CHINA: DA REVOLUÇÃO COMUNISTA À REVOLUÇÃO CULTURAL

30 de setembro de 2019

 

Mao Tsé-tung foi o último grande representante do fenômeno do totalitarismo político. Assim como Stalin e Hitler, ele também relacionava o desenvolvimento histórico e social a partir de uma leitura cínica do evolucionismo, cuja ênfase recaía sobre a “lei do mais forte”. Para Mao, o princípio marxista da luta de classes confirmava o papel da violência como motor da história. O que era a morte de milhões de pessoas diante do imperativo histórico do avanço das sociedades? Mao explica:

“Revolução contínua. Nossas revoluções vêm uma depois da outra. (…) Nossas revoluções são como batalhas. Após uma vitória, devemos imediatamente propor uma nova tarefa. Dessa forma, os quadros e as massas estarão sempre cheios de fervor revolucionário, em vez de presunção. Com efeito, não terão tempo para presunção, mesmo que gostem de se sentir presunçosos. Com novas tarefas sobre os ombros, estarão totalmente preocupados com os problemas de cumpri-las.” (Spence, p. 545). E assim não teriam tempo para criticar os chefes – completamos. 

Com esse pensamento, o principal líder da Revolução Comunista na China se tornou um dos maiores violadores de direitos humanos do século XX, demonstrando total desapreço pela vida em sua obsessão de construir o “novo Homem socialista”. Mais do que isso, Mao exploraria até o limite a instabilidade revolucionária a fim de eliminar seus adversários para se manter no poder.

Nesse aniversário de 70 anos da Revolução Chinesa, celebrado em 1º de outubro, 1948 apresenta, em duas partes, uma pequena história, da proclamação da República até a abertura econômica do gigante comunista no final da década de 1980.

 

A REPÚBLICA NACIONALISTA (1911-1949)

O milenar Império do Meio – como é conhecido o Império Chinês – deixou de existir a partir de 1911, pela proclamação da República por Sun Yat-sen e seu Partido Nacionalista (Kuomintang, KMT). A mudança do sistema político se deu em um país tomado por uma série de problemas e contradições, em parte decorrentes de sua própria história, como a super-exploração dos camponeses por uma diminuta elite burocrática letrada. E havia a questão da ocupação imperialista, que desde o século XIX, impunha o controle estrangeiro sobre certas áreas do país, humilhando o povo e fazendo nascer o sentimento nacional (coisa até então estranha à sociedade chinesa), além de agravar a exploração econômica e a miséria social.

Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o Japão declarou guerra à Alemanha justificando assim a ocupação da região chinesa de Shandong, possessão do inimigo. A partir de então o Império do Sol Nascente não deixou de ambicionar o controle sobre a vasta China e seus recursos naturais, sabidamente escassos no Japão.

Já a Revolução Russa repercutiu na China ideológica e pragmaticamente. Aderindo ao modelo revolucionário marxista-leninista, um grupo de estudantes e trabalhadores fundou o Partido Comunista Chinês (PCC) em Xangai, em 1921, para organizar a classe trabalhadora e implantar o socialismo. Mas o Comitê Central em Moscou sabia que não podia enfraquecer suas fronteiras orientais, pois ali estaria o velho rival japonês a ameaçar as terras russas. Portanto, uma China mergulhada em uma guerra civil provocada por comunistas e nacionalistas não interessava em hipótese alguma. Então, os bolcheviques ofereceram apoio ao presidente Sun Yat-sen, incluindo o envio de agentes para ajudar na organização militar e política do KMT, desde que em, troca do apoio, o PCC não fosse tratado como inimigo.

O compromisso, que dera espaço para o PCC crescer, desapareceu com a morte de Sun Yat-sen, em 1925, e sua substituição por Chiang Kai-shek. Em 1927, o governo republicano promoveu um massacre de militantes comunistas em Xangai, a cidade mais industrializada da China. O jovem líder Mao Tsé-tung conseguiu escapar para as montanhas no sudeste, onde permaneceria clandestino, reorganizando o PCC.

A aparente hegemonia alcançada por Chiang Kai-shek escondia o agravamento das condições de vida dos trabalhadores, sobretudo camponeses. As modernizações realizadas no período seguiam a linha típica dos países colonizados: capitais estrangeiros investidos em transportes, bancos e bens de consumo, enquanto as taxas alfandegárias preferenciais cedidas aos europeus desestimulavam qualquer competição de parte do empresariado chinês.

