ÉTICA MÉDICA, UM ENSAIO HISTÓRICO I

 

José Arnaldo Favaretto

(Médico graduado pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo)

 

DOS “DOUTORES DA MORTE” À DECLARAÇÃO DE HELSINQUE

Os atuais códigos de ética médica surgiram do repúdio ao nazismo. Contudo, o debate ético na medicina e códigos de ética são muito anteriores.  

Mas, afinal, onde se situam os limites da ética – ou seja, do que se permite e do que se proíbe por razões extralegais? O físico brasileiro José Goldemberg registrou a natureza histórica das relações entre ciência e ética: “A fronteira entre o ético e o que não é ético é claramente um ‘alvo móvel’. Dessa forma, sociedade e ciência assumem compromissos que variam com o tempo.” (“Ciência, ética e sociedade”, O Estado de S. Paulo, 18/11/1997). A discussão sobre ética acompanhou, como uma sombra, o surgimento das vacinas.

 

Variolação

Até o século XVIII, a varíola era uma doença potencialmente fatal. Em certas populações, surtos chegavam a acometer a totalidade dos indivíduos e, apenas no continente europeu, as mortes chegavam a 400 mil ou 500 mil por ano. No início de 1721, Mary Wortley Montagu viu-se em meio a um violento surto de varíola no condado inglês em que vivia e, temendo pela saúde de seus dois filhos, isolou-se completamente em casa. Cinco anos antes, ela própria havia sucumbido à doença e perdera seu irmão William.

Mary Wortley Montagu (1689-1762)

Todavia, Lady Montagu conhecera um meio de evitar a doença. Após ter adoecido, ela residiu por mais de um ano em Constantinopla, acompanhando o marido Edward, embaixador britânico junto ao Império Turco-Otomano. No Oriente Médio, na China e em algumas regiões da África, era prática comum inocular propositalmente pequenas quantidades de secreções das pústulas de varíola na pele de pessoas sadias. Elas adquiriam a doença, porém raramente morriam, diferentemente das que adquiriam a doença de outra forma.

Pode parecer estranho alguém se expor deliberadamente a uma patologia tão grave; entretanto, como em certas comunidades a infecção era quase uma certeza, melhor seria escolher como e quando adoecer.  Em Constantinopla, Lady Montagu entrou em contato com a “inoculação” (ou “variolação”), que consistia em escarificar superficialmente a pele dos braços ou do rosto com um objeto perfurante previamente contaminado com secreção obtida de pústulas de pessoas acometidas de varíola.

Durante alguns anos, Lady Montagu viajou pela Inglaterra realizando a técnica, cada vez mais convencida de que as pessoas inoculadas, ainda que contraíssem a varíola, teriam uma forma branda da doença e não iriam morrer. Todavia, resistências ao método vinham de todos os lados, principalmente dos médicos, que se opunham tenazmente à variolação. Mary Montagu  encontrou resistência dentro da própria família: sua irmã, Lady Gower, recusou-se a inocular o filho William, que tragicamente veio morrer de varíola.

A prática da variolação disseminou-se por outros países europeus e chegou também aos Estados Unidos, tendo sido adotada por George Washington e por Napoleão Bonaparte como preparação das tropas para as batalhas. Já no final do século XVIII, chegou ao conhecimento do médico e naturalista britânico Edward Jenner que pessoas expostas à varíola bovina (em inglês, cowpox) raramente eram acometidas pela varíola humana (smalpox). Daí, nasceu a vacinação.

Variolação, no século XVIII

Em 1796, Jenner coletou secreção de pústulas das mãos de Sarah Nelmes, uma ordenhadora que havia adquirido a varíola bovina. O material foi então inoculado na pele do braço do pequeno James Phipps, com 8 anos de idade. Seis semanas depois, Jenner inoculou novamente o braço do garoto, mas desta vez com secreção obtida de pústula variólica. O resultado foi espantoso: o menino não desenvolveu a varíola. Como a cowpox é oriunda do gado bovino, o tratamento foi denominado vacina (de vaccinae, “derivado da vaca”).

