CHILE REJEITA CONSTITUIÇÃO IDENTITÁRIA

 

Demétrio Magnoli

12 de setembro de 2022

 

A proposta constitucional foi impressa num livro de 170 páginas, que logo se tornou um best-seller

Um “não” retumbante: o Chile recusou a proposta de nova Constituição. No plebiscito, realizado em 4 de setembro, cerca de 62% dos eleitores rasgaram o longo texto, de 388 artigos, produzido pela Convenção Constitucional. Foi o melancólico encerramento de um ciclo inaugurado pelas manifestações de massas de 2019/2020 contra o governo de centro-direita de Sebastián Piñera.

Os manifestantes obtiveram sua principal reivindicação: um plebiscito sobre uma nova Constituição. A Constituição chilena, de 1980, herdada da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), sofreu dezenas de modificações desde a redemocratização. Mantinha, contudo, o núcleo de um modelo econômico ultraliberal. Era este modelo, essencialmente, o alvo dos protestos.

No plebiscito de outubro de 2020, quase 80% aprovaram a elaboração de uma nova Constituição por meio de uma Convenção Constitucional. A participação, contudo, não passou de 51% dos eleitores.

Os 155 integrantes da Constituinte foram escolhidos em maio de 2021, numa eleição com participação inferior a 44%. Os partidos tradicionais, de centro-direita e centro-esquerda, sofreram uma derrota avassaladora. Como resultado, formou-se uma maioria composta por partidos de esquerda, ativistas de movimentos sociais e ativistas dos povos indígenas.

Por que a proposta constitucional emanada da Convenção acabou repelida por aplastante maioria?

O analista político chileno Kenneth Bunker acertou o alvo: “Talvez a melhor forma de encaminhar o processo teria sido um texto com poucas normas, mais geral”. O próprio Bunker explicou a raiz do desvio dos constituintes: “Os chilenos pediam melhor qualidade de vida, não necessariamente uma linha ideológica determinada”. 

O texto constitucional interminável não era uma Constituição de princípios, feita para definir as regras do jogo político, mas uma Constituição programática, feita para determinar os resultados do jogo. A facção majoritária da Constituinte reuniu, na sua proposta, todas as suas doutrinas e dogmas, como se a nação fosse constituída exclusivamente por seus eleitores.

 

Uma nação plural

Manifestação por uma Assembleia Constituinte, em Santiago, capital do Chile, no início de 2020

Não é, como ficou evidente já nas eleições gerais do final de 2021. Gabriel Boric, um dos principais líderes dos protestos de massas, elegeu-se presidente, mas recebeu menos de 26% dos votos no turno inicial, ficando atrás do direitista José Antonio Kast. Sua coalizão de esquerda, Apruebo Dignidad, obteve apenas 21% dos votos para a Câmara de Deputados. A maioria esquerdista da Constituinte foi um fenômeno passageiro.

Boric entendeu o cenário. Diante da derrota esmagadora da proposta de Constituição, falou em “autocrítica” e pediu “mais diálogo” para produzir uma Constituição “que nos represente a todos”. São palavras de um democrata, bem diferentes da sentença sectária do presidente de esquerda colombiano, Gustavo Petro, que lamentou o resultado com um “Pinochet reviveu”.

Pinochet não reviveu. No plebiscito, os chilenos recusaram uma Constituição que faria das ideias, ideologias e dogmas da nova esquerda a lei do país.

Nas democracias, as constituições são documentos de princípios, destinados a estabelecer as regras do jogo político. São recipientes da pluralidade de ideias e da alternância no poder. A proposta constitucional derrotada no Chile era outra coisa: uma Constituição programática, feita para definir os resultados do jogo político.

O texto sintetizava o programa da coalizão majoritária na Constituinte, congelando-o como normativa jurídica intocável. Se aprovado, provocaria a exclusão legal das plataformas políticas dos demais partidos. O voto majoritário no plebiscito envia a mensagem de que, na democracia chilena, cabem diferentes pontos de vista.

 

Políticas identitárias e direitos civis

A ditadura de Pinochet cristalizou um modelo econômico ultraliberal. As manifestações de massas reivindicavam direitos sociais e econômicos: sistemas universais de saúde e educação, uma rede adequada de proteção social. A Constituinte, porém, concentrou-se nas políticas identitárias, especialmente em relação aos povos originais e às mulheres.

Foto oficial da inauguração do governo de Gabriel Boric. Após a derrota no plebiscito, o presidente reformou o gabinete de ministros, integrando a centro-esquerda histórica

No salão principal da Convenção Constitucional, tremulavam as bandeiras de todos os povos indígenas, mas não a bandeira nacional. Quando os constituintes aprovaram o texto final, não se entoou o hino nacional. O Chile foi declarado um “Estado plurinacional”. O artigo 34 concedeu aos povos indígenas “autonomia” e “autogoverno”, inclusive “instituições jurisdicionais tradicionais”.

Sob a tintura da proteção dos direitos de minorias, o que se fez foi um ato de exclusão. A menção às “instituições jurisdicionais tradicionais” abria caminho para a criação de leis e tribunais submetidos a autoridades tradicionais. Os indígenas ficariam, ao menos potencialmente, excluídos das garantias de direitos políticos, civis e individuais garantidos pela Constituição aos demais cidadãos.

A nação única não significa, necessariamente, opressão de minorias. As leis democráticas asseguram a igualdade de direitos e, ainda, a proteção das línguas, das manifestações e dos bens culturais das minorias. No sentido oposto, a oficialização de autoridades tradicionais empurra os povos indígenas a um limbo jurídico. Os indígenas chilenos são, antes de tudo, cidadãos chilenos – eis o que disseram os eleitores.

Elisa Loncón, ativista e professora universitária de origem mapuche que foi eleita deputada constituinte e presidente da Convenção Constitucional

No texto constitucional derrotado, a palavra “gênero” é mencionada 39 vezes, esparramando-se por quase todas as determinações. Os artigos 2 e 163 estabeleceram uma “paridade de gênero” em todos os órgãos eleitos de representação popular – e, ainda, em todos os órgãos da administração estatal, na direção das empresas públicas e, inclusive, nas organizações políticas não-estatais.

As determinações parecem constituir uma defesa da participação das mulheres na vida política do país, mas significam, de fato, uma violação do direito dos cidadãos de escolher livremente seus representantes. A soberania do voto popular, base insubstituível da democracia, perde o seu sentido se a escolha dos eleitos passa por um crivo identitário. Note-se: uma ampla maioria das mulheres chilenas rejeitou, no plebiscito, a proposta constitucional.

A política de gênero abraçada pelos constituintes estendia-se ao sistema de justiça. O artigo 312 determina que os tribunais “devem resolver com enfoque de gênero”. A regra altamente subjetiva erguia o espectro da potencial inconstitucionalidade sobre qualquer decisão judicial.

O mesmo indefinido “enfoque de gênero” aplicou-se ao “exercício das funções públicas” em geral. Na prática, a norma abriria caminho para a judicialização dos mais rotineiros atos administrativos das autoridades eleitas.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos consagra, nos seus artigos 7º e 10º, o princípio da igualdade perante a lei e, no seu Artigo 21º, o da igualdade política. No artigo 8º, a Declaração afirma que “toda a pessoa tem o direito a recurso efetivo para as jurisdições nacionais competentes contra atos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei”. As políticas identitárias sobre os povos originais e as mulheres inscritas na proposta constitucional chilena ignoram tais artigos. Os eleitores fizeram bem em dizer um sonoro “não”.

 

Parceiros

Receba informativos por e-mail