NOBEL DA PAZ PARA AS MULHERES DO IRÃ

  

Narges Mohammadi

Narges Mohammadi, Nobel da Paz em 2023 por sua atuação em defesa dos direitos das mulheres

O Prêmio Nobel da Paz de 2023 será entregue para a ativista pelos direitos civis Narges Mohammadi. Ela, hoje, é uma presa política do regime dos aiatolás iranianos que não deixa de fazer seu trabalho mesmo em Evin, considerada a pior prisão do país.

A notícia foi dada no início de outubro, três semanas após o primeiro aniversário da “revolta do hijab”, provocada pela morte da jovem Masha Amini, em 16 de setembro de 2022. Havia grandes expectativas para tentativas de manifestações públicas, mas elas não se concretizaram. No início de setembro o governo já tinha ameaçado possíveis organizadores, enviado alguns para prisão e aumentado a pressão para os autoexílios.

Para conseguir controlar as manifestações, que se estenderam por meses, a repressão à revolta do hijab foi brutal, com centenas de mortos, incluindo pelo menos 44 menores, enquanto cerca de 20 mil iranianos foram presos, de acordo com  cálculos das Nações Unidas.

O regime iraniano, uma teocracia fundamentalista, está cada vez mais encurralado em seu labirinto patriarcal. Tentando defender o “tempo eterno de Deus”, imune ao tempo da ampulheta, o Conselho dos Aiatolás não aceita a autonomia das mulheres, pois a identifica com uma ruptura com os valores do Islã. Esse pensamento retrógrado os conduzirá a um xeque-mate no tabuleiro político, porque a sociedade iraniana é bastante complexa e sofisticada.

A notícia da escolha do Nobel da Paz foi publicada em 6 de outubro. No dia seguinte, o Hamas atacou Israel. Sabendo-se da ligação entre o grupo palestino e o governo do Irã, via Hezbollah, é interessante observar os cuidadosos passos que Teerã tem dado em relação ao conflito na Faixa de Gaza. Não é um bom momento para se descuidar da “guerra” interna.

 

Uma por todas 

O prêmio dado a Narges Mohammadi homenageia Masha Amini e todas as iranianas que estão desafiando o regime, queimando seus hijabs, cortando os cabelos, usando vozes como as da premiada para denunciar as torturas e abusos sexuais que sofrem nas prisões.

Narges foi detida 13 vezes e condenada em cinco processos, cujas penas somadas levariam a 31 anos de prisão, além de 154 chicotadas (não se sabe se foram aplicadas). Atualmente, cumpre pena de 10 anos na temida prisão de Evin, para onde são levados os principais perseguidos pelo regime. Seu marido e dois filhos vivem em Paris.

A história política de Narges começou em meados dos anos 1990, quando a jovem estudante de Física da Universidade de Teerã se envolveu com a militância por direitos das mulheres e contra a pena de morte. Formada, trabalhou alguns anos como engenheira enquanto escrevia para jornais locais artigos sobre os direitos das mulheres.

Shirin Ebadi

Shirin Ebadi, advogada, juíza, Nobel da Paz em 2003, exilada em Londres desde 2009

Acabou se aproximando de Shirin Ebadi, a primeira mulher muçulmana a receber o Nobel da Paz, em 2003, por sua atuação como advogada e juíza defensora dos direitos dos presos e, sobretudo, pelo fim da pena de morte. Ebadi criou o Centro de Defensores dos Direitos Humanos do qual, mais tarde, Narges tornou-se vice-diretora.

A partir de 2011 a ativista entrou na mira da polícia dos costumes e passou a enfrentar sucessivos processos na justiça. Mas ela se recusou a fugir do país quando teve chance e já disse: “A prisão sempre foi o coração da oposição e da resistência no Irã e, para mim, também encarna a essência da vida em toda sua beleza”.

De acordo com sua conta no Instagram, administrada por familiares, ela e outras companheiras queimaram seus hijabs no pátio da prisão no último 16 de setembro. No mesmo dia o The New York Times publicou um artigo assinado por Narges no qual ela relata o espírito de resistência dentro das prisões que, afirma, nunca estiveram tão cheias.

“Continuamos a levantar a voz. Emitimos declarações e realizamos reuniões gerais e protestos após as notícias de manifestações de massa, assassinatos nas ruas e execuções. As instituições judiciais e de segurança tentaram intimidar-nos e silenciar-nos, cortando as nossas chamadas telefônicas e reuniões semanais com a família, ou abrindo novos processos judiciais contra nós. Nos últimos sete meses, abriram seis novos processos criminais sobre as minhas atividades de direitos humanos na prisão e acrescentaram dois anos e três meses à minha sentença, que é agora de 10 anos e nove meses.”

 

Em nome de Deus

As iranianas que apoiaram a Revolução de 1979 em nome de um projeto nacionalista aparentemente representado pelos aiatolás descobriram, depressa, que o governo dos clérigos trazia de volta valores historicamente envelhecidos, que negavam uma série de avanços conquistados pelas mulheres ao longo do século XX. Em nome de combater as reformas “ocidentalizantes” identificadas ao governo deposto, restaurou-se o uso obrigatório do hijab, a lapidação para acusadas de crime de honra contra seus pais e maridos e a poligamia. 

Jovem queima hijab na multidão

Mulheres por todo o Irã queimaram seus véus e cortaram seus cabelos para dizer que não aceitam mais a opressão da Polícia da Moralidade

A invocação da sharia para impor regras de submissão que rebaixam a mulher à condição de pessoa com menos direitos não encontra justificativa na letra do Corão. O problema está na interpretação, como explicam mulheres muçulmanas envolvidas nessa longa luta pela conquista de direitos civis e políticos nos países islâmicos.

É o que sustenta Shirin Ebadi no livro Iran Awakening: a Memoir of Revolution and Hope (2006): “Nos últimos 23 anos, desde o dia em que fui destituída do meu cargo de juíza até os anos de batalha nos tribunais revolucionários de Teerã, repeti um refrão: uma interpretação do Islã que esteja em harmonia com a igualdade e a democracia é uma expressão autêntica de fé. Não é a religião que subordina as mulheres, mas os ditames seletivos daqueles que as desejam enclausuradas. Essa crença e a convicção de que a mudança no Irã deve ocorrer de forma pacífica e a partir de dentro tem sustentado o meu trabalho.”

Na falta de um inimigo interno que justifique a ampliação dos poderes dos agentes estatais, o regime está apertando o cerco às mulheres e homens que as apoiam na luta por tratamento digno. Mas os aiatolás travam uma luta que não poderão vencer e  já lhes ameaça o poder, quando mulheres e homens gritam juntos nas ruas “morte à República Islâmica” e “mulher-vida-liberdade”.

 

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