Da Inglaterra do século XVIII para o Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX. Habitar a capital do Império do Brasil naquela época era conviver com o risco de contrair febre amarela e morrer em decorrência. Preocupado, o então imperador Pedro II levou o assunto para discussão na Academia de Ciências de Paris, onde tinha assento Louis Pasteur, amigo do imperador.

Depois de uma longa troca de correspondência entre ambos, Pasteur apresentou a Pedro II uma proposta: queria testar a segurança e a eficácia de uma vacina antirrábica que vinha desenvolvendo, mas que só havia sido testada em cães. Sugeriu, então, aplicar a vacina em prisioneiros brasileiros condenados à morte (Maurício Torres Assumpção, A história do Brasil nas ruas de Paris, RJ, Casa da Palavra, 2014).

Pedro II não aceitou a proposta; contudo, afirmou que poderia mudar de ideia caso Pasteur se dedicasse ao desenvolvimento de uma vacina capaz de prevenir a febre amarela. Diante da negativa de Pasteur em seguir por este caminho, a ideia da experimentação em prisioneiros brasileiros foi abandonada.

Das duas histórias, saltam indagações. Seria aceitável a prática preconizada por Lady Montagu de inocular material sabidamente infectante em pessoas sadias? Jenner agiu eticamente ao aplicar no garoto James secreção originada de lesões da varíola bovina e, depois, inoculá-lo com material proveniente de lesões da própria varíola humana? Seria moralmente tolerável aplicar experimentalmente a vacina antirrábica em prisioneiros condenados à morte?

 

“Doutores da morte”

Alfred Ploetz (1860-1940) formou-se em Medicina e dedicou praticamente toda a vida a divulgar ideias eugenistas baseadas em uma suposta “superioridade ariana”, propondo a eutanásia de crianças com deficiência e a proibição de que pessoas com determinadas patologias viessem a ter filhos. Num de seus livros, descreveu uma sociedade em que estas e outras ideias eugênicas pudessem ser aplicadas.

Por seus trabalhos sobre as consequências da guerra na reprodução humana, foi indicado ao Nobel da Paz em 1936, ano em que o contemplado foi o diplomata argentino Carlos S. Lamas. Em 1937, Ploetz juntou-se ao Partido Nazista alemão, tendo sido um dos principais promotores da visão eugênica que caracterizou o nazismo.

Experimentos médicos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial

Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), os campos de concentração alemães serviram de macabros “laboratórios” onde diversos médicos colocaram em prática experimentos destinados, entre outros propósitos, a demonstrar a supremacia de fatores genéticos na manifestação de certas características humanas, base das teorias eugenistas. Tornaram-se tragicamente conhecidos os experimentos envolvendo gêmeos e pessoas com heterocromia (olhos com cores diferentes) escolhidos entre os prisioneiros dos campos.

A barbárie chegava à tentativa de se criarem gêmeos conjugados (ou “siameses”), unindo-se cirurgicamente pares de gêmeos. A maioria morreu de infecções ou sangramentos. Paralelamente, numerosas outras experimentações com seres humanos foram cruelmente desenvolvidas, sem sequer o emprego de anestésicos: transplantes de ossos e músculos, traumas cranianos, exposição prolongada ao frio, a altitudes elevadas ou à ingestão de água salgada, eletrochoque, vivissecção, esterilização, inoculação com plasmódio (causador da malária) ou com o vírus da hepatite A.

A experimentação nazista com seres humanos foi levada a termo por numerosos médicos, entre eles Karl Brandt, Joseph Mengele, Carl Clauberg, Aribert Heim e Hans Eppinger. Depois da guerra, muitos foram julgados e condenados à morte (condenado em Nuremberg, Brandt foi enforcado em 1948); alguns conseguiram fugir (Mengele morreu em 1979, em Bertioga, no Brasil, onde vivia sob pseudônimo). Envolvido em uma troca de prisioneiros entre os EUA e a antiga URSS, Clauberg foi libertado e, inacreditavelmente, voltou a exercer a Medicina por alguns anos.

