O ZIMBÁBUE ENTERRA TRÊS MUGABES

 

Peter Fry

(Antropólogo, professor emérito do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ)
23 de setembro de 2019

 

O Zimbábue enterra três MugabesEm 6 de setembro, um pouco menos de dois anos depois de ter sido deposto como presidente de Zimbábue por um golpe militar, morreu aos 95 anos de idade num hospital em Cingapura onde foi internado no abril passado, Robert Gabriel Mugabe.  No dia 12, o corpo dele chegou de avião em Harare num caixão embrulhado num material de cor bege com uma flecha apontando para cima, como se fosse uma mercadoria frágil.

Recebido pelos altos dignitários do Estado e sua viúva, Grace Mugabe, coberta num véu preto espesso, o corpo recebeu os primeiros discursos. 

Proeminente na ocasião foi o atual presidente, Emmerson Mnangagwa.  Este teria sido grande companheiro de Mugabe até novembro de 2017 quando foi demitido da vice-presidência e partiu para o exílio na África do Sul, temendo por sua vida. Após a deposição de Mugabe, em novembro de 2017, voltou para ser eleito presidente em julho de 2018.  Ao lado da viúva, por muitos suspeita de ter arquitetado a rixa entre os dois como parte da sua própria estratégia de assumir a presidência, Mnangagwa fez de conta que nada acontecera e proferiu um discurso repleto de elogios ao “pai fundador da nação independente de Zimbábue, nosso comandante revolucionário durante a luta pela independência, um ícone do pan-africanismo”.

“A nação inteira”, continuou, “está de luto porque a luz que nos levou à independência não mais acende, mas suas obras, ideologia, continuarão a guiar a nação”. Terminou apelando aos zimbabuanos a aparecer “no dia em que será posto para descansar, às centenas, milhares e milhões, para mostrarem o vosso amor ao grande líder que nos deixou”.    

Mas Mugabe não chegou, propriamente, a descansar. No dia 14 de setembro, sob a manchete “Mesmo morto, Mugabe está dando uma dor de cabeça para Mnangagwa”, o jornal Times Live, da África do Sul, revelou os bastidores de uma disputa entre o governo do Zimbábue e os familiares de Mugabe sobre o lugar do enterro. 

 

Um enterro em disputa

Mnangagwa queria que Mugabe fosse enterrado, junto com os demais heróis da luta pela independência, em Heroes Acre (o Alqueire dos Heróis), um imenso monumento em estilo social-realista, encomendado pelo morto , desenhado e construído pelos norte-coreanos, inaugurado dois anos depois da independência, em 1982. Mas a viúva e um sobrinho recusaram.  Disseram que, depois de sua deposição, Mugabe ficou tão ressentido que teria dito que não queria ser enterrado no Alqueire dos Heróis, pois não queria que Mnangagwa aproveitasse da sua morte para presidir sobre o seu funeral no lugar concebido pelo próprio Mugabe.

Alqueire dos Heróis, em Harare, Zimbábue

O Alqueire dos Heróis, nas cercanias de Harare

A disputa se resolveu quando Mnangagwa aceitou a sugestão da viúva de que seu marido fosse enterrado não num túmulo singelo, com todos os outros, mas num mausoléu a ser construído no ponto mais alto do Alqueire dos Heróis.  Dizem as fofocas jornalísticas – true ou fake news, não se sabe – que a viúva só concordou depois da ameaça de ser despejada da sua mansão, que continua oficialmente como propriedade do partido do governo, a União Nacional Africana de Zimbábue (ZANU). Como parte desse acordo, resolveu-se protelar o enterro até o término da construção do mausoléu, organizando-se na data original, o 15 de setembro, um velório no imenso Estádio Nacional de Esportes com capacidade para 60 mil pessoas.  

Além de figuras do governo, dirigentes da ZANU, altas patentes do Exército e lideranças do partido da oposição, o Movimento para Mudança Democrático (MDC), que perdeu por pouco a eleição presidencial de julho de 2018, compareceram no velório dignitários de mais de dez países africanos. O presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, foi vaiado por conta de recentes ataques xenófobos no seu país contra zimbabuanos e nigerianos. Também apareceram e alguns ex-presidentes, como Jerry Rawlings, de Gana, e Thabo Mbeki e Jacob Zuma, da África do Sul. 

