Glenn Greenwald, co-fundador do The Intercept
A questão é: por que o jornalista americano Glenn Greenwald, 52 anos, que mora no Brasil desde 2005, casado com o deputado estadual David Miranda (PSOL-RJ), pai de dois filhos, virou alvo do autoritarismo ultraconservador no Brasil? Ele é uma personalidade ilustre na imprensa, reconhecido mundialmente. Em 2013, trabalhando para o jornal londrino The Guardian, Greenwald liderou as reportagens que tornaram públicas as denúncias que Edward Snowden, da NSA (National Security Agency, dos Estados Unidos), fazia contra o governo americano e seus órgãos de inteligência. O furo estrondoso mostrou que a Casa Branca e o Pentágono, em plena era Barack Obama, monitoravam ilegalmente os celulares de governantes estrangeiros – e rendeu ao seu autor o Prêmio Pulitzer, a mais respeitável condecoração jornalística do nosso tempo. Ele também ganhou o Prêmio Esso por artigos publicados em O Globo sobre o mesmo assunto. De uns tempos para cá, vem recebendo ameaças, sinais de repúdio e manifestações preconceituosas, por vezes violentas. Por quê?
O capítulo mais recente das agressões contra ele surgiu em 21 de janeiro, quando o Ministério Público Federal (MPF) o denunciou como integrante (ou colaborador) da quadrilha que invadiu e hackeou mensagens sigilosas trocadas por autoridades brasileiras, no episódio que ficou conhecido como Vaza Jato. A denúncia carece de base jurídica e factual, mas aí está. E por quê?
Para responder a essa pergunta incômoda é preciso começar pelo começo e entender o que significou a Vaza Jato. Só assim entenderemos que Greenwald representa, hoje, o esforço mais radical da liberdade de imprensa para desvelar artimanhas do poder instalado no País, que fez do combate à corrupção o seu bordão demagógico e, a partir disso, vem consolidando uma ordem contrária às liberdades, à diversidade e ao pensamento crítico.
Greenwald virou um símbolo da cruzada moralista e oca que atravessa o Brasil de ponta a ponta. Para o autoritarismo pátrio, xenófobo, homofóbico e misógino, derrotar Greenwald é uma questão estratégica. Desmoralizá-lo significa abrir caminho para o fortalecimento de um discurso de fundo fascista que chegou ao poder com o atual governo.
Portanto, para responder por que tamanha perseguição contra o jornalista, comecemos por entender a chamada Vaza Jato. A expressão serviu para batizar o vazamento dos diálogos secretos mantidos por autoridades da Operação Lava Jato por meio de um aplicativo de celular, o Telegram. A Vaza Jato expôs figuras centrais da Força-tarefa, como o procurador Deltan Dallagnol e o então juiz federal Sérgio Moro.
Greenwald foi o pivô da revelação desses diálogos na imprensa. Com reportagens publicadas a partir de junho de 2019 pelo Intercept Brasil, um site noticioso criado e dirigido por ele, escancarou fatos graves que geraram um escândalo de proporções internacionais. Para aumentar a carga explosiva do furo jornalístico, outros órgãos de imprensa, como Folha de S.Paulo, Veja, Agência Pública, em associação com o Intercept, passaram a publicar reportagens a partir da análise do mesmo material.
Sergio Moro (esquerda), o juiz do Supremo Luis Roberto Barroso (centro) e Deltan Dallagnol, em palestra, em 2016
O escândalo deixou sinais eloquentes de que haveria acordos não declarados – e impróprios – entre membros do Ministério Público e do Judiciário para escolher pessoas investigadas na Lava Jato, selecionar etapas das acusações e acertar os termos de peças acusatórias. A credibilidade da Operação Lava Jato sai ferida, especialmente no processo que condenou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Com a revelação das mensagens secretas, Dallagnol e Moro, entre outros, foram apeados do papel de heróis nacionais e tiveram que dar explicações. De início, argumentaram que não reconheciam a autenticidade das mensagens reveladas na imprensa. Em seguida, alegaram que as mensagens não conteriam nada de comprometedor. As duas linhas de despiste logo se esvaziaram. O cenário se complicou um pouco para Moro e Dallagnol. Enquanto isso, Greenwald entrava na alça de mira.
