Audiência do Tribunal Uigur, na Church House, em Londres
Os crimes contra a humanidade cometidos no Xinjiang chinês derivam de ordens e orientações diretas provenientes do núcleo do poder. As provas daquilo que já se suspeitava foram reunidas pelo Tribunal Uigur, uma corte independente instalada em Londres cujas audiências iniciaram-se em junho.
O Tribunal Uigur não tem autoridade oficial, mas não é um órgão de agitação política. Sua criação foi uma iniciativa dos uigures da diáspora, amparada pela Coalizão para a Resposta ao Genocídio. A presidência da corte é ocupada por Geoffrey Nice, ex-promotor-chefe do processo do ex-presidente da Sérvia, Slobodan Milosevic, durante o julgamento dos crimes contra a humanidade perpetrados na guerra da antiga Iugoslávia, pelo Tribunal Penal Internacional (TPI).
Os Xinjiang Papers são uma extensa coleção de documentos autenticados por especialistas convidados pelo Tribunal Uigur para avaliá-los. O The New York Times publicou, em setembro de 2019, parte dessa coleção. O conjunto acaba de vir à luz, junto com a comprovação de sua autenticidade. Agora, não restam dúvidas de que a bárbara e massiva repressão contra os muçulmanos uigures obedecem a comandos de Xi Jinping e de seu primeiro-ministro, Li Keqiang.
A onda repressiva foi desencadeada após dois brutais atos terroristas de jihadistas do Xinjiang contra pedestres e passageiros de trem em Pequim, em 2013, e Kunming, no ano seguinte. No lugar de perseguir exclusivamente as redes de terror, o regime lançou uma campanha de destruição da cultura muçulmana dos uigures.
O jihadismo é uma perversão do Islã, mas a ditadura chinesa tende a equiparar um ao outro. No Xinjiang, desfiguraram-se mesquitas, eliminando-se inscrições e símbolos religiosos de suas fachadas
Dali em diante, centenas de milhares foram enviados a campos de trabalhos forçados, nas colheitas de algodão e a centros carcerários de “reeducação”. Crianças foram separadas de suas famílias e mulheres sofreram esterilização forçada. Adrian Zenz, um dos especialistas encarregados da autenticação dos documentos, explica que eles revelam a intenção dos líderes do Partido Comunista Chinês (PCC) de cometer “genocídio cultural”.
Milhares de jovens do Xinjiang estudam fora das cidades e povoados onde residem seus familiares. No verão, após o término dos exames semestrais, retornam às suas casas para as férias. Contudo, desde 2017, muitos deles não mais encontram seus pais, enviados às instituições de “reeducação”.
Instruções do regime às autoridades locais do Xinjiang sobre os campos de “reeducação”, publicadas pelo The New York Times
Uma parte dos Xinjiang Papers é constituída por instruções às autoridades locais sobre o discurso a ser adotado diante desses jovens. Onde está minha família? “Eles estão numa escola de treinamento implantada pelo governo” – eis a resposta ritual prescrita pelo regime. Na hipótese de novos questionamentos, seria preciso dizer que os pais desaparecidos não são considerados criminosos, mas não podem abandonar a “escola”.
Acalmar, ameaçar. Numa das instruções, as autoridades são convocadas a dizer aos adolescentes que seu comportamento pode influenciar a duração do internamento dos familiares, abreviando-o ou prolongando-o. “Temos certeza de que vocês os apoiarão, porque isso é para o bem deles mesmos – e também para o bem de vocês”.
Tudo começou com a visita de Xi Jinping ao Xinjiang em abril de 2014, semanas depois do sangrento ato terrorista na estação ferroviária de Kunming, que deixou 31 mortos, por esfaqueamento, além de mais de uma centena de feridos. Durante e depois da visita, o líder supremo pronunciou uma série de discursos secretos para altas autoridades regionais e nacionais. Neles, encontra-se a receita da campanha repressiva.
Xi Jinping conclamou a uma “guerra inclemente” contra “o terrorismo, a infiltração e o separatismo”, por meio dos “órgãos da ditadura”. A indicação de Chen Quanguo como novo chefe regional do PCC no Xinjiang, em agosto de 2016, colocou as engrenagens em movimento. Os discursos do líder foram distribuídos às autoridades locais e, rapidamente, ergueram-se os campos de “reeducação”.
No discurso mais significativo, Xi Jinping afirma que a estabilidade do Xinjiang é condição necessária para os objetivos geopolíticos principais da China no século XXI. Na sequência, explica que a região encontra-se em posição estratégica, como elo da “Nova Rota da Seda” – isto é, dos projetos de ferrovias e gasodutos destinados a conectar a China à Europa.
Fonte: Reuters
“A estabilidade no Xinjiang e mesmo no país inteiro depende do sul do Xinjiang”, alertou o líder chinês, indicando a necessidade de “um golpe esmagador” capaz de “comprar-nos tempo”. Em fevereiro de 2017, autoridades das prefeituras da região cumpriram um intenso programa de duas horas diárias de estudo daqueles discursos presidenciais.
A questão étnica e religiosa figura no centro das preocupações do regime. Num dos discursos, Xi Jinping argumenta que “a composição populacional” é um fundamento crucial para “a paz e a estabilidade de longo prazo”. Uma alta autoridade local mencionou a passagem, em julho de 2020, alertando para a “baixa proporção” de chineses da etnia Han, majoritária, no sul do Xinjiang. Daí, como atestam outros documentos, decidiu-se promover a transferência compulsória de 300 mil colonos do leste chinês para a parte meridional da região até 2022.
Os Xinjiang Papers não surpreendem ninguém que tem uma noção razoável do funcionamento do totalitarismo chinês. Mas, política e juridicamente, evidenciam a fonte direta dos crimes contra a humanidade que vitimam a população uigur.
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