das milícias árabes janjaweed, gerando um ciclo de violência que durou meia década. No período, uma miríade de grupos armados se espalhou por Darfur, com mudanças constantes de alianças enquanto cerca de 2,7 milhões de pessoas tiveram de se deslocar à força.

Entre 2003 e 2008, cerca de 300 mil pessoas foram mortas no conflito de Darfur, segundo estimativas da ONU na época. Em abril de 2004, o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, alertou que o mundo não deveria aceitar uma “segunda Ruanda” em Darfur.

Em 2009, o Tribunal Penal Internacional (TPI), expediu um mandado de prisão contra o ditador sudanês Omar al-Bashir por sua responsabilidade em sete crimes de guerra e contra a humanidade cometidos em Darfur, como execução arbitrária de civis, tortura e estupro. Foi a primeira vez que o órgão exigiu a prisão de um chefe de Estado ainda em exercício desde sua criação, em 2002.

Em 2019, o exército e as Forças de Apoio Rápido (RSF) derrubaram o ditador al-Bashir, ameaçado por uma revolta popular que foi também sufocada pelos militares. No ano seguinte, a Missão Conjunta das Nações Unidas e da União Africana para o Darfur (Minuad), criada em 2007, foi suspensa, mas as tensões não desapareceram. Entre 2021 e 2022, centenas morreram em choques entre tribos árabes e massalit no Darfur Ocidental, e a formação de milícias de autodefesa se acentuou. Em 2023, a guerra civil escancarou o conflito latente.

 

Limpeza étnica e guerra urbana

No estado de Darfur Ocidental, fronteira com o Chade, os massalit continuam correndo grande risco. Um relatório do Painel das Nações Unidas sobre o Sudão afirma que entre 10 e 15 mil pessoas foram mortas na cidade de El Geneina, entre abril e junho de 2023, na ofensiva dos rebeldes RSF e seus aliados árabes. As milícias miraram na destruição da infraestrutura urbana essencial aos civis, como escolas e hospitais, sempre tendo os massalit como alvos principais, culminando com o assassinato do governador do estado.

Os corpos ficaram espalhados pelas ruas de El Geneina, inclusive pela ação de snipers (atiradores de elite), que miravam em jovens e até em mulheres grávidas. O relatório da ONU aponta dezenas de denúncias de abuso sexual cometidos pelas RSF e seus aliados, principalmente contra as comunidades não-árabes, além da destruição sistemática das inúmeras instalações para abrigar os deslocados à força. Antes do conflito, havia pelo menos 120 pontos para acolher 80 mil deslocados internos em El Geneina, principalmente da etnia massalit.

Darfur, paisagem do medo

Campo de deslocados de Hasahisa, em Zalingei, Darfur Central, em janeiro (à esquerda) e novembro (à direita) de 2023, o antes e o depois da invasão pelas RSF

Um informe do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, de abril de 2024, destaca que as RSF perseguiram e executaram deslocados de El Geneina que buscavam abrigo na cidade de Ardamatta, conquistada pelos rebeldes em novembro de 2023. No mesmo mês, o Alto-Representante da União Europeia para Negócios Estrangeiros, Josep Borrell, afirmou que a perseguição aos massalit em Ardamatta indicava uma “ampla campanha de limpeza étnica”.

Em nome do combate aos rebeldes das RSF, a força aérea do Sudão realizou bombardeios sobre Nyala, capital de Darfur do Sul e centro logístico no comércio com o Chade e a República Centro-Africana. Em 21 e 22 de agosto, aviões militares bombardearam um mercado e uma ponte, matando dezenas de civis, segundo a ONU. Em setembro, quando os rebeldes RSF haviam tomado a cidade, a força aérea destruiu boa parte da infraestrutura civil pública, incluindo o principal mercado da cidade.

 

Direitos Humanos violados em Darfur

DARFUR, PAISAGEM DO MEDO

O general Mohamed Dagalo, o “Hemeti”, líder das Forças de Apoio Rápido (RSF)

Os combates em Darfur do Sul a tornaram principal origem de deslocados internos dentro da região de Darfur, com quase 800 mil segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM). Uma grande parte deles rumou para El Fasher, cidade sitiada agora pelas RSF, trazendo aos moradores de maioria zaghawa o temor da repetição do que ocorreu no ano passado em El Geneina com os massalit.

Em julho de 2023, o TPI abriu uma nova investigação sobre crimes de guerra que estariam sendo cometidos no Sudão. Em abril de 2024, o procurador-chefe do TPI, Karim Khan, se dirigiu ao Conselho de Segurança da ONU afirmando que a situação “no Sudão está à beira do colapso” e é “terrível em todas as medidas” na região de Darfur. Para Khan, os habitantes de Darfur merecem justiça, promessa que “tem escutado durante muito tempo”.

O jovem advogado Abdelmoneim Juzur relatou ao Le Monde que iniciou um levantamento dos crimes cometidos pela RSF e seus aliados em El Geneina depois do início da guerra civil. Contudo, o assassinato de dois de seus colaboradores o levou a se refugiar no Chade, onde formou o Coletivo dos Advogados do Darfur Ocidental, com o objetivo de reunir depoimentos e direcioná-los ao Tribunal Penal Internacional (TPI). Advogados e defensores de direitos humanos estão entre os alvos preferidos das RSF.

Uma das maiores diferenças entre a crise do Darfur de 2003 a 2008 e a nova onda de violência é a utilização das redes sociais pelos agressores para difundir imagens que disseminem o pânico, incluindo de pilhas de cadáveres. Duas décadas depois, o horror também é high tech no Darfur.

 

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