No 1º de outubro, manifestantes reuniram-se na Praça Tahir, em Bagdá, para protestar contra os altos níveis de desemprego e de corrupção no país, que é o segundo maior produtor de petróleo da OPEP. O Iraque experimentou a invasão liderada pelos Estados Unidos, em 2003, para derrubar o ditador Saddam Hussein, a ascensão do jihadismo do Estado Islâmico, em 2014, e a guerra para derrotá-lo, que se estendeu até 2018. Nessa trajetória, os iraquianos sofreram com a contínua destruição das infraestruturas do país e com a degradação dos serviços públicos, como abastecimento de água e luz, problemas que alimentam insatisfações em todos os níveis da sociedade também integram a pauta de reivindicações das manifestações.
A opção do governo de lançar mão de brutal repressão resultou em um expressivo número de mortos e feridos e acabou provocando o efeito contrário. Apesar do bloqueio dos sinais de internet, em 2 de outubro, e da ordem de recolher, no dia seguinte, os protestos se espalharam por diversas cidades e muito mais gente foi para as ruas. A situação permanece instável, com protestos se sucedendo em Bagdá e outras cidades, especialmente no sul do país, e vertiginosa escalada no número de mortos e feridos friamente alvejados por forças de segurança e paramilitares. Entidades internacionais estão intensificando as denúncias de violações dos direitos humanos.
Os jovens se destacam nas manifestações, pois além de serem os mais afetados pelo desemprego, são os mais ligados às redes sociais utilizadas para organizar a recente onda de protestos
Das queixas pontuais, passou-se a exigir a renúncia de todos os políticos tradicionais e a completa mudança do sistema político. Nas últimas semanas, o governo começou a falar em reformar a Constituição, mas o povo rejeita tal proposta e não reconhece no Parlamento legitimidade para fazer tais alterações. A continuidade das manifestações descortina relações complexas que afetam todo o cenário do Oriente Médio e põe em foco o papel desempenhado pelo Irã.
Aparentemente, o estopim para os protestos foi o anúncio feito pelo primeiro ministro Adel Abdul Mahdi, em 27 de setembro, sobre a transferência do tenente-general Abdel Wahab Al-Saedium, dos comandantes da batalha de Mosul, para um órgão menos importante do Ministério da Defesa, decisão interpretada por muitos como um ato de desrespeito a quem é considerado um herói na guerra contra o Estado Islâmico. Foi então que as mídias sociais passaram a acusar o governo iraquiano de querer substituir “heróis nacionais” por nomes mais fiéis ao Irã, embora o primeiro-ministro negasse qualquer motivação política.
Mais de um anos após a derrota do Estado Islâmico no Iraque, a maior parte da população de quase 40 milhões de pessoas vive mal. Se a segurança melhorou, a infraestrutura destruída não foi reconstruída e os empregos continuam escassos. Os jovens, participantes majoritários das manifestações, parecem especialmente mobilizados pela falta de empregos e perspectivas. A taxa de desempregados entre eles é de 25% – o dobro da taxa de adultos, segundo o Banco Mundial. Por isso eles apontam o dedo para os políticos, a quem acusam de corrupção, e exigem uma completa mudança no sistema de governo e nas leis. O argumento central é que, com a riqueza gerada pelo petróleo, as coisas não deveriam estar tão ruins.
A Transparência Internacional lista o Iraque em 12º lugar entre os mais corruptos do mundo. De fato, a corrupção está instalada em todos os setores, com redes de clientelismo arraigadas, às vezes com famílias controlando setores da economia como feudos e desviando recursos em favor de seus sócios e apoiadores, o que inclui altos funcionários públicos e milícias.
Há sinais diversos de uma nova “Primavera Árabe”, na Argélia, no Líbano, no Egito e na Jordânia. As manifestações iraquianas iniciadas em outubro não são uma novidade, pois vêm ocorrendo desde o ano passado, embora com menor intensidade – e igualmente reprimidas com uso desmedido da força. Na cidade meridional de Basra, em setembro de 2018, a repressão deixou 30 mortos em uma única noite, provocando a queda do então primeiro-ministro Haider al-Abadi e a indicação de Abdul Mahdi.
