O conceito de gueto nasceu na República de Veneza, “a Sereníssima”, no início do século XVI, como referência de um espaço urbano etnicamente segregado, habitado pelos judeus. Gueto e segregação oficial andam juntos na história urbana dos EUA – e, também, na história do antissemitismo europeu. O governo da Dinamarca decidiu eliminar os guetos do país – mas, para isso, utiliza-se de uma legislação que eterniza a segregação étnica.
Dois anos atrás, o governo dinamarquês de centro-direita apresentou uma lei destinada a criar um centro de detenção de imigrantes ilegais na ilha Lindholm, antes empregada para isolar animais infectados. O plano foi suspenso após as eleições parlamentares de junho do ano passado, que conduziram à formação de um gabinete de centro-esquerda. Mas o novo governo, como o anterior, empenha-se na “renovação” de 15 áreas, em diferentes cidades, classificados como “guetos rígidos”.
Mjolnerparken, uma das áreas de Copenhage visadas pelo plano de “renovação” urbana
O “maior experimento social deste século”, na expressão disseminada pela imprensa dinamarquesa, impõe a venda de 60% das habitações nessas áreas, prometendo relocar seus residentes para bairros próximos. A origem étnica é a pedra basilar do “experimento social”.
Uma lei de 2010 converteu o gueto em categoria político-administrativa, definindo-o como áreas com mais de 50% da população constituída por imigrantes e descendentes, elevado desemprego, baixos níveis de renda e taxas de criminalidade mais de três vezes superiores à média nacional. O “gueto rígido” ficou definido como um gueto que conserva tais características por quatro anos ou mais.
O projeto de habitação social Mjolnerparken, no afluente bairro de Norrebro, em Copenhage, inscreve-se nessa classificação. Contudo, seus indicadores sócio-econômicos parecem-se com os de Byparken, na cidade de Svendborg, vizinha à capital, que não ganhou o rótulo funesto. A diferença é que os residentes de Byparken são, majoritariamente, brancos. O gueto é gueto segundo a régua da etnia, oficializada pela legislação.
As estatísticas censitárias separam a população do país em dois grandes grupos: “pessoas de origem dinamarquesa” (91,1% de seus 5,8 milhões de habitantes) e “descendentes de imigrantes” (8,9%). A imigração de não-europeus é relativamente recente. Nas décadas de 1960 e 1970, a Dinamarca recrutou “trabalhadores hóspedes” para corrigir as carências de mão de obra de baixa qualificação. A imigração cresceu na última década do século passado, sob o impacto da guerra civil na antiga Iugoslávia, e ganhou novo impulso após 2005.
Manifestação islamofóbica do pequeno partido ultranacionalista Stram Kurs (Linha Dura), fundado em 2017, que prega a proibição do Islã e a deportação de imigrantes muçulmanos
A ampla maioria dos imigrantes na Dinamarca é constituída por europeus. Muçulmanos sírios, turcos e iraquianos formam as principais comunidades de imigrantes não-europeus no país. Desde a crise migratória de 2015, a Dinamarca adotou o caminho do fechamento de suas portas, recebendo menos de 20 mil refugiados sírios, em contraste com a vizinha Suécia, que recebeu quase 110 mil. Mesmo assim, acendeu-se a fogueira da xenofobia.
Os refugiados balcânicos foram rapidamente integrados, mas a segregação persiste quando se trata dos oriundos do Oriente Médio. “Fiquei chocado, 16 anos depois, ao constatar as diferenças no tratamento dos refugiados”, testemunha um ex-refugiado de Kosovo que retornou a seu país e visitou recentemente a Dinamarca.
A Dinamarca aprovou uma lei, em 2016, que permite o confisco de bens de solicitantes de asilo para pagar os custos extras do sistema de seguridade social gerados pela crise migratória. Em protesto, o artista dissidente chinês Ai Weiwei encerrou uma exibição de suas obras em Copenhage. Em 2018, entrou em vigor uma lei que bane a cobertura do rosto em lugares públicos, criminalizando mulheres muçulmanas em nicabs ou burcas.
O discurso político sobre a dissolução dos guetos urbanos é largamente enganoso. O slogan oficial, “Uma Dinamarca sem sociedades paralelas”, remete à noção da igualdade entre os cidadãos. Kaare Dybvad Bek, ministro da Habitação, alega que o projeto sustenta-se na ideia de integração, coesão social e maior igualdade de oportunidades. Atrás dessa linguagem, porém, oculta-se a conexão discriminatória entre pobreza e crime, de um lado, e origem étnica, de outro.
“Norrebro contra o racismo”, diz a faixa de convocação de uma manifestação, em 2017, no bairro onde se situa Mjolnerparken
A integração social é, em si, uma meta democrática. Há iniciativas positivas adotadas na Dinamarca, como a obrigação do aprendizado da língua nacional pelas crianças de famílias imigrantes. Contudo, os veículos apropriados de integração são a escola e o mercado de trabalho, não a relocalização forçada pela demolição de espaços de moradia.
“Os critérios atrás da legislação sobre guetos são discriminatórios e baseados na raça”, acusa o advogado dos residentes de Mjolnerparken. Ele tem razão. Na verdade, o “experimento social” dinamarquês oficializa o gueto, na lei e nas consciências, violando os direitos dos dinamarquesas de cor ou religião “erradas”.
Tarek Ziad Hussein, advogado, 26 anos, filho de palestinos nascido na Dinamarca, escreveu um livro sobre a experiência de ser muçulmano no país nórdico. “Eu e muitos outros de minha geração sentimos que, não importa o que você faz, não somos bons o suficiente aos olhos da sociedade. Não faz diferença o quanto escolarizados ou integrados somos. Não somos bons o suficiente devido à cor de nossa pele ou à nossa religião.”
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