Durante toda a segunda metade do século XX, a política externa de direitos humanos do México foi dominada pelo princípio da soberania e não-intervenção. Neste marco, as críticas vindas de fora não eram facilitadas nem bem recebidas pelo governo mexicano, sempre controlado pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI).
O cenário só começou a mudar nos últimos anos do governo do presidente Ernesto Zedillo (1994-2000). Mas a ruptura ocorreu, efetivamente, com a chegada à presidência de Vicente Fox, primeiro presidente de oposição em 70 anos, em 2000. A partir de então, o México se abriu por completo ao escrutínio crítico internacional na área de direitos humanos.
Neste contexto de abertura, ao longo dos últimos 20 anos, foram realizadas dezenas de visitas de monitoramento e processos de revisão de relatórios sobre a situação de direitos humanos no país, o que resultou em diversos relatórios críticos e na formulação de mais de 3 mil recomendações ao Estado mexicano, como se pode ver com detalhe na Base de Dados de Recomendações Internacionais ao México em Matéria de Direitos Humanos.
Presidente Vicente Fox, responsável pela inflexão na política externa para os direitos humanos
Paralelamente, a diplomacia mexicana assumiu certo protagonismo nos fóruns multilaterais de direitos humanos. O México propôs e impulsionou ativamente o desenvolvimento de novas normas, sobretudo relacionadas aos direitos de alguns grupos, como mulheres, pessoas com deficiência, povos indígenas e imigrantes. Também contribuiu para o desenvolvimento e viabilidade financeira dos órgãos internacionais de direitos humanos. Finalmente, adotou posturas críticas em relação à situação de direitos humanos em outros países.
Cuba é um capítulo singular nessa história. O lugar ocupado por Cuba na política externa mexicana foi muito particular durante a maior parte do período de hegemonia do PRI. O México era aliado incondicional de Cuba nos foros multilaterais, em troca do compromisso cubano de não interferir na política interna mexicana e, principalmente, não impulsionar ou apoiar os grupos comunistas mexicanos.
A relação especial com a Cuba castrista começou a se deteriorar durante o governo de Zedillo, o último do PRI antes do triunfo oposicionista de 2000, e se decompôs por completo durante o governo de Fox.
Desta maneira, mediante a abertura e o ativismo, o México buscou promover uma reputação internacional de ser um país comprometido com o regime internacional de direitos humanos, de ser um “bom membro do clube”.
Como parte do intenso monitoramento da situação no México pelos órgãos internacionais de direitos humanos, e também da constante pressão de ONGs nacionais e internacionais, os últimos quatro governos mexicanos implantaram um discurso muito consistente de direitos humanos, tanto dentro do país quanto nos fóruns internacionais e adotaram maiores compromissos normativos no âmbito internacional, ratificando praticamente todos os tratados existentes sobre a questão.
Mais ainda, também adotaram importantes reformas legais e institucionais internas, em uma lógica de harmonização com os modelos propostos pelas normas e órgãos internacionais. Destaca-se, nesse sentido, uma profunda reforma da Constituição em matéria de direitos humanos, adotada em 2011.
Também são relevantes as leis secundárias e a estrutura institucional desenvolvida ao redor de temas específicos como o feminicídio e a violência contra a mulher, os direitos dos povos indígenas, a jurisdição militar, os direitos da infância e as pessoas com deficiência, a reforma à Lei de Migração. Mais recentemente, o México adotou a Lei de Vítimas, a Lei de Mecanismo de Proteção de Pessoas Defensoras dos Direitos Humanos e Jornalistas e as leis gerais contra a tortura e desaparecimento forçado.
Protesto contra a violência de gênero na Cidade do México
A palavra, porém, nem sempre anda junto com o gesto. Em todo esse tempo de abertura, ativismo externo e reformismo interno não se avançou, na prática, no cumprimento das normas nacionais e internacionais de direitos humanos. O México continua sofrendo uma crise aguda na questão dos direitos humanos, incluindo execuções, torturas, desaparecimentos, violência contra a mulher, discriminação etc.
Tudo isso num marco de violência criminal incontrolável, militarização da segurança pública, crescentes “zonas cinzentas de poder” e diante da quase absoluta indolência e inoperância do sistema de administração de justiça, o que significa uma quase total impunidade.
De fato, a adoção de cada vez mais compromissos em nível internacional e as reformas das leis e instituições de direitos humanos no México não foram acompanhadas por um esforço sério, de longo prazo, por parte dos distintos governos por transformar práticas dos agentes estatais, estruturas de incentivos e entendimentos culturais que geram a violação sistemática dos direitos humanos no país.
Neste sentido, a abertura ao escrutínio internacional, o ativismo em fóruns multilaterais e o reformismo interno não pode ser entendido como resultado de um processo de “internalização” das normas de direitos humanos. A abertura e o reformismo foram fundamentalmente uma resposta tática diante da crítica internacional, que tinha o objetivo de administrar as pressões externas e internas.
Nos seis anos de governo de Enrique Peña Nieto (2012-2018), particularmente a partir de 2015, aconteceram fortes fricções entre o governo e órgãos distintos e procedimentos internacionais, como o Comitê contra o Desaparecimento Forçado da ONU, o Relatório Especial contra a Tortura da ONU, a representação do México no Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e seu Grupo Interdisciplinar de Especialistas Independentes (GIEI).
O governo de Peña Nieto se mostrou altamente irritável diante das críticas internacionais e reagiu intempestivamente em mais de uma ocasião, questionando a solidez metodológica dos relatórios desses atores internacionais, a veracidade de suas descobertas e suas intenções, motivações e o conhecimento jurídico ou a integridade ética de alguns dos especialistas internacionais envolvidos. Nesse sentido, ainda que a abertura tenha continuado, o governo de Peña Nieto enviou sinais que sugeririam uma falta de convicção a respeito da política de abertura ao escrutínio internacional.
O governo atual, encabeçado pelo presidente Andrés Manuel López Obrador, manteve a política de abertura ao escrutínio internacional e diminuiu as fricções com os órgãos internacionais de direitos humanos. Também continuou com a estratégia de realizar algumas reformas internas e tem mostrado maior interesse na solução de alguns casos concretos de alto perfil, particularmente o desaparecimento dos 43 estudantes universitários de Ayotzinapa (Iguala).
Ato contra o desaparecimento dos 43 estudantes universitários. O governo de Lopez Obrador tem sido cobrado de forma incisiva por organizações de defesa dos direitos humanos.
Não se pode dizer, porém, que com o novo governo existem melhores expectativas para alcançar níveis maiores de cumprimento com as normas internacionais e nacionais de direitos humanos em todos os casos ou com relação a todas as agendas. A crise de execuções, desaparecimento de pessoas, feminicídios e discriminação contra grupos em situação de vulnerabilidade continua fora de controle.
Depois de praticamente vinte anos de sua implementação, a política externa de direitos humanos aberta ao escrutínio internacional e caracterizada pelo ativismo em fóruns multilaterais não foi acompanhada por mudanças significativas em matéria de vigência dos direitos humanos no país. Este é o paradoxo mexicano dos direitos humanos: “candil de la calle, obscuridad de la casa” (“lamparina na rua, trevas em casa”).
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