Nesses anos de clandestinidade, os comunistas focaram a militância no campesinato, conquistando um grande número de adeptos e fazendo a reforma agrária nas áreas sob o seu controle, como Kiangsi e Fukien. Já o presidente Chiang Kai-shek fechou o cerco às tropas de camponeses e foragidos liderados por Mao, obrigando-os a empreender uma retirada desesperada que viria a ser glorificada pelo futuro regime comunista pela expressão Longa Marcha (1934-1936).

Em 1931, sob um regime de tipo fascista, o Japão anexou a Manchúria e criou o Estado fantoche de Manchukuo, aparentemente governado por Pu-yi, o último imperador da China. Seis anos depois, tropas japonesas começaram a invadir o restante do território desencadeando a guerra sino-japonesa, que acabaria se mesclando à própria Segunda Guerra Mundial. A urgência de combater o imperialismo japonês obrigou o KMT a aceitar uma nova aliança com o PCC e o país acabou divido em três regiões: as cidades litorâneas, controladas pelos japoneses; o sudeste, pelo KMT; o noroeste, pelo PCC, que iniciou intensa atividade guerrilheira por todo o país.

A derrota japonesa na guerra mundial deveu muito à encarniçada resistência chinesa e à dificuldade de controlar seu gigantesco território. Por isso, quando da fundação da ONU, as potências aliadas incluíram a China no Conselho de Segurança da nova instituição como membro permanente.

Guerra Civil Chinesa

 

A REPÚBLICA POPULAR DA CHINA (1949-1980)

Desaparecido o inimigo externo, KMT e PCC passaram a lutar abertamente pelo poder. O povo, cansado da miséria, aderia ao PCC aos milhares; o comunismo prometia ser o elixir para as seculares feridas chinesas. Em 1º de outubro de 1949, quando Mao e suas tropas entraram em Pequim pondo fim à guerra civil, os seguidores do KMT fugiram para a ilha de Taiwan. Ali instalaram o que diziam ser a nova sede da República Nacional Chinesa, negando legitimidade ao novo governo no continente, num Estado rebatizado como República Popular da China. Era o ano zero da revolução comunista.

Conceitos como cidadania e igualdade civil eram estranhos à sociedade chinesa, baseada no confucionismo e nas hierarquias. Daí a aparente familiaridade com que o povo recebeu o novo regime de tipo leninista, centralizador e planificador. No primeiro momento, o controle sobre o aparelho de Estado foi dividido entre o PCC e o Exército de Libertação Popular (ELP). Na prática, o partido único eram controlado pelo Comitê Central e, dentro desse, pelo Politburo (Bureau Político), no qual se destacavam Mao Tsé-tung, Chou En-lai, Zhu De, Chen Yun e Liu Shao-chi.

Com a deflagração da Guerra Fria, a China comunista obteve apoio de um único país, a URSS. No início de 1950, Mao e Stalin assinaram o Pacto de Amizade, Aliança e Ajuda Mútua, que previa transferência de tecnologias, vital para que a China se desenvolvesse rapidamente e o comunismo vingasse. Seguindo o modelo soviético de planificação da economia, de 1953 a 1957 vigorou o primeiro Plano Quinquenal. As prioridades estavam na indústria de base, energia e transportes, cujo desenvolvimento seria financiado pelas exportações agrícolas. Entretanto, a produtividade agrícola era baixíssima, em um país que ainda dependia totalmente do trabalho manual. Por isso, os menos de 10% investidos nesse setor anunciavam problemas práticos em relação às futuras safras, das quais se esperava sempre muito. Para piorar, à desorganização dos mercados provocada pelas coletivizações forçadas, somavam-se as inundações dos rios Amarelo (Huang He) e Azul (Yangtze), afetando terrivelmente a produção e agravando a situação de milhões de miseráveis.

 

O difícil começo 

A morte de Stalin, em 1953, seguida pela ascensão de Nikita Kruschev na liderança soviética trouxe a primeira divisão política importante para interior do Partido Comunista Chinês. A denúncia dos crimes cometidos contra o povo da URSS a mando do ditador, no XX Congresso do PCUS em 1956, colocou no centro do debate o problema do “culto à personalidade” e do quão perigosa poderia ser a concentração desmedida de poder em uma só pessoa, sobretudo em um regime que dizia representar o povo por meio de uma complexa cadeia de delegados do partido, comissários e chefes.

