OS RUSSOS QUE DIZEM NÃO À GUERRA

 

Natalia Verenich

(Cidadã russa que participou dos protestos contra a guerra na Ucrânia em São Petersburgo)
14 de março de 2022

 

Caros,

Vou lhes contar fragmentos da vida dos cidadãos e cidadãs russos nestes últimos dias.

Alexei Navalny, líder opositor na Rússia, em 2017

Alexei Navalny, líder opositor russo, em 2017

Começo com uma moça de 25 anos, formada recentemente na universidade e filha de amigos meus, de nome Arisha. Ela é cheia de vida e tem o sorriso aberto como o de uma criança valente, daquelas que saem para desafiar os maiores quando os outros têm muito medo. Já esteve em manifestações contra o governo de Vladimir Putin e a favor do líder da oposição, Alexei Navalny, que inclusive foi vítima de envenenamento em 2020 e segue preso na Rússia.

É incrível que, tão jovem, Arisha seja tão politizada e não tenha medo de manifestar sua opinião, lutar pela liberdade e pelos direitos humanos, mesmo com o risco de ser presa. No dia 25 de fevereiro, sexta-feira, quando o conflito na Ucrânia estava apenas começando, ela decidiu seu unir a outros cidadãos russos para protestar contra a guerra.

Como se sabe, está proibido chamar o que acontece na Ucrânia de guerra, sob risco de ser acusado de extremista. O governo russo determina que a coisa toda seja descrita apenas como uma “operação militar especial”.

De antemão, Arisha sabia que seria presa. Já havia sido em outras ocasiões e, mais uma vez, não quis se calar. Ela estava na Avenida Nevsky, a mais importante de São Petersburgo, perto do centro comercial Gostiny Dvor e em frente ao Grande Hotel Europa, segurando, em silêncio, um cartaz escrito “Não à guerra” e com a imagem de Putin com as mãos sujas de sangue.

 

Noite na prisão

Em minutos apareceram seis policiais da Rosgvardia, a Guarda Nacional, com sua pesada vestimenta negra, capacetes e cassetetes.  Sem apresentar qualquer razão, os policiais algemaram Arisha e a levaram para um ônibus, onde 14 outros manifestantes já estavam detidos. Quando a jovem invocou seus direitos de cidadã e perguntou o motivo de estar sendo presa, foi tratada com brutalidade.

O ônibus seguiu para o Departamento de Policia, onde os manifestantes tiveram seus documentos apreendidos. Quando disseram a Arisha que colheriam suas impressões digitais, ela se recusou a colaborar e acabou dormindo na solitária, onde passou a noite. A solitária era um cubículo frio, com paredes mofadas, o chão imundo e um colchão pequeno e fino em que mal cabe um cachorro. A temperatura estava por volta dos quatro graus negativos na rua.

Arisha foi solta, mas primeiro teve que passar por um tribunal onde lhe foi cerceado o direito à defesa. A acusação era de participação em um protesto não autorizado pelo governo e a pena foi uma multa de dez mil rublos (o equivalente a US$ 130 no câmbio daquele dia ou, em valores russos, um salário mínimo, um mês de trabalho). Não importa que em nossa Constituição esteja escrito que temos direito de expressar nossa opinião, que temos a liberdade da palavra… A realidade mostra que não.

Até agora Arisha teve sorte e tem sido libertada, porque, conforme a lei em vigor na Federação Russa (artigo 20.2), o castigo  poderia chegar a 15 dias de prisão e multa de 10 a 20 mil rublos, ou até cem horas de trabalhos forçados… Naturalmente, o governo diz que o tribunal é justo, imparcial.

Quando inquirida sobre a razão de arriscar a própria liberdade, ela responde, em tom confiante, que acredita em construir uma Rússia maravilhosa, com eleições democráticas e direito à liberdade e ao pluralismo de pensamento.

St Petersburgo, protesto 2021

Manifestação contra a prisão de Navalny em São Petersburgo, em fevereiro de 2021

Poucos dias depois, sair para protestar tornou-se muito mais arriscado, pois a cada dia o nosso Parlamento (Duma) aprova leis mais absurdas. A última usa uma interpretação abusiva sobre “fake news” para decidir o que pode ou não ser dito sobre a “operação militar” na Ucrânia, com penas que podem chegar a 15 anos de prisão. A polícia e o governo têm tanto medo do próprio povo!

 

“Eu sobrevivi ao cerco a Leningrado”

Vocês já sabem que temos problemas com tudo: as sanções vão afetar a cada um dos habitantes da Federação Russa; as sanções vão acabar lentamente com cada um de nós. Usei minha poupança durante os dois anos de pandemia e agora que acreditava que tudo iria melhorar com relação ao trabalho. Não irá: a Rússia está isolada. Assim como eu, várias pessoas estão ficando sem emprego e sem reserva. Será que teremos que esperar pelo pior para o povo acordar?

