TERROR ANTI-LGBT NA CHECHÊNIA

 

Álvaro Anis Amyuni

(Pesquisador do site 1948 e bacharel em Relações Internacionais pela PUC-SP)
9 de novembro de 2020

 

Durante a 44ª Mostra de Cinema Internacional de São Paulo, entre 22 de outubro de 4 de novembro de 2020, foi exibido o filme “Welcome to Chechnya”, do diretor David France. O documentário retrata o drama vivido pelas pessoas LGBTs na Chechênia, república autônoma que integra a Federação Russa. Lá, desde 2017, forças policiais e autoridades legais iniciaram uma verdadeira caça às bruxas contra a população LGBT, principalmente homens gays.

David France utiliza a técnica de “deepfake” para alterar os rostos das vítimas e de alguns ativistas da Russian LGBT Network, ONG responsável pelo resgate e transferência de vítimas da Chechênia para fora do país, com o objetivo principal de proteger a identidade dessas pessoas.

A técnica é muito benvinda para manter a qualidade do filme, que abdica das ultrapassadas técnicas de alteração da voz e jogos de luz para esconder a identidade de vítimas. Isto as humaniza, pois apesar de ganharem rostos e nomes falsos, podem ser acompanhadas em seu dia a dia na ONG que os acolhe em Moscou. Assim, o filme foge do padrão estático que costuma caracterizar documentários baseados em entrevistas. O uso do deepfake permite inclusive certo recurso poético como se nota ao final, quando revela-se a verdadeira intenção de seu uso.

A campanha de perseguição está sob o comando do próprio presidente checheno, Ramsan Kadyrov, fantoche de Vladimir Putin nomeado em 2007 para o controle da pequena república. Abertamente homofóbico, o muçulmano ultranacionalista alega estar “limpando” a Chechênia dos impuros. Isso, embora nunca tenha admitido comandar a campanha de perseguição aos LGBT.

Kadyrov é uma figura quase caricata, um típico populista do século XXI que se utiliza das redes sociais para se comunicar com a população. O presidente promove um verdadeiro culto ao masculino, com fotos que exaltam seus músculos e atividades “heroicas” em seu dia a dia, como a caça e a luta, de forma muito semelhante a Putin.

O presidente checheno Ramsan Kadyrov em entrevista a uma rede de televisão russa

No entanto, não é apenas a figura “forte” e carismática de Kadyrov que explica a dimensão da perseguição aos LGBTs. A sociedade chechena de maneira geral tem um papel fundamental na prática de linchamentos públicos de LGBTs, incentivada pelo “chamado” de Kadyrov.

David Isteev, coordenador responsável por crises da Russian LGBT Network, resume em entrevista o que acontece na Chechênia: “Imagine, em pleno século XXI, em um país supostamente secular, casos em que pessoas são assassinadas simplesmente porque são homossexuais… Onde elas são mutiladas, onde suas famílias são incentivadas a matar seus filhos e irmãos.” E prossegue: “É uma vergonha ser gay na Chechênia. E para uma família descobrir que alguém é gay? É uma vergonha tão grande, que só pode ser lavada com sangue.”

 

A república de Putin

A Chechênia possui forte tradição nacionalista. Tendo sido anexada ao Império Russo em 1859, a região de maioria muçulmana foi uma pedra no sapato tanto dos czares quanto dos burocratas soviéticos durante o século XX – e continuou sendo sob Putin, o czar do século XXI.

Durante a Revolução Russa de 1917, a Chechênia juntou-se à Inguchétia e ao Daguestão, formando uma república independente na região do Cáucaso, apenas para ser anexada logo depois pela União Soviética – que, em troca, garantiu a sua autonomia. Contudo, os chechenos continuaram a serem vistos como um problema pelos soviéticos, como quando parte de sua população foi acusada pela NKVD de lutar ao lado da Alemanha nazista, justificando deportações e assassinatos em massa e o fim do estatuto autônomo em 1944. A autonomia só foi restaurada em 1956, durante a desestalinização promovida por Nikita Kruschev.

