CÉSIO-137, O BRILHO DA MORTE EM GOIÂNIA

 

Rafael Pepe Romano

(Bacharel em Direito, graduando em Ciências Sociais/USP e pesquisador de 1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos)

 

Uma história daquelas

O mais grave acidente radiológico ocorrido no mundo, fora de uma usina nuclear, aconteceu em 1987, em Goiânia, capital do estado de Goiás, no coração do Brasil. Um ano antes havia ocorrido a explosão na usina nuclear de Chernobyl e o tema estava em alta. O “acidente com o Césio-137” matou pessoas e adoeceu a toda uma comunidade. O caso foi um exemplo clamoroso dos riscos aos quais a sociedade está exposta quando a negligência no tratamento de produtos nocivos à saúde se encontra com a desinformação decorrente da baixa escolaridade de cidadãos lutando para sobreviver. 

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Era 13 de setembro de 1987 quando Roberto dos Santos Alves e Wagner Mota Pereira, dois moradores do Bairro Popular, que trabalhavam como catadores, entraram no terreno onde funcionou o Instituto Goiano de Radiologia (IGR). À época, o lugar era alvo de disputa na Justiça e aparentava estar abandonado.

Roberto e Wagner estavam em busca de algum material para vender no ferro-velho. Revirando o terreno e as instalações do IGR, encontraram uma caixa cilíndrica de chumbo com cerca de 100 kg. Resolveram levá-la para a casa de Roberto, onde pretendiam abrir a caixa de chumbo para depois vendê-las em peças. Ao removerem o invólucro de chumbo, perfuraram a placa de lítio expondo ao ambiente a radiação do Césio-137.

Os dois sócios recolheram o pó esbranquiçado contido na caixa de chumbo. Ao anoitecer, o pacote começou a emitir uma intensa luz azulada. Ninguém nunca tinha visto algo parecido, era fascinante. Cinco dias depois (18/9), Roberto e Wagner foram ao ferro-velho de Devair para vender aquele material.

O chumbo tinha boa saída e por isso Devair os revendeu rapidamente a outros dois depósitos. Já o brilhante pó foi distribuído a parentes e amigos que, por sua vez, o levaram para suas casas. E assim aconteceu o maior acidente radiológico da história fora de uma instalação nuclear.

 

De mão em mão

No início de outubro, à medida que o material se espalhava e a curiosidade também, ouvia-se dizer na região que as pessoas estavam adoecendo. Casos e mais casos com o mesmo quadro: náuseas, perda de apetite, vômito e diarreia, junto com fortes dores de cabeça e febre alta.

Na casa de Devair, sua esposa, Maria Gabriela, desconfiou do tal pó que emitia luz azulada, porque todos os seus conhecidos começaram a apresentar aqueles mesmos sintomas dias depois de entrarem em contato com o material. Na tarde de 28 de setembro, ela, o marido e um funcionário do ferro-velho, Geraldo Guilherme, pegaram um ônibus com os fragmentos da cápsula e seguiram para a Vigilância Sanitária de Goiânia.

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A cápsula que armazenava o radioativo Césio-137, em Goiânia, 1987. Como se descarta lixo radioativo?

Ao ouvir a história contada por Maria Gabriela, Paulo, que era veterinário trabalhava na Vigilância, achou prudente afastar o material e chamar um físico, profissional mais gabaritado para avaliar a situação. Enquanto isso, os funcionários acessaram o material que estava afastado, sem nenhuma ideia da sua periculosidade.

Atendendo à convocação da Vigilância Sanitária, o físico Walter Mendes Ferreira foi avaliar o material. Os níveis de radiação eram tamanhos que o aparelho usado atingiu o limite máximo de sua escala na primeira leitura, demonstrando não ser possível mensurar a radiação ali presente. Incrédulo, o físico decidiu trocar de equipamento, imaginando tratar-se de uma falha do aparelho.

Alguns integrantes do Corpo de Bombeiros local, por sua vez, decidiram se desfazer da misteriosa amostra jogando-a no rio Meia-Ponte. O acidente só não virou catástrofe porque o físico Walter Mendes chegou a tempo de interromper a ação, explicando aos agentes a gravidade da situação.  

