Nos últimos meses, a Europa assiste a uma batalha pela garantia dos direitos LGBT nos dois Estados iliberais do continente: Polônia e Hungria. Ambos são dirigidos por governos conservadores abertamente homofóbicos que agitam a bandeira do cristianismo para justificar sua oposição à igualdade de direitos de homossexuais, bissexuais e transsexuais em seus territórios.
As posições desses governos estão em conflito com os princípios democráticos da União Europeia. Hungria e Polônia devem respeitar a Convenção Europeia de Direitos Humanos e toda a legislação sobre o tema, que é comum aos 27 Estados do bloco. As instituições da UE como o Parlamento Europeu e a Comissão Europeia têm ameaçado aplicar sanções para forçar a revisão de legislações e medidas homofóbicas.
O confronto mais recente e agudo se dá com a Polônia, onde governos provinciais criaram uma “zona livre de LGBT”. O governo polonês evoca o princípio da soberania nacional para exercer o direito de divergir dos princípios do bloco. Há pouco, o tribunal constitucional, submisso ao governo, decidiu que a legislação nacional tem primazia frente à legislação comunitária europeia. O desrespeito aos direitos LGBT funciona, para o governo do primeiro-ministro Mateus Morawiecki, do Partido Lei e Justiça (PiS), como pretexto para acelerar o processo de dilapidação da democracia no país, com o controle absoluto do Executivo sobre o Judiciário. A UE é um entrave nesse processo de degradação da democracia.
Viktor Orban (à esquerda) e seu colega polonês, Mateus Morawiecki
O PiS governa a Polônia desde 2015 e, no ano passado, conseguiu reeleger o presidente Andrzej Duda em um pleito marcado pela polarização em torno da questão LGBT. Já a Hungria é governada pelo Fidesz, partido ultraconservador e populista que tem como líder o primeiro-ministro Viktor Orban, um modelo para a direita populista ao redor do mundo.
Orban também utiliza a homofobia para mobilizar apoio. Protagoniza eventos ultraconservadores de grupos de “defesa da família”, definindo a “reprodução natural” como “interesse nacional”. No entanto, a pressão da UE sobre o governo húngaro é menos incisiva do que sobre o polonês.
Em diversas oportunidades, a Hungria passou ilesa frente às sanções europeias provocadas pela escalada autoritária e iliberal no país. A razão para isso chama-se imigração. A posição estratégica da Hungria em relação às rotas de imigrantes e refugiados que buscam alcançar a Europa ocidental favorece uma relação de barganha entre Budapeste e Bruxelas, habilmente explorada por Orban.
No olho do furacão, cidadãos LGBT poloneses e húngaros sofrem abusos diários de parcela da população instigada por esses governos a hostilizarem a minoria. Segundo pesquisa realizada em 2020 pela Agência da União Europeia pelos Direitos Fundamentais, o medo impera entre nas comunidades LGBT nos dois países. Entre os poloneses, 83% evitam sempre ou com frequência andar de mãos dadas com seu par em público; entre os húngaros, são 72%. Na Polônia, mais da metade dos LGBTs evitam transitar em determinados locais para evitar possíveis ataques; na Hungria, esse índice é de 40%. Em termos de assédio verbal, 42% dos LGBTs poloneses sofreram esse tipo de violência, ante 35% dos húngaros.
A torcida de futebol húngara foi punida pela UEFA durante a Eurocopa 2020, após manifestações homofóbicas nas arquibancadas durante o jogo contra Portugal
Polônia e Hungria são os focos da homofobia patrocinada pelo Estado no interior da União Europeia. As “zonas livres de LGBTs” começaram a surgir em 2019 na província de Switeokryzskie, sul da Polônia, com uma declaração “em oposição à ideologia LGBT”. O projeto consiste em criar um “paraíso” para conservadores se refugiarem da alegada “decadência moral” dos grandes centros urbanos europeus.
Fonte: Deutsche Welle
Nos últimos dois anos, cerca de cem regiões polonesas aderiram, transformando todo o sudeste do país em uma zona homofóbica apoiada pelas autoridades locais. O movimento ocorre com a anuência silenciosa do governo nacional, que não agiu para intervir nos governos locais. Foi o que despertou a fúria institucional da UE contra o governo do PiS.
Já na Hungria, o governo apresentou uma lei antipedofilia para proteger crianças e adolescentes de conteúdos midiáticos e artísticos considerados perigosos. Maliciosamente, a lei inclui a proibição de exibição ou promoção de qualquer conteúdo relacionado à homossexualidade ou redesignação de sexo em materiais educacionais ou programas de TV dedicados a menores de 18 anos. Os partidos de oposição, já muito enfraquecidos, não se opuseram à legislação por temor da alegação de que a esquerda promove a pedofilia e o aliciamento de menores.
Assim, a lei passou com tranquilidade no parlamento, em uma vitória esmagadora de Orban e seus aliados. A comunidade LGBT húngara e europeia imediatamente apontou o viés homofóbico da lei, que na prática identifica qualquer conteúdo com conotação homoafetiva como facilitador da pedofilia. Os críticos dizem também que o texto é bastante vago, podendo ser utilizado contra qualquer gesto em favor de LGBTs, como empunhar a bandeira do arco-íris em público, tolhendo a liberdade de expressão.