Evitando discordar abertamente de Moscou, Mao formou um bloco junto com Chou En-lai (o primeiro-ministro), Chen-Yun (secretário-geral do Partido) e o general Lin Biao (ELP) para defender uma postura mais tolerante em relação a intelectuais, cientistas e artistas que haviam saído do país em 1949, mas começavam a retornar depois de algum tempo. Os líderes comunistas viam tais figuras como necessárias para o desenvolvimento do país. Em sentido oposto, Liu Shao-chi, Zhu De, (comandante em chefe do ELP) e o general Peng De-huai pregavam a manutenção da rígida disciplina partidária, mesmo que à custa da perda do apoio de intelectuais e profissionais qualificados.

Na prática, o personalismo era representado exatamente por Mao Tsé-tung – e, para desviar o foco, ele estimulou os intelectuais a apresentarem suas críticas. Na prática, sua intenção era isolar seus adversários dentro do Partido, sobretudo quando os maus resultados do Plano Quinquenal começaram a aparecer e algumas propostas do líder máximo começaram a ser sutilmente descartadas. O que parecia ser uma limitação ao “culto à personalidade” de Mao, na realidade dava força à linha mais radical e centralizadora de Liu Shao-chi.

Mao, contudo, mantinha o controle sobre boa parte da máquina partidária e  insistiu no que foi batizada de “Campanha das Cem Flores”, teoricamente um movimento destinado a promover reformas no PCC a partir das críticas externas. Ele só não imaginava a rapidez e a força que a campanha ganharia, entre maio e junho de 1957, com estudantes e intelectuais criticando duramente os dirigentes do partido. Assustados com o rumo da coisa, e já alertas pelas rebeliões anti-soviéticas na Hungria e na Polônia no ano anterior, a cúpula do PCC começou a reagir.

Cioso de seu próprio poder, Mao avisou que a finalidade das críticas era aperfeiçoar o regime – e que qualquer coisa diferente seria definida como ação de “direitistas” e “inimigos de classe”. Em julho, desencadeou-se a repressão e milhares de intelectuais foram levados a campos de trabalhos forçados. Em poucos meses, uma geração inteira de pensadores, cientistas e artistas, alguns dos melhores da China, diversos deles oriundos da Liga da Juventude Comunista e militantes de muitas décadas, foram silenciados. Ficava evidente que a China não seguiria o caminho da desestalinização e, pelo contrário, a liderança de Mao se enraizava.

Parte do Comitê Central na década de 1950. Mao Tsé-tung sempre se destacava, mesmo que pela cor mais clara da vestimenta.

Parte do Comitê Central na década de 1950. Mao Tsé-tung sempre se destacava, mesmo que pela cor mais clara da vestimenta

 

O programa do Grande Salto Adiante

O anúncio de que os Estados Unidos instalariam mísseis de curto alcance em Taiwan agitou Pequim. Em 1957, China e URSS assinaram um acordo de transferência de tecnologia para a fabricação da bomba atômica, que acabaria por não se realizar. A nova “coexistência pacífica” com os EUA, anunciada por Kruschev, era o reconhecimento de um equilíbrio geopolítico de poder. Mao condenava essa avaliação como um erro terrível, quase uma rendição. A meta de transformar a China em potência militar entrava em choque direto com a estratégia de distensão de Kruschev.

Mao insistia na aquisição do poder nuclear e a decisão de alçar a China ao estatuto de superpotência militar tomou a forma de um programa de desenvolvimento autônomo da bomba atômica. Foi nessa época que ele começou a promover o general Lin Biao, seu fiel apoiador, aos círculos mais altos do PCC.

No verão de 1958, foi anunciado o Programa de Superpotência, que almejava construir um arsenal nuclear operacional no prazo de cinco anos. A meta militar era parte do projeto oficial mais amplo de promover a rápida industrialização do país. Surgia o programa Grande Salto Adiante, cuja ambição era acelerar o ritmo de desenvolvimento do país pela completa reorganização da ordem social e econômica. Como ficou evidente no Primeiro Plano Quinquenal, um dos maiores obstáculos era a ausência de uma força industrial capaz de suprir a produção de maquinário agrícola, sem o que não se liberava mão-de-obra para as cidades.

