SANTA SOFIA, O ISLÃ COMO PRETEXTO

 

Demétrio Magnoli

6 de julho de 2020

 

Santa Sofia deve voltar a ser uma mesquita, decidiu o governo de Recep Erdogan. A autorização depende do Conselho de Estado, principal órgão administrativo do país, mas praticamente ninguém acredita numa negativa. O Islã, mais uma vez, emerge como pretexto para a legitimação do regime autoritário turco.

A história da Santa Sofia começa em 537, como uma das mais antigas catedrais do mundo, erguida pelo imperador Justiniano I, na cidade que se chamava Constantinopla, capital do Império Bizantino, a “segunda Roma”. No capítulo seguinte, aberto em 1453, com a tomada da cidade pelos turcos, a catedral tornou-se mesquita enquanto Constantinopla tornava-se Istambul, capital do Império Otomano.

A catedral-mesquita de Santa Sofia tornou-se museu para simbolizar a laicidade estatal da república da Turquia

O sultão Mehmed II, o Conquistador, restaurou as estruturas do edifício, danificadas pelas pilhagens que se seguiram à batalha, sem violar o conjunto arquitetônico. Nos séculos seguintes, os governantes otomanos ergueram minaretes e, sob Suleiman, o Magnífico, os afrescos e mosaicos de Jesus, Maria e diversos imperadores bizantinos foram cobertos por cal e gesso.

O capítulo mais recente foi escrito pela Turquia republicana, proclamada em 1923, após o Tratado de Lausanne, que definiu o estatuto do país após a derrota otomana na Primeira Guerra Mundial. A mesquita-catedral tornou-se museu estatal em 1935, sob o governo do fundador da república, Mustafá Kemal Ataturk. Numa primeira restauração, reapareceram os mosaicos e afrescos. Uma segunda restauração, no início do século atual, financiada pelo Fundo Mundial de Monumentos, reverteu o avançado processo de degradação do edifício.

O museu conviveu bem com a fé muçulmana hegemônica na Turquia. Em 2006, uma pequena sala no seu interior foi destinada a preces islâmicas e cristãs de funcionários do complexo. Desde 2013, dos seus minaretes, o muezim conclama os muçulmanos às orações, duas vezes ao dia. Mas Erdogan quer destruir o maior símbolo da laicidade estatal turca e a memória do ecumenismo religioso propiciado pela república. Santa Sofia deve ser mesquita, supostamente em nome do Islã, mas efetivamente em nome de um regime que rejeita o pluralismo.

 

Erdogan, sultão

Recep Erdogan, presidente da Turquia, com o presidente americano Donald Trump, em Washington, em 2019

A marcha autoritária da Turquia acelerou-se nos últimos anos, especialmente após o frustrado golpe militar de julho de 2016. Erdogan aproveitou-se do evento traumático para promover uma onda de expurgos nas Forças Armadas e no funcionalismo público. Também apertou seu controle sobre os tribunais e a imprensa.

A resistência democrática manifestou-se pelo voto, mesmo em eleições disputadas sob condições desiguais. Nos pleitos locais de março de 2019, o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), de Erdogan, sofreu derrotas em cinco das seis maiores cidades, inclusive a capital, Ancara, e o principal centro econômico e cultural, Istambul.

O revés em Istambul, para o secularista Partido Republicano do Povo (CHP), representação política dos “pais fundadores” da Turquia republicana, acendeu a luz de alerta. Erdogan reagiu aprofundando seu discurso islamizante, que encontra eco fora das grandes cidades, especialmente entre os pobres. A reconversão da Santa Sofia em mesquita faz parte dessa estratégia. Trata-se de assestar um poderoso golpe simbólico no pilar mais importante da república turca, que é a natureza laica do Estado.

A Turquia almejada pelo nacionalismo de Erdogan não é a república criada quase cem anos atrás, mas o Império Otomano estabelecido na transição entre a Idade Média e a Idade Moderna. O sultão, líder incontestável, que enfeixa o poder secular e o poder religioso: eis o modelo no qual o presidente se inspira.

A catedral-mesquita, maior atração turística turca, que atraiu 3,7 milhões de visitantes em 2019, é um patrimônio cultural mundial listado pela UNESCO. A agência da ONU enviou carta à Turquia informando que a Convenção sobre patrimônio cultural exige consultas ao seu comitê intergovernamental antes da mudança de estatuto de qualquer monumento listado. Os EUA solicitaram oficialmente ao governo turco a manutenção do estatuto de museu da Santa Sofia. A Grécia, que se enxerga como guardiã da herança cristã-ortodoxa, fez o mesmo.

Ekrem Imamoglu, prefeito de Istambul. Erdogan teme a oposição secularista

Erdogan, porém, não parece se preocupar com os protestos internacionais. “O que fazemos no nosso país e com nossas propriedades é assunto nosso”, declarou Mevlut Cavusoglu, ministro do Exterior turco.

Na Turquia, a iniciativa encontra resistência na oposição secularista e no patriarca Bartolomeu I, arcebispo de Constantinopla e líder espiritual da Igreja Ortodoxa Oriental. O prefeito de Istambul, Ekrem Imamoglu, classificou-a como “pretexto” para “controvérsias políticas” destinadas a ocultar as dificuldades reais do país. Bartolomeu, por sua vez, expressou sua tristeza e frustração: “No lugar de nos unir, um patrimônio de mil e quinhentos anos está nos dividindo”. Mas é precisamente isso que pretende Erdogan: usar a carta da religião para dividir – e reinar.     

 

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