Mapa Chechênia

A desconfiança mútua nunca cessou. A ânsia por autonomia chechena e a necessidade russa de controle geopolítico do Cáucaso não são conciliáveis.

Na Rússia pós-soviética, a Chechênia voltou a ser um desafio para o controle russo da região, pois quando a URSS se desintegrou todos os nacionalismos internos vieram à tona reivindicando a independência, assim como ocorreu com as antigas repúblicas soviéticas. Por conta disso, grupos separatistas chechenos provocaram duas guerras durante os anos 1990. A Segunda Guerra da Chechênia, iniciada em 1999, ficou conhecida como “a guerra de Putin”, por ter fornecido o pretexto para afirmar o então novo presidente, empossado a partir da renúncia de Boris Yeltsin na virada do milênio. Com a guerra, Putin buscava legitimar-se como líder nacionalista russo.

Putin necessitava demonstrar a imagem de homem forte, em contraste com o fraco governo de Yeltsin, e nada melhor do que vencer uma guerra contra separatistas para garantir isso. Na guerra chechena de 1996, Yeltsin tinha estabelecido como objetivo principal o restabelecimento da ordem constitucional do país, ferida pela reivindicação de autodeterminação dos separatistas. Putin, por outro lado, afirmou que a guerra de 1999 era uma batalha contra o terrorismo, apelando à segurança nacional.

Cerca de 200 mil civis morreram nas duas guerras chechenas. Depois da carnificina, Putin conseguiu o que queria: pacificar a Chechênia, indicando o fiel Kadyrov para mantê-la sob controle. A rua principal de Grozny, capital chechena, ostenta o nome “Avenida Vladimir Putin” (Prospekt Putina, em russo), figurando como principal símbolo da dominação de Putin sobre o território.

Em 2004, uma escola infantil foi ocupada por terroristas chechenos que mantiveram centenas de pessoas como reféns. A repressão de Putin se transformou em um banho de sangue contra os chechenos, fundamentalistas ou não, matando cerca de 330 pessoas

 

Honra familiar

A homossexualidade foi descriminalizada na Rússia em 1993, mas a população LGBT sofre forte discriminação por parte da maioria dos russos que desaprova a relação de casais do mesmo sexo. A discriminação motivada por identidade de gênero ou orientação sexual não é impedida por lei no país.  Na Rússia, há lugares em que homossexuais não podem circular livremente ou mesmo comprar ou alugar uma casa. Na Chechênia, tudo isso é levado ao extremo.

Na Chechênia, sair do armário é um processo muitas vezes involuntário e extremamente perigoso. Com a perseguição, centenas de pessoas foram acusadas de serem LGBTs e, portanto, arrancadas do armário à força

“Welcome to Chechnya” desvenda as principais características da sociedade chechena, definida por uma maioria islâmica tradicional, fechada na sua língua e nos seus costumes. Os linchamentos públicos contra LGBTs difundiram-se rapidamente. A homofobia patrocinada pelo governo semeia um solo vincado pela tradição familiar, no qual os patriarcas definem os rumos das vidas dos mais jovens e imprimem a marca da desonra sobre os homossexuais.

Sob o patrocínio mais ou menos oculto de Kadyrov, articulou-se uma rede de agressores para espancar e, eventualmente, entregar homens gays para a polícia, que se encarrega de praticar torturas em interrogatórios destinados a identificar outros “culpados”.

As lésbicas experimentam repressão diferente. A perseguição e a violência são menos perceptíveis nas ruas, devido ao forte controle familiar sobre as mulheres. No caso delas, os atos violentos ocorrem dentro das casas.

“Grisha”, o codinome da vítima principal retratada no filme, ficou dez dias sob custódia e tortura da polícia e só foi liberado quando conseguiu provar que não nasceu, não residia e nunca havia residido na Chechênia. Grisha era produtor de eventos na Rússia e estava trabalhando na Chechênia quando foi capturado. Mesmo tendo sido liberado, continuou sob ameaça de grupos anti-LGBT de outras partes da Rússia, o que o forçou a buscar proteção da Russian LGBT Network para ele e sua família.