O ponto de partida de toda essa remodelação era a formação das Comunas Populares, criadas em meados de 1958. As comunas completavam o movimento de reorganização das comunidades camponesas iniciado quase uma década antes, quando surgiram as primeiras cooperativas. Reestruturadas em grandes unidades, formaram-se 26 mil Comunas Populares, totalizando 120 milhões de famílias, incluindo pequenas cidades e vilarejos. No novo modelo, a vida familiar e privada cedia a precedência ao Estado e ao Partido, pois todos deveriam viver em alojamentos coletivos, compartilhando casas e refeições; em certos lugares os casais só tinham direito a um encontro reservado por semana. Como as comunas englobavam a quase totalidade da população camponesa, teoricamente o Estado teria um alto grau de controle sobre cada unidade produtiva.

 

A realidade: grande salto para trás

Sob intensa campanha de propaganda e doutrinação, as pessoas foram instadas a provar que a vontade e a força humanas podiam vencer os maiores desafios naturais e técnicos. Entre outras coisas, o governo mobilizou imensos contingentes para trabalhar em obras de controle de águas e irrigação, problemas crônicos na China, bem como para explorar minérios, como o urânio, para o programa nuclear. A grandiosa improvisação totalitária completava-se com exigências de produção elevadíssima, para cobrir as metas impostas pelos órgãos centrais de planificação.

Estimulados por alguns resultados aparentemente promissores, e não querendo frustrar as expectativas dos superiores, os agentes governamentais começaram a superestimar as previsões de produção. Mas ninguém contestava para não ser acusado de “direitismo” ou “derrotismo”. O governo providenciou fotos mostrando a dedicação das pessoas ao trabalho e campos superlotados de plantas. Mais tarde, descobriu-se que os chefes locais ordenavam o transplante de mudas de locais diversos para um mesmo lote, criando uma ilusão de fabulosa abundância.

As estimativas de produção eram tão fantásticas que, em várias regiões, a orientação foi suspender o plantio por não haver espaço para estocagem. Com a alimentação supostamente garantida, as atenções podiam se concentrar no processo de industrialização. Então, o governo decidiu que a produção de aço iria dobrar em um ano, de 5,35 milhões de toneladas para 10,7 milhões, por meio da construção de fornos siderúrgicos domésticos.

A partir de então a vida nas comunas giraria em torno desses fornos, pois havia cotas a serem cumpridas e, para atingi-las, as pessoas deixaram de lado seus afazeres habituais. Adultos e crianças eram orientados a procurar pregos, parafusos e qualquer pedacinho de metal para jogar nos grandes tachos, enquanto professores e médicos alternavam-se com agricultores e artesãos na constante vigília para manter aceso o fogo dos fornos e mexer o ferro em fusão. Queimando lenha para manter os fornos, as florestas foram devastadas.

O depoimento da escritora Jung Chang, que participou dessa história quando criança, em seu livro de memórias Cisnes selvagens – Três filhas da China:

Em um país onde o abastecimento agrícola sempre foi um problema para os governantes, as reformas impostas pelo governo resultaram em desastre humanitário completo. Milhões morreram de fome, muitos por ingestão de terra e planta impróprias para consumo humano.

Em um país onde o abastecimento agrícola sempre foi um problema para os governantes, as reformas impostas pelo governo resultaram em desastre humanitário completo. Milhões morreram de fome, muitos por ingestão de terra e planta impróprias para consumo humano

“Um grande forno fora construído no estacionamento onde os motoristas esperavam. À noite, o céu ficava iluminado, e a trezentos metros, em meu quarto, ouvia-se o barulho da multidão em volta dos fornos. Os woks de minha família foram parar naquele forno, junto com todos os utensílios de ferro fundido. Não sofremos com sua perda, pois não precisávamos mais deles. Não se permitia agora nenhuma cozinha particular, e todos tinham de comer na cantina. Os fornos eram insaciáveis. Foi-se a cama de meus pais, muito macia e confortável, com molas de ferro. Desapareceram também as grades de ferro das calçadas da cidade, e tudo mais que fosse de ferro. Durante meses eles nem voltavam para casa, pois tinham de assegurar que a temperatura nos fornos de seus escritórios jamais caísse.” (p. 204).

É difícil, ainda hoje, avaliar o tamanho do desastre. A safra, estimada em 375 milhões de toneladas de grãos, não alcançou 250 milhões. Em menos de dois anos a fome se espalhou pelo país. O número de vítimas, grosseiramente estimados mas sempre acima da marca de 20 milhões, é cerca de quatro vezes maior do que o número de vítimas da coletivização soviética dos anos 1930. Ao mesmo tempo, em 1959, a China exportou 4,74 milhões de toneladas de grãos, no valor de US$ 935 milhões, para pagar a ajuda econômica fornecida pela URSS.