Mas o estádio não se encheu das “centenas, milhares e milhões” cuja presença Mnangagwa exigira dias antes. Segundo Vinicius Assis, da Rede Globo de Televisão, ele e outros repórteres presentes estimaram que apenas 20 mil assentos foram tomados. 

O Estádio Nacional, em Harare, no velório de Mugabe

O Estádio Nacional, em Harare, no velório de Mugabe

Em seguida, o corpo foi levado de helicóptero para o lugar onde Mugabe nasceu, na comunidade de Zvimba.  Aí, começou mais uma fofoca. Numa conversa no podcast de Renata Lo Prete, Vinícius Assis contou que circulava um boato de que o caixão que chegou em Zvimba não foi o mesmo que foi visto no velório no Estádio de Esportes em Harare. Segundo rumores, o corpo será enterrado na sua aldeia natal e se colocará no mausoléu um caixão vazio. 

Na página News24, da África do Sul, saiu uma notícia no mesmo sentido. Cita um curandeiro/adivinho tradicional, um certo Benjamin Burombo Jnr, que teria explicado que “quando um chefe como Mugabe morre, não é uma pessoa que pode ser enterrada no Alqueire dos Heróis. Isso deveria ser proibido. Ele deve ser enterrado numa caverna.  Mugabe não foi apenas um presidente, mas a incorporação do espírito de Kaguvi.”    

Como observei no ensaio publicado em 2018 pelo site 1948, Kaguvi e Nehanda foram os dois médiuns que lideraram a rebelião chimurenga contra o regime colonial logo no seu começo, de 1896 a 1897. Benjamin Burombo Jnr certamente queria relacionar, na figura de Mugabe, a rebelião do século XIX com a guerra de libertação, a “segunda chimurenga”, que só terminou com os acordos de paz e o nascimento de Zimbábue, em 1980.

 

Mugabe tripartido

Rumores e teorias de conspiração são muito familiares para nós, que vivemos no Brasil. Quando não há como saber se são ou não verdadeiros, podemos apenas comentar sobre sua existência, indagando sobre sua aparente plausibilidade, sua capacidade de serem entendidos como verdadeiros; si non è vero, è bene trovato

No caso, parece mesmo que os diversos rumores apontam para um antigo achado da velha antropologia que aprendi no meu curso de graduação. Meu tutor foi Jack Goody, que tinha acabado de publicar sua tese de doutorado com o título Death, Property and the Ancestors: A study of the Mortuary Customs of the Lodagaa of West Africa (Morte, Propriedades e os Antepassados: um estudo de costumes mortuários dos Lodagaa da África Ocidental). Aluno aplicado (cdf?), comprei o tomo e aprendi que os ritos funerários são ritos de passagem que organizam o trânsito dos mortos para o mundo dos espíritos – e, ao distribuir os ofícios (chefia de uma linhagem, por exemplo) e propriedades das pessoas mortas, reordenam a vida social dos sobreviventes. 

Tudo isso parece óbvio hoje em dia, mas continua sendo a melhor maneira, penso eu, de entender os ritos mortuários em geral.  No caso da morte de um líder de 37 anos no poder, dotado de uma fama ambígua de libertador do país e também do destruidor da sua economia e ditador sanguinário dos mais cruéis, mas ao mesmo tempo um zimbabuano como todos os outros, sugiro que existam três Mugabes a serem enterrados: o libertador do povo zimbabuano do jugo colonial; o ditador cruel; o membro do clã Gushungo, duas vezes casado, deixando uma viúva e três filhos, e dono de bens materiais sobre os quais há pouco informação mas muita especulação.  

Para os potenciais herdeiros do seu carisma de libertador, sobretudo os membros da ZANU, fica claro que o velório foi planejado no sentido de exaltar seu papel de liderança na guerra contra o domínio colonial. Mas também para marcar sua popularidade como pan-africanista no continente como um todo; eis a presença de presidentes e ex-presidentes de fora do Zimbábue, todos eles proferindo discursos de elogio a Mugabe como herói de todos os africanos. 

Mas como interpretar os igualmente eloquentes dois terços de assentos vazios no Estádio Nacional de Esportes? Há diversas explicações, desde o pouco apreço para funerais em geral, até a ausência de entretenimento e o custo das passagens de ônibus de Harare até o Estádio. Mas não há como não reparar que Mugabe tinha mesmo perdido o respeito de muitos zimbabuanos, que simplesmente ignoraram os apelos do presidente para assistirem o velório, preferindo ficar em casa. 