A repressão aos manifestantes por parte das forças de segurança (oficiais e paramilitares) é cada vez mais violenta e já deixou centenas de mortos e milhares de feridos
Uma característica do regime do Partido Baath, de Saddam Hussein, foi ter tirado o protagonismo da religião em favor de um discurso nacionalista de tipo pan-arabista. Com o fim do seu governo, o Iraque voltou a ser dominado pelo sectarismo religioso, um veneno presente muito antes de o país ter sido criado, no final da Primeira Guerra Mundial. A partir de 2012, ao tentar formar um governo apoiado na maioria xiita, os Estados Unidos deixaram a porta aberta para o surgimento de seitas sunitas radicais como o Estado Islâmico.
O trauma deixado pelo ultrarradicalismo desses últimos parece ter feito virar a chave da política no Iraque. Na recente onda de protestos, um fenômeno promissor é a ausência de motivações sectárias: ao que parece, as divisões religiosas ficaram em segundo plano. Aparentemente, a maioria dos jovens não se identifica com nenhum partido ou seita e, pelo contrário, em muitos depoimentos a jornalistas o que se percebe é um sentimento nacionalista de tipo territorial, não étnico. A raiva é dirigida à classe política. “Eles estão simplesmente muito frustrados com o fato de não terem empregos”, afirma Imran Khan, jornalista da Al Jazeera.
Desde o verão de 2018 tem se sucedido manifestações, menores que as atuais, em cidades do sul do Iraque, de população majoritariamente xiita. A novidade é que um dos principais alvos de suas insatisfações é o Irã (persa e xiita), a quem acusam de excessiva intervenção, escudada em pretextos religiosos. Em cidades como Basra, Najaf e Karbala ouviram-se slogans anti-iranianos, enquanto edifícios governamentais e sedes dos partidos pró-Irã eram queimados. Os jovens rasgaram e queimaram fotos do aiatolá Ruhollah Khomeini, o líder religioso da Revolução Iraniana, em 1979, e do aiatolá Ali Khamenei, atual presidente do Irã.
O atual presidente do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, ao lado da foto do aiatolá Khomeini, a referência máxima do poder teocrático que rege o país
De 2018 a 2019. No 25 de outubro, em Karbala, os manifestantes voltaram a entoar palavras de ordem contra o Irã. Dias depois, em 3 de novembro, o consulado do Irã na cidade foi invadido e incendiado e uma bandeira iraquiana substituiu a iraniana. Em todos os eventos, desse ano e do anterior, a agitação foi contida por agentes de segurança do Iraque e, principalmente, ao que parece, por forças financiadas por Teerã, como a milícia Quds e o Hezbollah, partido-milícia libanês, que são responsabilizados pela morte de dezenas de pessoas e milhares de feridos.
O apoio do Irã às milícias e partidos xiitas no Iraque desde 2003 aumentou seu peso político no destino dos iraquianos. Por isso, grande parte da população iraquiana responsabiliza Teerã pela corrupção e incompetência dos sucessivos governos instalados em Bagdá. Para muita gente, o governo vizinho se vale da confusão para pilhar as riquezas do seu país. Analistas árabes acusam o Irã de usar a mesma estratégia no Líbano e Síria: a pretexto de proteger os xiitas, Teerã interfere na política desses países para aumentar seu raio de influência e drenar recursos econômicos que ajudam a superar as dificuldades impostas pelas sanções americanas.
Como toda história sempre tem dois lados, não podemos esquecer que Iraque e Irã travaram uma longa guerra, entre 1980 e 1988, na qual se mesclavam nacionalismo e Guerra Fria – e que essa velha rivalidade pode estar ressurgindo em meio ao caos.
O chefe da comissão de direitos humanos do parlamento iraquiano disse à rede Al Jazeera que, desde 1º de outubro, 319 pessoas morreram e mais de 15 mil foram feridas, incluindo agentes de segurança. A Missão de Assistência das Nações Unidas para o Iraque (UNAMI) tem denunciado o uso de armas letais por parte das forças de segurança e a prisão irregular de manifestantes, muitos dos quais desapareceram. Para a UNAMI, é fundamental que sejam abertas investigações sobre o sequestro de ativistas e médicos e feita a “divulgação dos nomes dos responsáveis” por esses atos.
Relatório da Human Rights Watch (HRW) afirma que as forças de segurança tem disparado gás lacrimogênio e munição letal contra médicos, enfermeiros e motoristas de ambulância como punição por tratarem os manifestantes. “Os médicos se tornaram mais uma vítima da repressão excessiva do Estado. Esses ataques demonstram total desconsideração pela exigência de que certos trabalhadores relacionados à saúde possam desempenhar sua atividade vital”, disse Sarah Leah Whitson, diretora da HRW.
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