 

Entre mortos, feridos e culpados

Em meio ao despreparo absoluto, Walter foi quem alertou: era uma emergência de saúde pública, o material era radioativo, havia se espalhado e mataria pessoas. As autoridades estaduais tentavam amenizar a gravidade abafando informações e dados sobre a estranha situação que se espalhava.

Começava uma corrida contra o tempo, era necessário um plano imediato de contingência para evitar que o material continuasse se espalhando. Foi acionada a Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen). De posse de um Plano de Emergência Radiológica, foram convocados médicos e especialistas em radioproteção, técnicos do Instituto de Radioproteção e Dosimetria (IRD) e do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen).

De acordo com os dados oficiais da Secretaria de Saúde de Goiás, o contato com o Césio-137 levou à morte quatro pessoas (Maria Gabriela, e mais uma sobrinha e dois funcionários de Devair), e afetou a saúde de mais de mil. O Ministério Público goiano diverge: as investigações da instituição apontam para a morte de 66 pessoas e algo em torno de mil e quatrocentas contaminadas e afetadas diretamente pela radiação.

Em 1996, a Justiça julgou e condenou por lesão corporal culposa e homicídio culposo (quando não há intenção de cometer os crimes), os quatro médicos e o físico que trabalhavam no Instituto Goiano de Radiologia. A negligência em relação ao abandono de equipamentos contendo material radioativo foi a causa primeira do acidente. Eles cumpriram oito meses de pena em regime aberto, além de um ano de prestação de serviços à comunidade. Em 1998, um decreto presidencial os concedeu indulto, extinguindo a sanção. Depois, os responsáveis pelo acidente trabalharam voluntariamente no Hospital da Associação de Combate ao Câncer, em Goiás.

 

Emergência de saúde pública

O Plano de Emergência Radiológica implicou na montagem de uma estrutura de triagem radiológica, realizada no Estádio Olímpico de Goiânia. Em torno de 113 mil pessoas foram monitoradas e 120 delas apresentaram contaminação radioativa extrema. Diante da gravidade de certos ferimentos apresentados, alguns pacientes foram transferidos para centros de referência na cidade do Rio de Janeiro. 

Espalhada a notícia, os habitantes de Goiânia se tornaram alvos de diferentes formas de preconceito. Em outros estados, goianienses foram barrados em hotéis e interpelados em aeroportos e lugares públicos. Tudo que viesse de Goiânia era considerado contaminado. Moradores da cidade buscavam atestados médicos para provar seu estado de saúde e evitar a hostilidade e o preconceito causados pela desinformação.

O que restou do terreno na Rua 57, no Bairro Popular em Goiânia, onde a cápsula de Césio-137 começou a ser desmontada.

Cabia ao poder público decidir o que fazer com a grande quantidade de rejeitos radioativos gerada por toda aquela atividade. E a solução foi bastante amadora: enterrar aquele material num terreno cercado de residências, mas garantindo a segurança pela construção de uma caixa de concreto para conter a radiação.

Como era de se esperar, o anúncio do plano gerou grande celeuma. Especialistas em radiologia disseram que o Césio-137 demoraria pelo menos 300 anos para cessar a radiação letal. Ainda assim, enterrar foi a solução adotada.

Sete anos depois, em 1995, uma lei federal criou o município de Abadia de Goiás para receber os rejeitos do Césio-137, desvinculando o trágico acontecimento da capital do estado. Lá, o governo criou um parque estadual para receber todo o material radioativo, devidamente concretado e isolado. O parque é aberto ao público e realiza atividades de pesquisa, educação e memória relacionadas ao acidente ocorrido em 1987.

 

Doentes no corpo e na alma

Odesson, irmão de Devair e de Ivo, pai de Leide, conta do drama dos irmãos que, apesar de terem sobrevivido ao acidente, nunca conseguiram se recuperar:

“Ele (Ivo) teve uma depressão profunda com a morte da Leide e faleceu em 2003, pela tristeza. O Devair passou a beber muito mais que antes. Segundo ele dizia, se sentia culpado pelo acidente, uma vez que toda a família tinha sido contaminada e sua esposa perdeu a vida. Ele morreu em maio de 1994. O atestado de óbito diz que foi de cirrose hepática, mas exames atestam que ele tinha câncer em três órgãos.” 