São inúmeras as tentativas de jogá-lo no descrédito. Como o material usado nas reportagens do Intercept, da Folha e da Veja, entre outros veículos, se baseava em arquivos obtidos irregularmente por ação de hackers, que agora respondem a um processo criminal, tentaram acusar Greenwald de ter se associado a esses hackers na prática de crime. Com esse tipo de argumento, move-se uma verdadeira campanha para desmoralizar o jornalista.
A tentativa de vincular o repórter à ação delituosa de hackers não tem fundamento. Ao publicar informações que, embora surrupiadas de maneira ilegal, são comprovadamente de interesse público, um jornalista apenas cumpre seu dever. Esse procedimento é corriqueiro na atividade dos repórteres. A história das democracias está cheia de casos assim.
Entre outros exemplos, verdadeiros paradigmas da ética jornalística, há o caso dos documentos do Pentágono (Pentagon Papers), que, obtidos pelo The New York Times, em 1971, revelaram que o governo americano sabia do desastre que estava em curso na Guerra do Vietnã e escondia isso dos cidadãos. O ponto é: aqueles documentos chegaram ao jornal de maneira ilícita, pelas mãos de Daniel Ellsberg (a fonte que, à época, não se identificou publicamente). Ao analisarem o conteúdo dos papéis roubados, os jornalistas publicaram a história – e cumpriram seu dever.
Outro episódio que nunca deve ser esquecido é o dos jovens repórteres do Washington Post, Bob Woodward e Carl Bernstein, autores das reportagens sobre o escândalo Watergate que culminaram com a renúncia do presidente Richard Nixon, em 1974. É fundamental não esquecer que Woodward tinha uma fonte mantida em sigilo, que deu as pistas essenciais para provar o envolvimento do presidente, do Partido Republicano, nas falcatruas praticadas contra o Partido Democrata. Só muito tempo depois a fonte secreta de Woodward foi revelada: era ninguém menos que Mark Felt, o número dois do FBI nos tempos de Nixon. Elementar: ao passar pistas ultrassecretas para Woodward, Felt cometeu falta funcional gravíssima – mas, apesar disso, as informações foram recebidas pelo Washington Post e isso beneficiou imensamente a democracia americana.
O jornal The Washington Post só revelou a identidade de sua fonte quase 30 anos depois do Caso Watergate, em junho de 2005. Nunca ocorreu ao Congresso americano questionar a legitimidade das informações apresentadas pelos jornalistas
Casos semelhantes no Brasil são incontáveis. Não fossem as fontes mantidas em sigilo, o Brasil não teria sido informado sobre os subterrâneos do escândalo do “mensalão”. Nem o do “petrolão”, fonte dos processos da própria Lava Jato. Enfim, a origem suspeita ou mesmo ilegal de uma informação não impede, nos termos mais estritos da ética jornalística, que ela venha a ser publicada, depois de checada e confirmada. Se não pudesse trabalhar com informações de origem suspeita, o jornalismo não seria possível – nem necessário.
Mesmo assim, foram intensos os ataques contra Greenwald por usar informações passadas por hackers. Tentaram equipará-lo ao receptador, o criminoso que compra mercadorias roubadas. Lembremos que um dos porta-vozes dessa acusação foi o próprio presidente Jair Bolsonaro: “Não podemos concordar que o jornalista, entre aspas, pegue um material criminoso e bote pra fora. É igual ao cara que é acusado do crime de receptação. Não posso pegar um carro que é roubado e vender para você.”
