MORRENDO DE FOME NO IÊMEN

 

Elaine Senise Barbosa

13 de janeiro de 2020

 

Mal 2020 começou e manchetes anunciaram algo como o fim do mundo. Um ataque militar ordenado pelo presidente Donald Trump, em 3 de janeiro, matou o principal líder militar do Irã, o general Qassim Suleimani, em Bagdá, capital do Iraque. Descrito por muitos como o “número dois” em seu país, atrás apenas do Líder Supremo, o aiatolá Ali Khamenei, Suleimani personificava a crescente influência militar iraniana no Oriente Médio. Sua morte provocou comoção dentro e fora do Irã. E, sobretudo, propiciou ao regime iraniano uma providencial ferramenta de coesão social, numa hora em que o descontentamento popular eclodia em manifestações de rua. 

Milhares acompanharam o funeral do general Suleimani no Irã

Procissão funerária de Suleimani, em Teerã. O ataque surpresa contra uma alta autoridade de um governo com o qual não se está em guerra declarada é mais um exemplo da errática e arriscada política de Trump no Oriente Médio

O general assassinado era comandante da Força Quds desde 1998, uma força especial ligada ao Corpo dos Guardiões da Revolução Islâmica, diretamente subordinada ao Líder Supremo. De extrema relevância para a política externa do governo de Teerã, a Quds se tornou um ator fundamental no cenário do Oriente Médio. Seus homens, subordinados de Suleimani, são parte das forças que operam na Síria, no Líbano, no Iraque e no Iêmen.

O mote primeiro é a religião, o xiismo, seguidos pelo antiamericanismo e pela oposição à Israel: a antiga ideia da luta para libertar as terras islâmicas do “Satã ocidental”. A Força Quds imiscuiu-se na política interna dos países acima citados, tecendo uma rede de influências iraniana que se estende dos litorais da península arábica à costa do Mediterrâneo.

Aparentemente, os EUA miraram, além de Suleimani, outro militar iraniano, o general Abdul Reza Shahlai, chefe da Força Quds no Iêmen. O segundo atentado, ao que parece mal sucedido, evidencia o apoio de Trump à campanha militar saudita no Iêmen.

Influência militar regional do Irã

Localizado no Golfo de Áden, “esquina” do Oceano Índico com o Mar Vermelho, o Iêmen guarda o estratégico estreito de Bab al-Mandeb, rota de grandes petroleiros. O país também partilha fronteiras com a Arábia Saudita, a potência regional que disputa poder com o Irã e é a principal aliada dos Estados Unidos na região. Resultado: a política iemenita foi “capturada” pela rivalidade geopolítica entre sauditas e iranianos, fazendo de sua população a maior vítima de uma crise humanitária de proporções catastróficas.

O governo Trump tem agido como aliado incondicional dos sauditas e mobilizado amplos recursos militares – com os drones como estrelas da vez no lucrativo mercado da indústria armamentista – para atacar  território iemenita controlado pelos rebeldes Houthis, aliados do Irã. A destruição das poucas infraestruturas de transportes, em um país sem petróleo, que já ocupava uma das últimas posições no ranking de desenvolvimento humano e que sempre dependeu dos portos para ser abastecido, deflagrou a catástrofe. A fome tornou-se a principal e mais cruel das armas de guerra.

A morte é lenta, doída, marcada pelo choro das crianças famintas. Crianças de quatro anos que têm medidas e peso de uma criança de dois, às vezes menos. Nas áreas mais desérticas as pessoas comem, unicamente, a folha de uma planta que precisa ser cozida durante horas. Os que sobreviverem a essa guerra – que não tem prazo para terminar, sendo parte do complexo xadrez da geopolítica do Oriente Médio – terão seu desenvolvimento físico e mental seriamente comprometido.

 

Questão de ponto de vista

A fragmentação religiosa e o caráter altamente personalista e autoritário do poder político comuns aos países árabes e muçulmanos reapareceram na Primavera Árabe, embaralhando as cartas do jogo e trazendo novos atores para o centro das decisões. No período da Guerra Fria o laicismo era dominante e o discurso religioso pouco mobilizava apoio e influência. Mas, no vazio político que se seguiu à queda do Muro de Berlim, a religião, mais antiga e enraizada no imaginário social, voltou a ganhar força em muitos países. No fim das contas, grupos fundamentalistas que emergiram como movimentos de oposição aos líderes ditatoriais e corruptos acabaram se tornando eles mesmos parte do problema, ao adotarem posturas intransigentes pautadas por supostos preceitos corânicos.

No Iêmen, a população da capital saiu às ruas em janeiro de 2011, animada pelas manifestações em curso no Egito, contra o presidente Ali Abdulahh Saleh, que já contava 30 anos no poder. Nas ruas de Sana’a, manifestantes pediam eleições e sucessão política, pois Saleh preparava-se para indicar seu filho para sucedê-lo. Mas Saleh havia construído uma sólida base de apoio junto a algumas tribos do Iêmen, que pegaram em armas para defender sua permanência no poder, contra uma oposição também dividida. Em 2014, após um atentado que quase o matou, o velho presidente negociou sua retirada para a Arábia Saudita, a fim de se submeter a tratamentos, deixando o poder para o seu vice Abd Rabbuh Mansur Al-Hadi.