Manifestação pelos direitos LGBT na Polônia em 2020
Em meio à polêmica, houve uma reação fortíssima da sociedade civil dentro e fora dos países em questão. Na Polônia, desde 2020 sucedem-se manifestações públicas da comunidade LGBT nas principais cidades. Os protestos foram duramente reprimidos pela polícia, com a prisão de militantes destacados.
Em resposta, em março de 2021, deputados no Parlamento Europeu aprovaram uma declaração afirmando que os 27 países da UE constituem uma “zona de liberdade” para os LGBT, contrariando o projeto homofóbico polonês.
Quanto à Hungria, grupos de defesa dos direitos humanos afirmam que a lei aprovada afetará até mesmo a veiculação de produções famosas do cinema e da literatura, como os livros da saga juvenil Harry Potter. Pela primeira vez, paira o espectro da censura dentro do bloco europeu.
Até a Eurocopa 2020 foi atingida pelo debate. Em junho, logo após a aprovação da lei antipedofilia, o primeiro-ministro húngaro cancelou sua presença no jogo Alemanha versus Hungria, em Munique. Os principais times alemães desafiaram a posição “anti-política” da UEFA exibindo em suas fachadas a bandeira do arco-íris. Já a prefeitura de Munique decorou todo o percurso que Orban faria até o estádio com a bandeira LGBT. Na ausência do líder húngaro, multidões ocuparam o caminho para se manifestarem em defesa dos valores da UE e contra a homofobia.
A Comissão Europeia abriu, em 15 de julho, processos contra a Hungria e a Polônia pelo desrespeito aos princípios democráticos do bloco. Segundo a declaração de imprensa da Comissão, a “igualdade e o respeito à dignidade e aos direitos humanos são valores centrais da UE, consagrados no Artigo 2º do Tratado da União Europeia. A Comissão utilizará todos os instrumentos à sua disposição para defender esses valores”. Foi dado um prazo de dois meses para que os dois governos se manifestassem, que venceu em 15 de setembro.
O estádio de Munique, sede da Eurocopa de 2020, iluminado em protesto contra a lei homofóbica húngara
Sobre a Polônia, paira a ameaça de corte de fundos para as províncias e cidades que aderiram às zonas de exclusão, cruciais para o desenvolvimento econômico dessas áreas. Contudo, em 7 de agosto, o Tribunal Constitucional polonês afirmou que a lei do país se sobrepõe à do bloco, sendo impossível às autoridades europeias intervirem na legislação interna. A decisão foi interpretada como uma declaração de guerra ao restante do bloco, tendo em vista o primado do direito comunitário sobre o direito nacional. Em 23 de setembro, a província de Switeokryzskie voltou atrás e revogou a sua declaração anti-LGBT; outras regiões seguiram o mesmo movimento. As que resistem têm o apoio do governo polonês.
Em 19 de outubro, em uma sessão do Parlamento Europeu dedicada à resolução do conflito, o primeiro-ministro Morawiecki defendeu que se trata de uma “cruzada” polonesa pela democracia e a soberania nacional contra o “centralismo” de Bruxelas. As declarações do premiê geraram intensos debates com os parlamentares e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. “Não podemos e não vamos permitir que os nossos valores comuns sejam postos em risco; a Comissão vai agir”, afirmou Von der Leyen. A reação pode envolver o corte dos fundos comunitários e a suspensão do direito ao voto do país na UE.
Não é interesse da Polônia ou da Hungria deflagrar um processo de saída da UE . Os dois países dependem do mercado comum europeu, onde seus cidadãos circulam livremente para conseguir emprego. A dependência da ajuda financeira de Bruxelas desestimula arroubos de abandono do bloco.
Para a UE também não é interessante perder mais membros, pois isso sinalizaria o enfraquecimento do bloco, especialmente após a retirada britânica. Não existe um mecanismo formal de expulsão de membros do bloco; a saída deve ser voluntária, como no caso do Brexit. A punição mais grave prevista no ordenamento da UE é a suspensão do direito ao voto, inscrita no Artigo 7º de seu tratado constitutivo, que depende de um árduo caminho para ser acionado.
O relacionamento entre Bruxelas e Budapeste, no entanto, é menos enfático e ameaçador do que com Varsóvia, envolvendo complexas barganhas que misturam a defesa de valores democráticos com o interesse de controlar a entrada de imigrantes e refugiados.
Viktor Orban e Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, em agosto de 2019. Um peso, duas medidas
A Hungria já sofreu pelo menos 40 admoestações por desrespeito aos valores e direitos fundamentais europeus desde o início do mandato de Von der Leyen na Comissão Europeia. Ainda assim, poucos deles avançaram tão rápido como os processos contra a Polônia. Durante a pandemia, Orban concentrou poderes de exceção, sem maiores reações.
A Hungria é estratégica para a UE. Situada entre os Bálcãs e a Europa Central, funciona como porta de entrada de imigrantes e refugiados do Oriente Médio e da Ásia Central que buscam a Alemanha e os demais países da Europa Ocidental. As ações xenofóbicas do governo húngaro, apesar de combatidas discursivamente pela UE, são convenientes para os demais membros do bloco, pois impedem que uma avalanche de miseráveis ingressem na Europa.
Orban chantageia Bruxelas com a ameaça de abrir o corredor para a imigração, livrando-se de uma resposta mais dura da UE frente a seus arroubos autoritários. Já Polônia representa um elo mais fraco e com menos capacidade de reação política, pois depende fortemente da OTAN e da União Europeia no âmbito da segurança diante da Rússia.
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