O clima andava tenso. Naquela semana de julho de 2019, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) decidira reabrir um processo de apuração contra Dallagnol e o presidente da República tentava aliviar a barra do procurador. Mas, outra vez, o ataque fez água. A tese do receptador não colou.
Por certo, os hackers que capturaram indevidamente os diálogos podem ter cometido crime (artigo 154-A do Código Penal, que não tem nada a ver com “receptação”). Mas esse crime ou essa falta não é extensível ao jornalista. Nunca foi. Pense bem o leitor. Todas as notícias que abalam o poder procedem de uma inconfidência, traição, um desvio funcional, uma interceptação criminosa ou ato falho. Sempre há, na origem de uma informação que vai contrariar os interesses do poder, alguém que contou ou entregou o que não deveria contar ou entregar – ou alguém que praticou um ato que não deveria praticar. Em 2016, a repórter Débora Bergamasco, da revista IstoÉ, teve acesso aos termos iniciais da delação premiada do então senador Delcídio do Amaral. Ao decidir publicar o documento, a revista agrediu a ética ou a lei? Não.
Dizer que reportagens lideradas pelo Intercept equivalem à receptação criminosa é um descalabro. Coisa roubada, no Código Penal, é uma coisa que pertence a alguém e foi indevidamente subtraída por outro. Não é o caso da informação de interesse público. Esse tipo de informação não é uma “coisa” passível de ser propriedade privada de um ou outro, como um automóvel. As informações capturadas pelos hackers não eram propriedade das autoridades da Lava Jato – eram, ao contrário, palavras que precisavam ser do conhecimento do público. Não há nada de “receptação” aí.
A informação de interesse público não é análoga a qualquer informação genérica, como uma informação comercial, ou um diálogo conjugal, que pertence à esfera da vida privada. Por ser de interesse público, essa informação pertence, por direito, ao público, e ninguém pode ser seu dono exclusivo. Mais do que isso: se um particular esconde essa informação num celular de uso privado, esse particular é quem está subtraindo do público o que é do público.
Em outras palavras, quem oculta do público a informação de interesse público impede que o público tome conhecimento do que é seu direito conhecer. Consequentemente, quem esconde do público pratica um desvio. O jornalista que dá aos leitores a informação de interesse público que estava indevidamente escondida não rouba nada de ninguém: apenas devolve ao público o que era do público por direito. Logo, o hacker que invadiu o celular da autoridade pode, sim, ter praticado um crime, mas o jornalista que publicou os indícios de acerto extra oficial entre procuradores e juiz não praticou crime algum.
Fracassado o estratagema de acusar os repórteres da Vaza Jato de “receptadores”, restava aos inimigos da liberdade de imprensa incriminar os jornalistas por cumplicidade no crime praticado pelos hackers (que ainda precisa ser provado e julgado). Então a polícia passou a cercar Greenwald, até que o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), por ver nessas ações intimidações contra a liberdade de imprensa e contra o sigilo da fonte (assegurada no Brasil pelo artigo 5º da Constituição Federal), expediu uma liminar em 7 de agosto de 2019 impedindo que Greenwald fosse investigado ou responsabilizado por obter, receber ou publicar informações. A liminar restabeleceu o regime normal, regular, pelo qual o Estado deve tratar a atividade jornalística.
Sede do Ministério Público Federal, em Brasília
Foi aí que, em 21 de janeiro de 2020, veio a denúncia do MPF que, descumprindo frontalmente a liminar do STF, acusa Greenwald de delitos que ele, notoriamente, não cometeu. A denúncia aparece como uma clara intimidação, pois, se ela for aceita pelo Judiciário e se o jornalista for tornado réu, pode sobrevir uma sentença que o condene à prisão. Aí, o que temos é uma ponta do Estado prestando serviços para as forças que desejam enfraquecer a democracia, começando por restringir a liberdade de imprensa.