Um dos mais cruéis efeitos do Grande Salto Adiante foi a morte em massa de crianças, as mais vulneráveis. O desastre demográfico teria efeitos imediatos sobre o próprio projeto de industrialização, pois baixos excedentes populacionais retardavam o ritmo de urbanização do país. No fim, o principal objetivo industrial do programa, a produção de aço nas comunas, foi suspenso porque o metal obtido era de péssima qualidade.

Quando os membros da alta cúpula do PCC se deram conta da miséria à qual o povo tinha sido lançado, a autoridade de Mao começou a ser questionada. Mas Mao, ele próprio, nunca se abalou com o número de mortos que suas decisões produziam: eram detalhes na grande marcha da História rumo ao comunismo.

 

O cisma sino-soviético

Discretamente, no final de 1959, o Comitê Central decidiu afastar Mao da presidência do Estado, nomeando seu maior rival, Liu Shao-chi, para o cargo.  Todavia, Mao não foi afastado nem do comando do Partido, nem do das forças militares. E isso significava que ele continuava no jogo com cartas fortes.

Nesse ínterim, ficou evidente que o governo de Moscou não iria transferir as informações para o desenvolvimento da bomba atômica chinesa, pois isso enfraqueceria a própria hegemonia soviética sobre os países do bloco comunista. Os chineses reagiram mal e a relação entre os dois países rapidamente degringolou. Os jornais ligados ao Partido criticavam explicitamente a “coexistência pacífica” de Kruschev. Em resposta, a União Soviética declarou apoio à Índia, contra a China, no conflito de fronteira que se desenrolava na região do Butão.

Em setembro de 1960, após novas críticas, todos os técnicos e agentes soviéticos foram retirados da China. Meses depois, o governo em Pequim deixou claras suas intenções de disputar um papel de destaque no cenário internacional. Em 17 de outubro de 1964 a China explodiu sua primeira bomba atômica, no deserto de Gobi (base do Lop Nor).

A China comunista, em sua imensa pobreza, era agora parte do seleto clube das potências nucleares. E isso significava, realmente, a independência frente à URSS.

 

A REVOLUÇÃO CULTURAL E O CULTO À PERSONALIDADE

A melhora nas condições de vida rapidamente obtida com as limitadas reformas em curso fortaleceu a posição do novo presidente, Liu Shao-chi, junto aos membros do Partido, enquanto seu nome ganhava as ruas graças ao trabalho da imprensa controlada pelo governo. A ala maoista logo reagiu, a fim de impedir que os defensores da estabilização ganhassem mais força. Mais uma vez, Mao começou a fazer discursos insinuando que os líderes do Partido estavam se afastando do povo e se convertendo em uma nova elite arrogante. Para o líder ameaçado, estava na hora de falar novamente em revolução, mobilizando as massas para evitar a “burocratização” do Partido.

Primeiro, o fiel Lin Biao organizou o Livro Vermelho – nome popularizado em razão de sua capa plástica vermelha – que trazia trechos de discursos de Mao para serem debatidos e decorados pelos militares do Exército de Libertação do Povo. Pouco depois veio a publicação de um inocente livro de propaganda infanto-juvenil, o Diário do soldado Lei Feng. O personagem teria sido um soldado, que morrera tentando fazer o bem em nome da Revolução e de Mao Tsé-tung. O diário, inventado por Lin Biao, descrevia a vida de um verdadeiro herói e se tornou uma febre entre crianças, adolescentes e jovens soldados, desencadeando numa frenética competição para imitar Lei Feng por meio da prática de boas ações e da idolatria ao veterano líder.

No fim, o Livro Vermelho foi distribuído em todos os lugares, comunas e vilas, onde grupos de estudos eram obrigados a se reunir semanalmente para aprender o “pensamento de Mao”. A repetição contínua de slogans era um modus operandi do regime, bem como as penosas sessões de autocrítica em nome da purificação ideológica. Se o Grande Salto Adiante desestruturou o núcleo familiar por meio das Comunas Populares, dessa vez os alvos eram os indivíduos, que deveriam abdicar de sua razão em nome da fé no Líder.  Recorria-se, assim, ao máximo expediente totalitário: o culto declarado à figura do líder político e a anulação do indivíduo, que não deve ter vida ou pensamento próprios.

imagem de milhares de chineses andando com o mesmo modelo de bicicleta e usando as mesmas roupas foi, durante décadas, a imagem de uma sociedade totalitária na qual não havia espaço possível para as individualidades, logo classificadas de "direitismo" e "feudal".