É como se o ritual do velório expressasse justamente os dois Mugabes na esfera política. De um lado, a presença dos dignitários locais e do resto do continente representando o Mugabe da libertação do jugo colonial. De outro, os assentos vazios marcando o Mugabe cada vez mais impopular, acusado de corrupto e responsável pela péssima condução da economia que levaram à inflação astronômica, ao desemprego, à escassez de água encanada, ao desligamento da energia elétrica durante 18 horas de cada dia. Para não perder a oportunidade de reconhecer o papel de libertador de Mugabe, lideres do opositor MDC também estiveram presentes. Mas não há como deixar de imaginar que, de certa forma, se sentiram representados nos assentos vazios.  

Grace Mugabe, de véu, nas exéquias do ex-ditador

Grace Mugabe, de véu, nas exéquias do ex-ditador

No que diz respeito à disputa sobre o lugar do enterro, parece evidente que estava no interesse dos membros do partido no poder assegurar um enterro no Alqueire dos Heróis. Trata-se, justamente, de alcançar o que Mugabe não queria que alcançassem: a herança do seu carisma de libertador. Por isso, é mais que verossímil que Mnangagwa teria chantageado a viúva Grace Mugabe para poder enterrá-lo como herói máximo no Alqueire dos Heróis.

A viúva teria cedido à demanda, mas conseguiu que o enterro fosse num lugar especial, encapsulado num mausoléu construído pelo Estado, acima, literalmente, dos demais heróis, que jazem em tumbas singelas nos degraus inferiores. Um meio termo para agradar gregos e troianos.  

Impossível aqui não reconhecer uma extraordinária (ou não) homologia entre a maneira pela qual o governo atual do Zimbábue e o governo da então jovem colônia da Rodésia do Sul, lidaram com a morte dos seus heróis.  Os dois construíram monumentos situados em lugares de alta elevação, e ordenaram seus heróis guerreiros hierarquicamente, como em vida, debaixo do líder máximo. 

O governo colonial enterrou o corpo de Cecil John Rhodes, o fundador e arqui-imperialista que deu seu nome à colônia britânica da Rodésia do Sul, que se tornaria Zimbábue, numa rocha de granito no lugar que ele próprio adorava e que denominou World’s View (Vista do Mundo). Fica próximo à cidade de Bulawayo, antigo domicílio do rei Lobengula, dos Amandebele. Um pouco abaixo, foi construído um monumento a outros heróis da nova colônia, os 34 membros da Patrulha Shangani, que foram dizimados pelo exército de Lobengula em 1893.

Talvez seja significativo que o monumento aos colonizadores mortos foi colocado ao lado da capital dos Amandebele, enquanto o Alqueire dos Heróis de Zimbábue foi construído ao lado da capital, Harare, epicentro da etnia de Robert Mugabe, os Vashona. Isso levanta a questão da relação entre essas duas maiores etnias de Zimbábue.  

Durante a minha pesquisa numa comunidade de Vashona na década de 1960, não foram poucos que me contaram como a chegada dos brancos teve uma certa vantagem para eles porque encerrou as razias dos Amandebele para roubar seu gado e suas mulheres. Mas, no momento daquela pesquisa, não detectei nenhuma animosidade: todos estavam unidos justamente sob a liderança do Ndebele Joshua Nkomo. Depois da independência, na década de 1980, a quinta brigada do Exército de Zimbábue, treinada por soldados norte-coreanos, matou por volta de 20 mil Amandebele numa guerra denominada gukurahundi, desencadeada por Mugabe numa tentativa de exacerbar hostilidades étnicas e subjugar seu rival Nkomo.

  

Os mortos e os vivos

Mas o que dizer do Mugabe membro do clã Gushongo, do grupo étnico Zezuru, um subgrupo dos falantes de chishona? 

Tradicionalmente, a família imediata e os demais membros do clã consultam um adivinho para saber a causa mortis. Segundo a cosmologia shona, como a dos Azande, nenhuma morte é por acaso. Quando o morto falece num hospital, os médicos emitem um laudo explicando a morte em termos médicos. Fica em aberto, porém, saber por que morreu em tal lugar e naquele momento.  Em termos bem gerais, a cosmologia shona reza a presença de duas causas concomitantes:  por um lado, há um problema moral qualquer que teria feito com que os antepassados tivessem retirado a sua proteção do morto; e por outro, deveria ter havido um ataque invisível por parte de algum desafeto, vivo ou morto.

