PORTARIA 666 ABUSA DO PODER DE LEGISLAR

 

Maristela Basso

(Advogada e professora de Direito Internacional e Comparado da Faculdade de Direito da USP)
5 de agosto de 2019

 

A recente Portaria nº 666, assinada pelo ministro da Justiça do Brasil, Sérgio Moro, constitui abuso do poder governamental de legislar.

O ministro da Justiça, Sérgio Moro, ao lado do presidente Jair Bolsonaro

O ministro da Justiça, Sérgio Moro, ao lado do presidente Jair Bolsonaro

O abuso por excesso do poder (ou autoridade) de legislar converte a norma jurídica em condenável arbítrio. Inexistem, no Estado de Direito, para aqueles que exercem o poder, zonas não judicializadas. A autoridade pública nunca é totalmente livre, mesmo nas hipóteses em que a Constituição tenha silenciado.

O agente público pode ter a competência para legislar, mas não tem liberdade para fazê-lo sem a observância da regularidade procedimental e da imparcialidade moral. E isso, asseguradas sempre a possibilidade de manifestação direta da vontade daqueles que serão afetados pelas normas e a possibilidade concreta e exequível de recurso ao Poder Judiciário. Do contrário, o regime jurídico estará a serviço de uma ordenação social injusta.

Por tais razões, a Suprema Corte dos EUA construiu e tornou sólida a jurisprudência que permite a derrubada de leis divorciadas das finalidades públicas. Entre as emendas à Constituição dos Estados Unidos, merece destaque a primeira, que expressa a proibição do poder de legislar livremente, impondo limites e formas de moderação. É sob essa luz que se deve examinar a Portaria 666 do Ministério da Justiça, que excederia a prerrogativa governamental de regulamentação da Nova Lei da Migração, de 24 de maio de 2017, e ressuscitaria elementos autoritários do período da ditadura.

A Nova Lei da Migração não prevê a classificação de pessoas consideradas “perigosas” para a segurança nacional, como previsto na Portaria. Tal terminologia é empregada no vetusto Código do Estrangeiro, dos anos 1980. Portarias ministeriais, enquanto fontes normativas de direito, não podem criar novos tipos penais e, por conseguinte, novas hipóteses de punição.

 

Violando a presunção de inocência

De acordo com a Portaria 666, são consideradas “pessoas perigosas” aquelas que possam ser enquadradas nas legislações referentes ao terrorismo, organização criminosa, tráfico de drogas, porte e uso de armas de fogo, recurso à pornografia ou exploração sexual, ademais da prática de violência em estádios de futebol. Tais pessoas passam a estar sujeitas à deportação sumária.

Portaria 666 abusa do poder de legislar

Na Portaria 666, um estrangeiro pode ser classificado como “pessoa perigosa” por mera informação de autoridade brasileira

Como é sabido em Direito, há um amplo grau de subjetividade nos crimes listados na Portaria, especialmente no que diz respeito à formação de organizações criminosas e da prática de atos de terrorismo. Ademais, são nulas de pleno direito as normas jurídicas, como as previstas na referida Portaria, que desconsideram a presunção de inocência e determinam deportações de estrangeiros meramente suspeitos de crimes, que estejam sob investigação criminal e não tenham ainda sido julgados por sentenças transitadas em julgado. Essas regras encontram vedações constitucionais, ainda que ladeadas em certas virtudes, a pretexto de enaltecer a segurança nacional.  Na verdade, implicam  emprego malicioso de processos tendentes a camuflar a realidade.

No Brasil, a questão fundamental, neste momento, é a de saber se eventual posição de hostilidade ao estrangeiro condiz com o pragmatismo e a prudência que a política externa requer quando está em jogo a gestão de complexos interesses internacionais da nona maior economia mundial. Não é preciso recurso à erudição para saber que o problema migratório deve ser enfrentado como questão de política pública e não como problema de polícia judiciária.

Tanto o tratamento constitucional da questão migratória no Brasil como a legislação infraconstitucional que dela se ocupa correspondem a modelos legais exemplarmente avançados, até mesmo porque nossa legislação protege, inclusive, os brasileiros no exterior, e declara, ademais, o caráter multiétnico da nação, formada por migrantes de todos os quadrantes.

Certamente, a Portaria vai acabar sendo questionada no Supremo Tribunal Federal, na medida em que nenhuma Constituição pode ser considerada democrática se não prever um sistema eficiente e eficaz de divisão e controle recíproco dos poderes do Estado, por meio de um regime de freios e contrapesos que impõe ao poder de legislar limites e moderação. Enquanto isso não acontece, é preciso reafirmar que haverá sempre erro grave de raciocínio quando padrões morais de oportunidade tentam penetrar a força cogente da lei. E, ainda, que instrumentos legais abusivos podem esconder e disfarçar, em suas entrelinhas, revoluções autoritárias.

 

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