Houthis protestam contra os ataques aéreos promovidos pela coalização comanda pela Arábia Saudita, em 2015, que atingiu extenso número de civis inocentes

Houthis protestam contra os ataques aéreos promovidos pela coalização comanda pela Arábia Saudita, em 2015, que atingiu extenso número de civis inocentes

Notando que o arranjo em curso era mais do mesmo, a população começou a apoiar os Houthi, um movimento religioso-militar que desde os anos 1990 havia lutado contra o regime de Saleh, sendo fortemente reprimido. Os Houthi, uma minoria xiita do Iêmen, despontaram como a única força realmente capaz de destituir o velho grupo instalado no poder, por isso, até mesmo sunitas passaram a apoiá-los. Foi nesse cenário que a Força Quds ganhou espaço na política iemenita, passando a dar suporte para os Houthi, enquanto o governo de Teerã nega fornecer qualquer tipo de apoio militar aos rebeldes.

No final de 2014, a milícia xiita tomou Sana’a. Hoje, cerca de 70% da população vive em áreas controladas pelos Houthi. Nas áreas em que detém o poder, os Houthi têm acumulado contra si denúncias por violação de direitos humanos. Prisões arbitrárias de jornalistas e militantes, censura, perseguição política, mas sobretudo tortura. São casos como o do médico Farouk Baakar, cuja história foi reportada por uma equipe de jornalistas da Associated Press. Seu “crime” foi atender um preso brutalmente espancado pelos guardas no centro prisional, do qual só saiu para ser abandonado na estrada após pensarem que estava morto. Agradecido ao médico que salvou sua vida, o prisioneiro pediu para tirarem uma foto. Meses depois, ele foi novamente capturado e seu celular, confiscado. A foto rendeu a Baakar a acusação de traição e alguns meses de tortura na prisão, de onde saiu após sua família pagar um alto resgate. Hoje, ele vive do outro lado, aquele onde as forças pró-governo ainda mandam.

Entidades humanitárias estão sob fogo cruzado, mas têm conseguido encontrar vítimas dos Houthi dispostas a falar.

 

Sem tratado, pode?

A afirmação territorial do poder Houthi em 2014 acendeu a luz vermelha na Arábia Saudita, centro do Islã sunita. Os sauditas rapidamente apontaram interferência do Irã e seu interesse em estabelecer bases no Iêmen, para ter acesso ao estreito de Bab al-Mandeb e às rotas do petróleo. Em março de 2015, com apoio dos EUA, da França, do Reino Unido e mais oito países árabes, uma coalizão comandada pelos sauditas realizou uma série de ataques aéreos em áreas Houthi, com o objetivo declarado de restaurar o governo de Hadi. Washington batizou a campanha com o pomposo nome de Operação Renewal of Hope (ORH).

A linguagem empregada nessas ações atingiu graus macabros de cinismo: relatórios posteriores feitos por representantes da ONU e jornalistas falam em “crimes de guerra” cometidos durante esses ataques, com destruição de escolas, hospitais e mesmo um funeral. Até agora, mais da metade das vítimas, entre mortos e feridos, foi alvo dos ataques aéreos da coalizão saudita. Para completar, o ataque às infraestruturas de transporte e os bloqueios dos portos, fundamentais para o abastecimento do país, afetam duramente a população civil, que começou a entrar em longa agonia de desnutrição e morte. Desde 2017, observadores da ONU alertam para o que poderia ser a “prior crise humanitária em décadas”. Após forte pressão internacional o bloqueio portuário foi parcialmente suspenso pelos sauditas.

Segundo a UNICEF, com dados de 2019, mais de 15 milhões de crianças vivem em situação de carência. Os quatro anos de conflito mataram ou feriram ao menos 7,3 mil crianças. Cerca de 360 mil crianças sofrem de má-nutrição severa e metade delas já tem seu crescimento irreversivelmente comprometido. Dois milhões de crianças estão fora da escola. As sucessivas tentativas da ONU de mediar um acordo tem sido frustradas pela miríade de grupos e interesses em jogo em cada região.

O Iêmen não é signatário de tratados humanitários e parece que todos os atores levam isso em conta, sem receio de serem conduzidos ao banco dos réus no Tribunal Penal Internacional. O bloqueio que barrava a ajuda humanitária era conduzido pela coalizão saudita. Na ausência de um tratado assinado, o “efeito colateral” de impor a fome a civis parece ter se tornado tolerável para a comunidade internacional. A ajuda enviada por organizações internacionais para alimentar os necessitados tem por regra priorizar os refugiados, que somam dois milhões de pessoas. Contudo, quase nada chega aos milhões de iemenitas que residem nas áreas atingidas pelo conflito.

Morrendo de fome no Iêmen

Até onde a vista alcança, o fim do conflito no Iêmen é tão improvável e incerto quanto algum tipo de acordo entre Arábia Saudita e Irã. Enquanto os líderes mundiais fazem grandes gestos dramáticos  para seus eleitores,  o povo iemenita está sendo horrivelmente penalizado, morrendo lentamente diante das câmeras, um pouco a cada dia.

E 2020 mal começou…

 

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