 

De Hipócrates a Nuremberg

“Ética não é apenas o questionamento do proibido e do permitido, mas a busca da conveniência e da oportunidade. (…) A bioética não almeja restaurar uma felicidade perdida, nem apenas conservar valores tradicionais; gostaria de guiar modestamente na estrada do futuro, no qual se penetra, queiramos ou não.” (Hubert Lepargneur, filósofo francês).

           Juramento de Hipócrates

Instado por jornalistas a comentar sobre a situação do Brasil do início do século XX, o historiador cearense Capistrano de Abreu sugeriu que a Constituição tivesse um único artigo: “Todo brasileiro fica obrigado a ter vergonha na cara”. (Humberto de Campos, O Brasil anedótico, RJ, Livraria José Olympio, 1936). Num misto de analogia e ironia, todo código de ética médica poderia ao menos iniciar-se com a frase latina primum non nocere (“primeiro, não prejudicar”).

De origem incerta, a frase está presente – literalmente ou com modificações – nas diversas versões do Juramento de Hipócrates, um dos mais conhecidos textos médicos gregos. Embora composto de vários compromissos, o “princípio da não-maleficência” é o ponto fulcral do juramento pregado por Hipócrates de Cós (460-370 a.C).

É do mesmo período a obra A República, na qual Platão afirma que “nenhum médico, exercendo seu ofício, considera preferencialmente o seu bem no que prescreve, mas o do paciente; para o médico verdadeiro é também uma regra ter o corpo humano como sujeito e não como um meio de ganhar mais dinheiro”. Entretanto, a primeira versão conhecida de um código de ética médica é a obra Formula Comitis Archiatrorum do século V.

Já no início do século XIX, Thomas Percival publicou Medical Ethics, obra pioneira contemporânea dedicada ao tema, que traz a primeira menção específica à expressão “ética médica”. A obra de Percival serviu de base para o Código de ética da Associação Médica Americana, de 1847.

Foi somente no início do século XX que surgiram as primeiras regulamentações sobre pesquisas com seres humanos. É desta época um regulamento prussiano que tornou obrigatório o consentimento dos pacientes submetidos a qualquer forma de experimentação. Em 1931, o governo alemão editou as Diretrizes para Novas Terapêuticas e Pesquisas em Seres Humanos, baseadas na beneficência, na não-maleficência e no consentimento.

A existência desses instrumentos não foi capaz de barrar as atrocidades perpetradas com prisioneiros dos campos de concentração. No contexto dos Julgamentos de Nuremberg, que levaram aos tribunais oficiais nazistas acusados de crimes de guerra, os médicos responsáveis pelos experimentos perpetrados nos campos de concentração também foram levados ao banco dos réus. Muitos dos acusados alegaram que seus experimentos não diferiam muito dos que eram realizados antes da guerra, uma vez que não havia regulamentação clara a respeito.

Tribunal de Nuremberg, 1945-1946

A partir de então, o Conselho Norte-Americano de Crimes de Guerra elaborou um memorando contendo inicialmente seis pontos, posteriormente estendido para dez. O documento, de 1947, que se tornou conhecido como Código de Nuremberg, é considerado um dos mais valiosos regulamentos da história das pesquisas na área médica, embora não tenha força de lei em nenhum país. “O Código [foi] desenhado para proteger a integridade de participantes de pesquisas, estabelece condições para a condução ética de pesquisas envolvendo seres humanos, enfatizando o ‘consentimento voluntário’ do participante para a pesquisa.” (Revista Bioética, Conselho Federal de Medicina, Brasília, 1993).

Em 1948, a Associação Médica Mundial lançou uma lista de princípios norteadores da prática médica conhecida por Declaração de Genebra, que prega o respeito aos direitos humanos de todos os pacientes, a importância do compartilhamento de informações e de conhecimento entre profissionais e com a comunidade em geral e o direito e a obrigação dos profissionais de saúde em dedicar suas habilidades para o benefício de toda a sociedade.

Em 1964, a Associação Médica Mundial lançou a Declaração de Helsinque, tratando da experimentação científica envolvendo seres humanos. Mesmo também sem força de lei, serviu e ainda serve de fundamentação para códigos de ética e regulamentações de pesquisas biomédicas em quase todo o mundo.

 

 

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