NÃO HÁ PAZ PARA ESTUDANTES NA NIGÉRIA

 

Elaine Senise Barbosa

15 de março de 2021

 

Estudantes, as crianças e adolescentes do norte da Nigéria, se tornaram vítimas de uma série de sequestros realizados por bandos armados.

Meninas sequestradas pelo Boko Haram

Algumas das jovens sequestradas pelo Boko Haram. Apesar da campanha #bringbackourgirls, até hoje cem delas continuam desaparecidas

O grupo jihadista Boko Haram sequestrou 276 garotas estudantes de uma escola em Chibok, em 2014. No contexto da Guerra da Síria e da emergência do Estado Islâmico (ISIS), o evento provocou comoção mundial e forte mobilização para recuperar as meninas, parcialmente resgatadas ao longo do tempo.

Mas aquilo é diferente do que aconteceu na semana passada, quando uma gangue de motoqueiros atacou por mais de uma hora a Escola Secundária de Ciências do Governo, em Kankara, no estado de Katsina, até conseguirem entrar e levar os estudantes. Como muitas escolas em países africanos, o estabelecimento funciona em regime de internato e abriga mais de 800 meninos. O Exército e a Força Aérea nigeriana se juntaram na busca pelos desaparecidos e, nos primeiros dias, resgataram 200 deles. 

Desde o Boko Haram, grupos com origens e finalidades muito distintas fizeram do sequestro sua atividade principal. Os que o fazem por ideologia, como os extremistas religiosos, buscam dinheiro para financiar a causa. Mas há um novo fenômeno surgindo em decorrência da urbanização e da grande desigualdade social: trata-se da formação de bandos marginais que cometem crimes para viver e provavelmente ajudarem as próprias famílias, algo paralelo ao que ocorre no Brasil. Para estas quadrilhas, o sequestro é business.

Mais de 20 escolas no estado foram fechadas após o sequestro de 27 estudantes e seus professores, em uma escola secundária na área de Kagara, no estado, no mês passado. A esse sequestro seguiu-se o de mais de 250 alunas secundaristas no estado de Zamfara, provocando o fechamento de outras tantas escolas. Os estados de Kano, Yobe e Katsina, no norte e nordeste da Nigéria, têm recorrido à suspensão das aulas.

São apenas alguns exemplos de uma longa lista de sequestros de estudantes adolescentes que tem se repetido em cidades do norte da Nigéria. A situação está tão grave que, em fevereiro, o Ministério da Educação suspendeu por duas semanas as aulas em todas as escolas secundárias do país.

Parte do problema, segundo vozes do governo, nasceu da própria repercussão do caso das meninas do Boko Haram, porque gerou um tal volume de dinheiro para pagar o resgate, além do prestígio aos criminosos conferido pela visibilidade, que apontou o caminho do tesouro para os outros. A diferença é que nos sequestros seguintes não houve repercussão internacional, nem doações, e o governo, pressionado, começou a pagar ele mesmo pelos resgates (embora nem sempre as autoridades o admitam). Virou uma bola de neve.

 

Nem tudo é “problema étnico”

A Nigéria setentrional, onde ocorrem esses sequestros, tornou-se mais conhecida em sua complexidade quando o surgimento do Boko Haram colocou uma lupa sobre aquela parte do mapa. Várias “fronteiras” passam por ali: a que separa os muçulmanos dos cristãos; a que separa pastores e agricultores; a que separa terras cada vez mais áridas de terras férteis. São diversos elementos a serem levados em consideração.

O norte e o nordeste da Nigéria são povoados, majoritariamente, por muçulmanos do grupo Hausa-Fulani. Mas a linha etno-religiosa que divide o país não explica satisfatoriamente os fenômenos sócio-econômicos de caráter global que interferem na produção dessa violência.

No entanto, a islamofobia facilita que as reações locais se concentrem em fatores puramente “étnicos”. Isso porque alguns desses bandos de motoqueiros são constituídos por jovens homens Hausa-Fulani, que são pastores e seguidores do Islã. É o suficiente para que as velhas cartas étnicas sejam levantadas, justificando discriminação cultural e generalizações. Muitos acusam os bandos de sequestradores por serem muçulmanos que descobriram no sequestro um negócio mais lucrativo que vender gado. Já associações de pastores rebatem que também são vítimas e têm o seu gado roubado.

Nigeria-grupos etnicos

Fonte: Roger Westly  

O fato é que registra-se aumento das tensões entre os Hausa-Fulani e agricultores, em geral de etnia Yoruba, no norte e nordeste do país. O pano de fundo é o fenômeno de desertificação que intensifica a disputa pela terra e facilita processos de desenraizamento e êxodo rural, seguidos de expansão desordenada das imensas e pobres periferias urbanas.   

Nessas periferias, jovens descobrem pelas telas de celulares um universo de sedução materializado em bens de consumo.  A disseminação das motocicletas acrescentou-lhes uma vantagem extra em velocidade e ousadia. Nigéria, Venezuela, Brasil, Honduras, El Salvador: o fenômeno das gangues é mundial.

Como já se observou em outras situações, muitas vezes grupos jihadistas assumem ações de terceiros para aumentar seu próprio capital político, enquanto os autores recebem em troca proteção, reconhecimento ou mesmo incorporação ao grupo. Na Nigéria, vários desses sequestros têm sido reconhecidos pelo Boko Haram, o que gera crescente temor entre as autoridades.  

De acordo com uma reportagem, “Nnamdi Obasi, do International Crisis Group, disse que uma mudança das atividades do Boko Haram para o noroeste teria sérias implicações de segurança porque poderia estabelecer parceria com outros grupos criminosos armados conhecidos por realizar ataques e receber pagamentos de famílias e mercados. Eles são como mini-exércitos capazes de realizar operações desafiando as forças de segurança, e isso é preocupante.”  

 

Direito à educação

De acordo com dados da Fundação Malala, a Nigéria responde por 45% de todas as crianças fora da escola na África Ocidental: mais de 10 milhões. Desse total, 60% são meninas retiradas do ambiente escolar para enfrentar casamento infantil, pobreza e normas sociais discriminatórias. Dessas, 30% na faixa dos 9 aos 12 anos nunca entraram na escola.

Escola de Kankara onde foram sequestrados cerca de 300 estudantes, em dezembro de 2020

No seu célebre sequestro, o Boko Haram escolheu seu “alvo” pois o fundamentalismo islâmico não admite a presença de mulheres em escolas. De fato, obrigá-las à conversão religiosa e ao casamento precoce foram declarados objetivos pelo grupo. Como bem sabe a mentora da Fundação Malala, que quase pagou com a própria vida por insistir em estudar em um Paquistão disputado pelo Taleban, o argumento da submissão religiosa reforça a desigualdade e a discriminação de gênero. E, em países já pobres, dificultar o progresso educacional das meninas e mulheres é receita certa para a perpetuação da pobreza.         

No caso da Nigéria está ficando pior, porque meninos são alvos dos sequestros com frequência ainda maior, já que integram a maioria do corpo estudantil. Se o desenvolvimento escolar já fica comprometido pelo fechamento temporário das instituições educacionais provocado pela pandemia de Covid-19, piora quando os estudantes precisam lidar também com traumas decorrentes dessas experiências violentas. E mais: em muitos desses ataques, professores são mortos (já somavam 2300 vítimas em 2015), o que retira do país um capital humano e cultural difícil de ser substituído.

 

 

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