Milhares de chineses andando com o mesmo modelo de bicicleta e usando as mesmas roupas. A imagem de uma sociedade totalitária na qual não havia espaço possível para as individualidades

O estopim para o surgimento da chamada Revolução Cultural deveu-se à reação de Mao Tsé-tung e sua esposa, Jiang Qing, contra um velho expediente popular muito usado para criticar os governantes: a ópera. Histórias de fundo moral cantadas e interpretadas existiam na China havia séculos e eram uma forma de lazer apreciada por todos. Destacavam-se particularmente os “dramas de fantasmas”, histórias nas quais pessoas e animais voltavam do além para vingar alguma injustiça. Aqueles fantasmas falavam verdades aos poderosos e funcionavam como veículos de expressão da opinião pública. Um personagem muito apreciado era Hai Rui, um alto funcionário da dinastia Ming demitido por defender o povo. Mao e Jiang Qing sabiam que o personagem vinha sendo usado para criticar o líder máximo, representado como um imperador cego pelo poder.

 

A campanha contra os “Quatro Velhos”  

Jiang Qing, a senhora Mao, alertava para o temário das óperas, ligado ao passado imperial e à velha sociedade. Ela sugeriu a renovação do gênero por meio de novas histórias pautadas pela abordagem socialista e revolucionária. Mao designou Lin Biao para levar adiante tal tarefa.

Juventude da Guarda vermelha da China empunha o canônico Livro Vermelho em campanha contra os "Quatro Velhos"

Juventude da Guarda Vermelha empunha o canônico Livro Vermelho, em campanha contra os “Quatro Velhos”

O mote da vez era atribuir os insucessos da revolução às resistências das pessoas mais antigas – ou que houvessem ocupado posições mais destacadas – e recusavam-se a mudar seu modo de pensar e agir. Para envolver novamente as massas no élan revolucionário, Mao e Biao criaram a campanha contra os Quatro Velhos – a velha cultura, os velhos valores, os velhos costumes e o velho pensamento.

A Grande Revolução Cultural Proletária começou na primavera de 1966, quando Mao tinha 73 anos de idade.  Acusando seus inimigos de temerem uma avaliação pública do Partido após “cederem ao capitalismo” e ao “espírito burguês”, ele conseguiu que o Comitê Central realizasse uma série de expurgos em toda a cúpula e, em seguida, nas posições imediatamente inferiores de comando.

Mobilizados pela idolatria a Mao – “o Sol vermelho em nossos corações”, segundo fórmula adotada à época –, milhões de jovens foram convocados a dar continuidade à revolução ajudando a combater os Quatro Velhos. O conhecimento adquirido no passado, visto como sinal distintivo de classe social, e o uso do poder para obter vantagens eram os alvos aparentes. Escritores, cientistas, artistas, professores, membros do PCC deveriam ser “reeducados” para que a sociedade comunista pudesse desabrochar. Agressões físicas e verbais, humilhações, castigos e autocríticas faziam parte daquela violenta pedagogia.

A nova vanguarda revolucionária era formada por adolescentes fanatizados pela imagem onipresente de Mao Tsé-tung. Logo surgiram braçadeiras para identificar os auto-denominados Guardas Vermelhos. Criou-se, assim, uma força com característica paramilitar rapidamente encorajada a destruir os antigos edifícios, queimar livros e quebrar objetos de arte, além de investir contra todas as formas tradicionais de autoridade, incluindo pais, professores e dirigentes políticos. A violência explodiu.

Estátuas de Buda desfiguradas após ataque durante a Revolução Cultural. A destruição do patrimônio histórico e cultural durante esses anos é incalculável

Estátuas de Buda desfiguradas após ataque durante a Revolução Cultural. A destruição do patrimônio histórico e cultural durante esses anos é incalculável

As aulas foram suspensas por mais de um ano porque os estudantes deixavam as escolas para viajar pelo país e ajudar a combater os “inimigos de classe”, “capitalistas” e “feudais”, auxiliando os trabalhadores em tarefas como lavar roupas, limpar dormitórios e preparar refeições, como faria o soldado Lei Feng. Após o périplo, esses milhões de jovens dirigiam-se à Praça Tianamen, em Pequim, na tentativa de avistar o líder inconteste. Por ordem direta de Mao, os soldados da Guarda Vermelha poderiam viajar de graça nos trens e obter alojamento e alimentação em qualquer cidade ou vila da China.