Em seguida, como sugeri acima, os ritos fúnebres lidam não apenas com a distribuição dos bens e prestígio do morto, mas também com a necessidade de conduzir com tranquilidade o vivo para o status de antepassado (mudzimu). Sem que isso ocorra, o espírito do morto (mwea; literalmente, sopro), perdido entre os vivos e os antepassados, se tornaria um espírito extremamente perigoso (ngozi), causando sofrimento e morte aos sobreviventes ingratos. Entre os povos de fala chishona, esse rito de passagem começa com o enterro, mas o processo continua através de mais dois rituais, kurova guva (bater o túmulo), e kudzurura guva (besuntar o túmulo). Quando uma pessoa morre muito longe da sua casa natal, é costume um parente ir ao lugar do enterro e trazer de volta um punhado de terra para criar um túmulo substitutivo perto de casa, justamente para poder realizar esses rituais tão importantes.  

Os rumores de que o caixão de Mugabe é outro e que contém o corpo do morto são, portanto, também verossímeis. Fundam-se sobre o reconhecimento do desejo e da necessidade dos membros mais próximos do morto de saber porque morreu e, em seguida, de assegurar a sua passagem para o status de mudzimu

Mnangagwa nos funerais de Mugabe

O ritual oficial, conduzido por Mnangagwa, destina-se a transferir ao novo presidente a herança da guerra de libertação

É de se esperar que os dois rituais – o da República de Zimbábue e o do clã dos Gushungo – sejam eficazes. O primeiro, no sentido de consagrar a memória do papel de Mugabe na conquista da independência; o segundo, no de assegurar um lugar para o espírito de Mugabe no convívio com os demais antepassados – que, como todo mundo sabe, convivem diariamente com os vivos que eles devem proteger enquanto são lembrados através de rituais regulares com muita música, dança e comida regada a cerveja feita em casa, de milho e milhete ou sorgo.

No Zimbábue, funerais e a comemoração dos mortos como antepassados também servem para alimentar e alegrar os vivos.  É de ter esperança que esses antepassados, todos eles, todas elas, olhem favoravelmente para esse país tão arruinado pelas guerras e pela tradição cruel e autoritária da sua cultura política, sob diversos governos, desde a definição das suas fronteiras geográficas em 1888, ano da concessão colonial a Rhodes. 

Enquanto escrevo essas linhas, a Associação Zimbabuana de Médicos para Direitos Humanos (ZADHR) publicou o seguinte apelo sobre seu líder, sequestrado recentemente: “A ZADHR permanece profundamente preocupada com o fracasso da busca pelo Dr. Peter Magombeyi, Presidente em Exercício da ZADHR.  Foi reportado que o Dr. Magombeyi foi abduzido no dia 14 de setembro após ter mandado chamados de angústia e perigo aos seus pares. Antes de ser abduzido, estava ativamente envolvido na chamada por melhores condições de trabalho para médicos nos hospitais governamentais do Zimbábue.”

Magombeyi foi encontrado uma semana depois do sequestro, em 20 de setembro, em Nyabira, a cerca de 30 quilômetros de Harare. Confuso e desorientado, ele lembrava-se de ter estado em algum tipo de porão e receber choques elétricos. Autoridades sugeriram, sucessivamente, que a história foi inventada pelo líder sindical e que o sequestro aconteceu, mas por ação de “terceiros”, interessados em “desestabilizar” o governo. São alegações típicas da era ditatorial de Mugabe. 

 

Epílogo

A longa novela do enterro de Mugabe conheceu nova reviravolta dias depois da publicação original deste artigo. Em 26 de setembro, o governo de Mnangagwa anunciou que o ex-ditador será enterrado em Zvimba, “para respeitar os desejos das famílias de heróis mortos”. Não vieram à tona os motivos reais da radical mudança de planos. Mas não é difícil enxergar nela mais um capítulo nas disputas internas do partido que segue no poder. 

No 29 de setembro, o corpo de Mugabe desceu a uma cova, no quintal de sua casa, em Zvimba. O padre disse que ele aproveitou bem os dons que Deus lhe deu. 

 

ORGANIZAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS NO ZIMBÁBUE

Zimbabwe Lawyers for Human Rights

Zimbabwe Human Rights NGO Forum 

Zimbabwe Human Rights Commission

 

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