Na história de Grisha, seus familiares o acompanham até o fim, demonstrando apoio e amor diante da sua situação, mesmo às custas da própria segurança. Ele e sua família demonstram que, na Rússia e na Chechênia, não são apenas os LGBTs que sofrem com a violação de direitos humanos básicos de minorias, mas todas as pessoas corajosas o suficiente para protegê-los de ataques bárbaros da sociedade.

 

Homofobia como projeto de poder

A perseguição na Chechênia em 2017 não poupou nem mesmo figuras relativamente famosas da república. Zelim Bakaev, cantor checheno-russo de relativa expressão nacional, desapareceu em agosto daquele ano no auge da perseguição. Bakaev não era nem sequer homossexual assumido, mas foi preso quando estava em Grozny para o casamento de sua irmã pois a polícia suspeitava de sua orientação sexual.

Desde a prisão, não se sabe o destino de Bakaev, mas a imprensa internacional especula que ele teria morrido sob sessões de tortura. O presidente checheno zombou dessa suposição, sugerindo sutilmente que ele teria sido morto pela própria família, para lavar a honra ferida. Na sequência, negou a existência de pessoas LGBT na Chechênia e afirmou que, se existissem, deveriam ser “retiradas” da república para purificar o sangue checheno.

O acobertamento da operação de “limpeza do sangue” na Chechênia é facilitado pela negligência das autoridades russas. Segundo o filme, a deliberada cegueira de Moscou diante das perseguições aos LGBT na Chechênia faz parte do projeto de poder de Putin, que manipula a homofobia e o conservadorismo social.

Putin se apresenta como defensor das tradições russas e, quase explicitamente, caracteriza a população LGBT como uma quinta-coluna inimiga implantada pelo Ocidente para desestabilizar a coesão nacional russa. Ao mesmo tempo, em territórios como a Chechênia, a homofobia serve muito bem como desculpa para suprimir adversários tanto de Kadyrov quanto de Putin. O véu de legitimidade da “cultura conservadora” local tem mil e uma utilidades políticas.

Putin e Kadyrov, unidos pelo poder e pela homofobia

Na Inguchétia e no Daguestão, territórios vizinhos à Chechênia e com culturas bastante parecidas, também registram-se perseguições a LGBTs, em menor escala mas inspirados na impunidade dos agressores da república autônoma e no silêncio cúmplice de Moscou. O temor explicitado pelos ativistas retratados no filme é de que o terror contra a população LGBT se espalhe por toda a Rússia. Denúncias feitas tanto por vítimas quanto pela Russian LGBT Network foram sistematicamente ignoradas pelo Comitê de Investigação Russo, por “falta de evidências”. Isteev diz que “nós sabemos como provar a culpa” dos bandos de agressores, mas “não sabemos como fazer para que o Comitê de Investigação Russo aceite os fatos óbvios desses crimes”.

Os números da Russian LGBT Network, apresentados ao final do filme, demonstram a amplitude das violações de direitos humanos na Chechênia. Entre 2017 e 2019, a ONG conseguiu reassentar 151 pessoas em diversos países, sendo 44 delas apenas no Canadá. Os ativistas responderam mais de 200 chamados de socorro durante o auge da crise na pequena república. Eles conseguiram libertar algumas das vítimas, mas muitas continuam sob a custódia da polícia chechena.

Em 2019, a Human Rights Watch reportou uma nova onda de perseguição a LGBTs na Chechênia, denunciando casos de tortura, humilhação pública e assassinatos. A violação dos direitos da população LGBT na Rússia está longe de acabar, e é por isso que filmes como “Welcome to Chechnya” são cruciais para mostrar ao mundo os abusos sofridos por minorias “invisíveis”.

 

“Welcome to Chechnya” estreia no streaming da HBO+ em 18 de novembro

 

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