A recente Portaria nº 666, assinada pelo ministro da Justiça do Brasil, Sérgio Moro, constitui abuso do poder governamental de legislar.
O ministro da Justiça, Sérgio Moro, ao lado do presidente Jair Bolsonaro
O abuso por excesso do poder (ou autoridade) de legislar converte a norma jurídica em condenável arbítrio. Inexistem, no Estado de Direito, para aqueles que exercem o poder, zonas não judicializadas. A autoridade pública nunca é totalmente livre, mesmo nas hipóteses em que a Constituição tenha silenciado.
O agente público pode ter a competência para legislar, mas não tem liberdade para fazê-lo sem a observância da regularidade procedimental e da imparcialidade moral. E isso, asseguradas sempre a possibilidade de manifestação direta da vontade daqueles que serão afetados pelas normas e a possibilidade concreta e exequível de recurso ao Poder Judiciário. Do contrário, o regime jurídico estará a serviço de uma ordenação social injusta.
Por tais razões, a Suprema Corte dos EUA construiu e tornou sólida a jurisprudência que permite a derrubada de leis divorciadas das finalidades públicas. Entre as emendas à Constituição dos Estados Unidos, merece destaque a primeira, que expressa a proibição do poder de legislar livremente, impondo limites e formas de moderação. É sob essa luz que se deve examinar a Portaria 666 do Ministério da Justiça, que excederia a prerrogativa governamental de regulamentação da Nova Lei da Migração, de 24 de maio de 2017, e ressuscitaria elementos autoritários do período da ditadura.
A Nova Lei da Migração não prevê a classificação de pessoas consideradas “perigosas” para a segurança nacional, como previsto na Portaria. Tal terminologia é empregada no vetusto Código do Estrangeiro, dos anos 1980. Portarias ministeriais, enquanto fontes normativas de direito, não podem criar novos tipos penais e, por conseguinte, novas hipóteses de punição.
De acordo com a Portaria 666, são consideradas “pessoas perigosas” aquelas que possam ser enquadradas nas legislações referentes ao terrorismo, organização criminosa, tráfico de drogas, porte e uso de armas de fogo, recurso à pornografia ou exploração sexual, ademais da prática de violência em estádios de futebol. Tais pessoas passam a estar sujeitas à deportação sumária.
Na Portaria 666, um estrangeiro pode ser classificado como “pessoa perigosa” por mera informação de autoridade brasileira
Como é sabido em Direito, há um amplo grau de subjetividade nos crimes listados na Portaria, especialmente no que diz respeito à formação de organizações criminosas e da prática de atos de terrorismo. Ademais, são nulas de pleno direito as normas jurídicas, como as previstas na referida Portaria, que desconsideram a presunção de inocência e determinam deportações de estrangeiros meramente suspeitos de crimes, que estejam sob investigação criminal e não tenham ainda sido julgados por sentenças transitadas em julgado. Essas regras encontram vedações constitucionais, ainda que ladeadas em certas virtudes, a pretexto de enaltecer a segurança nacional. Na verdade, implicam emprego malicioso de processos tendentes a camuflar a realidade.
No Brasil, a questão fundamental, neste momento, é a de saber se eventual posição de hostilidade ao estrangeiro condiz com o pragmatismo e a prudência que a política externa requer quando está em jogo a gestão de complexos interesses internacionais da nona maior economia mundial. Não é preciso recurso à erudição para saber que o problema migratório deve ser enfrentado como questão de política pública e não como problema de polícia judiciária.
Tanto o tratamento constitucional da questão migratória no Brasil como a legislação infraconstitucional que dela se ocupa correspondem a modelos legais exemplarmente avançados, até mesmo porque nossa legislação protege, inclusive, os brasileiros no exterior, e declara, ademais, o caráter multiétnico da nação, formada por migrantes de todos os quadrantes.
Certamente, a Portaria vai acabar sendo questionada no Supremo Tribunal Federal, na medida em que nenhuma Constituição pode ser considerada democrática se não prever um sistema eficiente e eficaz de divisão e controle recíproco dos poderes do Estado, por meio de um regime de freios e contrapesos que impõe ao poder de legislar limites e moderação. Enquanto isso não acontece, é preciso reafirmar que haverá sempre erro grave de raciocínio quando padrões morais de oportunidade tentam penetrar a força cogente da lei. E, ainda, que instrumentos legais abusivos podem esconder e disfarçar, em suas entrelinhas, revoluções autoritárias.
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