Os bombardeios aéreos conduzidos pelos EUA há meio século esculpiram a agricultura atual do Camboja. A produtividade agrícola e a renda dos camponeses que plantam arroz são largamente determinadas por uma guerra do passado cuja herança segue presente.
Fonte: Open Journal of Soil Science, 2017
O envolvimento militar direto dos EUA na Guerra do Vietnã começou em 1964. No ano seguinte, iniciou-se a campanha de bombardeios massivos contra o Vietnã do Norte, que logo se expandiu para os vizinhos neutros Laos e Camboja, tendo como alvo a chamada Trilha Ho Chi Minh. Batizada em homenagem ao presidente norte-vietnamita, a trilha era formada por uma intrincada rede de estradas vicinais e picadas na floresta que propiciavam o trânsito de guerrilheiros e suprimentos entre o Vietnã do Norte e o o Vietnã do Sul.
A campanha de bombardeios, oficialmente voltada contra alvos militares, estendeu-se a centenas de povoados, constituindo um prolongado crime de guerra. Cerca de 2 milhões de toneladas de bombas foram lançadas sobre o Laos até 1973. O Camboja foi alvo de 1,8 milhão de toneladas de bombas ao longo do mesmo período, que deixaram algo entre 100 mil e 150 mil vítimas fatais.
O horror prosseguiu depois do encerramento dos bombardeios. Grande parte das bombas não explodiram. No Camboja, desde o final da Guerra do Vietnã, da guerra civil e da invasão vietnamita que derrubou o regime genocida do Khmer Vermelho, cerca de 19 mil pessoas perderam a vida para bombas remanescentes ou minas terrestres implantadas nos conflitos armados posteriores à campanha americana.
Além disso, o país abriga 40 mil amputados, ou um para cada grupo de 260 habitantes, a maior taxa do planeta. Investigações de campo comprovaram a forte correlação entre a incapacitação física e o aumento da pobreza familiar, inclusive na geração seguinte.
As bombas foram lançadas predominantemente sobre a porção oriental do Camboja, em largas faixas de fronteira com o Vietnã e o Laos, acompanhando a rede viária da Trilha Ho Chi Minh. De modo geral, as que caíram em solos duros, pedregosos, explodiram. Contudo, um estudo dirigido por Erin Lin, da Universidade do Estado de Ohio, baseado em imagens aéreas e relatórios de missões de remoção de minas terrestres, estima que algo como metade delas não detonaram. São, quase sempre, as que caíram em solos macios, justamente os mais férteis.
Amputados no Centro de Reabilitação Wat Than, em Phnom Penh, em 1993
Lin entrevistou camponeses do leste cambojano e descobriu que eles conhecem, nas suas grandes linhas, a geografia da morte. Os entrevistados disseram que os solos escuros, ricos em matéria orgânica, escondem os explosivos não detonados. Também contaram que trabalham sob o medo perene de detonações. Muitos deles só utilizam as porções de suas terras que, com certeza, não ocultam as traiçoeiras bombas ou evitam operar com máquinas nas áreas perigosas.
A agricultura ainda é o alicerce da economia cambojana e o cultivo do arroz sustenta o mercado interno de alimentos. O plantio principal acontece em maio e junho, quando se inicia a estação das chuvas de monções, pelo método do terraceamento. Um plantio secundário ocorre em novembro, nas áreas mais baixas, que permanecem inundadas. Adicionalmente, cultiva-se o arroz flutuante às margens do Tonle Sap (Lago Grande).
A produtividade das culturas de arroz é, geograficamente, bastante desigual. Na região do Tonle Sap, obtém-se mais de uma toneladas de grãos por hectares. As províncias banhadas pelo Golfo da Tailândia produzem cerca de 800 quilos por hectare. Já as províncias orientais não produzem mais que 600 quilos por hectare. Estas regiões menos produtivas coincidem, precisamente, com as áreas que sofreram os mais pesados bombardeios aéreos.
O estudo de Lin constatou os efeitos duradouros dos bombardeios. Nos solos de baixa fertilidade, onde quase inexistem bombas não detonadas, cerca de 60% da área dos estabelecimentos é ocupada por arroz. Nos solos férteis fora das áreas bombardeadas, a proporção é similar. Contudo, nos solos férteis em áreas que sofreram as campanhas aéreas, pouco mais de 40% dos estabelecimentos é ocupada por arroz.
Fonte: The Economist, 10 de março de 2021
Os camponeses situados em áreas de solos férteis não bombardeados comercializam quatro quintos de suas safras de arroz. Por outro lado, os que são obrigados a cultivar solos férteis bombardeados só conseguem vender pouco mais de dois quintos das safras. O resultado é um nítido abismo social. Os primeiros obtêm, em média, 2 milhões de riels por ano, enquanto os segundos não conseguem mais de 1,1 milhão de riels.
Crimes de guerra podem ser feridas perenes, atravessando gerações e fixando-se como cicatrizes sociais e geográficas. O Camboja ilustra a permanência de uma tragédia.
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