Os problemas já começaram no setor bancário, com filas enormes nas agências para retirar os rublos, dólares, euros. Eu precisava sacar o pouco dinheiro que tinha depositado (uns 400 euros).  Quando estava na fila vi uma mulher judia, alta, com quase 90, um olhar muito claro, dignidade incrível. Os nossos olhares se cruzaram e eu vi uma expressão que ficou marcada na minha memória. Ela me olhava como se perguntasse: até quando? Até quando vamos ser tão covardes? Até quando vamos aguentar? Mas e esse medo que nós temos, esse medo permanente, medo de ser preso, de ser torturado…

Nos entreolhamos com tanta cumplicidade que tomei coragem para me aproximar e sussurrei: “Eu também o detesto”. Ela me olhou assustada, tímida e incrédula como se eu fosse uma extraterrestre, e me falou com esperança na sua voz: “Posso tocar em você?”

Nos olhos dela apareceram lágrimas e ela continuou: “Eu sobrevivi ao cerco a Leningrado (como se chamava São Petersburgo no tempo da URSS), vi tanto sofrimento, mas sempre soube que o povo russo unido iria vencer a guerra contra os nazistas…Eu sempre soube que juntos somos uma força enorme; somos um povo sofrido, mas valente; amigável… e agora temos medo de quem? Temos medo de falar, de defender nosso futuro, dos nossos filhos e netos… Ninguém se importa e parecemos escravos com a mente escravizada.”

Ela me abraçou e agradeceu por compartilharmos nossos sonhos e receios; por se reconhecer em mim.

 

Coragem para sair às ruas

Manifestante russa ergue cartaz contra a invasão da Ucrânia

Não consegui esquecer aquela senhora tão altiva, sua dignidade ficou em minha mente. Ela me fez pensar: somos 144 milhões de russos que sofremos muito nas guerras e agora temos a paz como lema.

“Não à guerra!”. Como podemos ter medo de protestar contra guerra? Como podemos ser chamados de extremistas se lutamos contra guerra? Como alguém pode pegar 15 anos de prisão por chamar a guerra de guerra?! Sinto que não estou entendendo nada, as coisas parecem ter virado de cabeça para baixo.

Amanhã, 6 de março, haverá uma nova rodada de manifestações. Apesar de toda a repressão, os russos não irão se calar. Eu também vou, aconteça o que acontecer. Eu e todos os participantes não conseguimos mais nos calar. Sabemos que a cada dia o cerco repressivo se aperta mais, mas queremos ter a consciência tranquila por havermos defendido aquilo em que acreditamos.

Nossas almas saberão que fizemos tudo para que acabasse essa guerra estúpida contra os nossos irmãos ucranianos, que querem sua liberdade. Queremos que este monstro que provocou a guerra deixe nossos povos em paz. Ele nunca deveria dormir tranquilo de tanto sangue quem tem nas mãos.

 

“Não à guerra”

Agora dirijo-me a todos os meus amigos ucranianos, russos, brasileiros, espanhóis, Portugal, da América Latina e de qualquer parte do mundo.

O dia 24 de fevereiro de 2022 entrará para a história da Rússia como um dos mais obscuros e tristes. Me dá muita vergonha o que está acontecendo e não há nenhuma justificativa para as ações do governo russo em relação à Ucrânia – um Estado independente, com seu presidente Volodymyr Zelensky eleito democraticamente, firme em seu posto, se portando com dignidade em defesa de seu povo e do seu país, mantendo-se fiel a seus princípios de honra, consciência e dignidade.

O dia do início da guerra contra a Ucrânia marca a agressão a um país pacífico, que elegeu seu caminho democrático, europeu. A “libertação” da Ucrânia que Putin alega é, na realidade, a invasão de um Estado soberano. Isso será uma mancha sangrenta na história russa que se abaterá sobre gerações e custará muito a ser apagada.

Desgraçadamente, nesse momento o mundo nos vê como o império da maldade. Eu sinto muito por tudo o que está acontecendo e peço perdão junto com outros milhões de russos que também pensam assim, mas têm medo das reações imprevisíveis de nosso governo. Hoje vamos sair às ruas em São Petersburgo, Moscou, Ekaterinburgo. Vamos participar das manifestações contra a guerra e em favor da paz. E vamos fazer isso até que acabe esse regime totalitário.

Glória à Ucrânia! Glória a todos os que nesse momento estão defendendo cada pedacinho de sua terra natal, de sua querida pátria ucraniana. Força e animo para todos nós.

Moças protestam contra a invasão da ucrânia

Desde o inicio da guerra, manifestações contra a guerra de agressão ocorrem em todo o mundo. Em Vancouver, Canadá, em 26 de fevereiro, o protesto foi encabeçado por filhas de imigrantes ucranianos

 

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