Em 1996, o presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou a Lei 9.425, dispondo sobre a concessão de pensão especial às vítimas do acidente nuclear. Contudo, não houve preocupação posterior em garantir a atualização no valor das pensões e, há muito anos, vítimas da radiação do Césio-137 com sequelas irreversíveis denunciam suas dificuldades, dado os valores insuficientes pagos. 

A Associação de Vítimas do Césio-137 (AVCésio), que luta por reparações pelo acidente, denuncia a dificuldade em adquirir medicamentos de uso contínuo na rede pública de saúde. Quando estourou a pandemia de Covid-19, em 2020, Lourdes das Neves Ferreira, mãe de Leide (a sobrinha de Devair, de apenas 6 anos, vitimada pela radiação), relatou como era permanecer viva e doente após a tragédia:

“Para te falar a verdade, hoje eu me sinto abandonada. Passar por tudo que passamos, o desrespeito que tiveram no enterro da Leide, tanta perda. Muita gente da família se entregou à bebida, ao cigarro, peguei meu outro filho tentando suicídio três vezes. Acho que eu tinha direito de ter, pelo menos, um fim de vida digno. E eu não tenho. Pelejo para não ficar me lamentando, mas é direito meu. Na pandemia, o C.a.r.a (Centro Estadual de Assistência aos Radioacidentados) não mandou mais o carro para fazer o transporte das vítimas, disseram que não tinha como higienizar o carro. Meu atendimento foi adiado e não consegui remarcar, não tenho saúde, não consigo meus remédios. A gente não vive, vegeta.”

A psicóloga Suzana Helou acompanha a população afetada pelo acidente com o Césio-137. A profissional produziu uma pesquisa na qual se constata que 85% desse grupo se sente vítima do acidente; 33% acredita que eles ainda sofrem discriminação; 45% reconhece o acidente como um fator de estresse. Mesmo depois de tanto tempo, a marca permanece.

 

O que mudou de lá para cá?

O acidente com o Césio-137 alertou a sociedade brasileira para o fato de, apesar do país contar com duas usinas nucleares próximas às suas duas maiores metrópoles, São Paulo e Rio de Janeiro, não haver normatização relacionada às forma de acondicionar materiais radioativos.

Um dos pontos de triagem criados em Goiânia para identificar potenciais contaminados pela radiação do Césio-137

O acontecimento mobilizou a Agência Internacional de Energia Atômica da ONU. Atualmente, há regulamentação doméstica e internacional sobre o assunto. O protocolo é imobilizar a fonte radioativa em uma matriz sólida, capaz de impedir a dispersão do material contaminante pelo ambiente.

O Césio-137 dessa história, por exemplo, era um pó de alta solubilidade em água e altamente dispersivo. Hoje, a lei brasileira determina que as empresas acondicionem qualquer elemento radioativo em um recipiente cerâmico, de concreto ou betume. Esse tipo de recipiente garante que, caso o material sofra algum impacto ou algum tipo de dano, ele se parta sem se espalhar. 

Depois do acontecimento em Goiânia, diferentes governos federais legislaram e aprimoraram as regras sobre o assunto. A lei delegou aos órgãos reguladores a missão de baixar as instruções complementares sobre o assunto. Hoje o Brasil dispõe de um ordenamento considerado completo na matéria, sobretudo quanto ao tratamento e manuseio de materiais radioativos por empresas e indústrias. 

O acidente do Césio-137 foi o trágico desfecho de uma série de causas, a maioria das quais expõe as nossas carências enquanto sociedade. Talvez a mais importante diga respeito ao papel de uma educação básica bem estruturada, verdadeiro pilar de um projeto nacional de desenvolvimento. Cidadania inclui a capacidade dos indivíduos conseguirem compreender minimamente um fenômeno e suas implicações. Sobre isso, contudo, o Brasil parece preferir continuar cego pelo brilho azulado do desconhecido.

 

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