 

O “Sol Vermelho em nosso corações”

A Revolução Cultural resultou da disputa pelo poder na cúpula do PCC iniciada em meados da década de 1950. A questão central era definir o papel do Partido na construção da ordem comunista.

Da época da guerrilha, nos anos 1920, até a sua morte, em 1976, Mao sempre defendeu a mudança radical, que só poderia ser alcançada com a destruição do passado, revirando a ordem cotidiana contra qualquer acomodação, interpretada como rendição aos “inimigos de classe” e conciliação com o “revisionismo”. Contudo, para outros, como Liu Shao-chi, chefe de Estado nominal da China até 1968, a imposição violenta e arbitrária de novas ordens gerava desorganização e mais pobreza, impedindo a estabilização do próprio regime comunista.

Em sua nova investida contra a “burocratização” do partido, Mao jogava a carta do poder absoluto. Ele apontou o dedo para Liu Shao-chi acusando-o de “revisionista” – o maior dos pecados. Liu foi preso, em agosto de 1966, junto com sua esposa, Wang Guang-mei, acusada de espionagem. Ambos foram obrigados a fazer autocríticas públicas, sofrendo todo tipo de humilhação e agressões. O maior rival de Mao morreu em novembro de 1969. Guang-mei suportou 12 anos de prisão, antes de ser reabilitada. As engrenagens totalitárias moíam quem ousava divergir do grande líder. Em 1967, Deng Xiao Ping e Tao Zhu, os dois principais auxiliares de Shao-chi, foram presos.

No início de 1967 a Revolução Cultural entrou na fase autofágica. Por todo o país surgiram “alianças operário-camponesas” determinadas a assumir o controle direto sobre as fábricas e outras repartições, por meio da derrubada dos comissários-chefes, os “burocratas arrogantes”. Além disso, os diferentes grupos começaram a disputar entre si a condição de mais radical ou mais fiel ao Presidente Mao. Em meio à paixão e fúria, havia muito cálculo de lideranças locais almejando promover a própria carreira política. Atacando supostos inimigos, ou combatendo grupos opositores e concorrentes,  os envolvidos apelavam à violência física e deixavam centenas de mortos e feridos pelo caminho.

Guardas da China torturando mulher. Posição de avião.

Cena corriqueira no período. O cartaz no pescoço denuncia seu “crime”; a “posição do avião”, com os braços voltados para trás e ao alto, destruíam a resistência física e psicológica dos acusados

Quando a radicalização ameaçou escapar ao controle, o ELP foi chamado a restabelecer a ordem. A repressão foi brutal, com milhares de mortos. No verão de 1968, os jovens receberam ordens para voltarem às suas casas e retomarem os estudos. Mas não havia mais escolas, nem bibliotecas e, em muito lugares, sequer professores. O sistema educacional do país havia sido destruído.

Danos secundários, diria Mao, considerando-se que o objetivo principal fora alcançado: a exclusão de seus principais oponentes na cúpula do partido. Da velha guarda, restavam Chou En-lai, o chanceler e face pública internacional da China, que se sujeitara por completo ao Grande Timoneiro, e Lin Biao, transformado em número dois do partido. Naquele período, o PCC passou a ser amplamente controlado pelo Exército de Libertação do Povo, cujos integrantes compunham cerca de 80% dos quadros do Comitê Central.

E o poder de fato, seguia firme nas mãos do Grande Timoneiro.

 

 

SAIBA MAIS

  • CHANG, Jung. Cisnes selvagens – Três filhas da China. São Paulo, Companhia das Letras, 1999
  • CHANG, Jung & HALLIDAY, Jon. Mao. A história desconhecida. São Paulo, Companhia das Letras, 2006
  • FROLIC, Michael B. Le peuple de Mao. Scenes de la vie en Chine révolutionnaire. Paris, Gallimard, 1982
  • SPENCE, Jonathan D. Em busca da China moderna. São Paulo, Companhia das Letras, 1996

 

 

 

 

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