Nessas circunstâncias, o ataque do MPF contra Greenwald ganha o relevo de um ataque contra a liberdade de imprensa em geral. Ao atentar contra um único cidadão – que, como toda pessoa física, é frágil e vulnerável –, a denúncia pretende silenciar preventivamente, pelo medo, todas vozes discordantes. Não se trata de uma investida apenas contra uma pessoa. Como destacou a revista britânica The Economist, as acusações do MPF contra Greenwald representam uma “ameaça à liberdade de expressão” (“the charges against him are a threat to free speech”).
O caso é alarmante. O MPF afirma, com base num diálogo mantido entre Greenwald e sua fonte, que o jornalista teria orientado os hackers a destruir provas, o que absolutamente não se verifica. Ao contrário do que pretendem os acusadores, o jornalista diz textualmente que não pode dar conselhos para a fonte (como observou o jornalista Elio Gaspari em sua coluna na Folha de S. Paulo). Além disso, quando Greenwald conversa com sua fonte, o alegado crime já tinha acontecido. Ele não poderia orientar uma conduta que ocorrera no passado. Mas a impertinência mais grave da acusação é que, ao invadir o diálogo de um repórter com sua fonte, o MPF pode estar violando o sigilo da fonte, um direito fundamental assegurado pela Constituição.
O advogado Luís Francisco Carvalho Filho, um dos mais respeitados especialistas brasileiros em questões de imprensa, resumiu bem o impasse criado pela denúncia em um artigo publicado na Folha de S. Paulo: “A denúncia serve para intimidar o réu e a imprensa como um todo, mostrando que a severidade do Judiciário também pode se voltar contra o exercício das liberdades públicas”.
E mais: “O MPF pede que o jornalista Glenn Greenwald seja condenado 126 vezes por ‘interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática’“d(reclusão de dois a quatro anos), 176 vezes pela invasão de ‘dispositivo informático alheio’, agravado pelo resultado obtido (seis meses a dois anos de reclusão), além, é claro, da ‘associação criminosa’ (um a três anos). Se a pretensão punitiva do procurador da República vingar (com a condenação de Glenn pelas penas mínimas previstas na legislação, mas somadas), ele receberia a singela sentença de 341 anos de prisão. (…) Os defeitos técnicos da acusação são insuperáveis. Não há descrição das condutas. Não há ‘participação’ depois de consumado o delito. A leitura isenta da fala do jornalista que a denúncia transcreve não revela adesão ao crime. Ele não se envolve. Ele se distancia do interlocutor.”
Por fim, Carvalho Filho adverte: “O resguardo do sigilo da fonte não é atitude necessariamente estática. É comum —e, às vezes, necessária— a arquitetura da proteção, para que ela seja efetiva e não apenas formal. (…) A existência da ação penal contra Glenn Greenwald é um atentado a preceitos constitucionais relevantes.”
A Lei de Liberdade de Imprensa de 1766, ato legislativo pioneiro na proteção do jornalismo, é um dos pilares da Constituição da Suécia. Democracias consolidadas defendem a liberdade de informação contra o abuso de poder das autoridades e dos poderosos
Não há como imaginar que o Poder Judiciário venha a acatar uma denúncia tão sem fundamento. Essa agressão contra a liberdade não pode prosperar numa sociedade que preze os direitos humanos. Sem que a liberdade esteja assegurada, não há democracia, não há direitos humanos, não há civilização. Basta lembrar que o primeiro adjetivo que aparece no primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 é a palavra “livres”: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. Não é uma casualidade. Não bastasse isso, lembremos que o substantivo derradeiro, no artigo final, o de número trinta, é “liberdades”: “Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada de maneira a envolver para qualquer Estado, agrupamento ou indivíduo o direito de se entregar a alguma atividade ou de praticar algum ato destinado a destruir os direitos e liberdades aqui enunciados”.
A liberdade é o ponto de partida e o ponto de chegada dos direitos humanos – e é precisamente ela, a liberdade, que o autoritarismo quer ferir. É por isso que são tão viscerais os ataques contra Greenwald.
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