A “guerra ao terror” sempre transitou pelos domínios da barbárie. Deflagrada pelo presidente americano George W. Bush, na esteira dos atentados jihadistas do 11 de setembro de 2001, é uma guerra sem fronteiras, travada contra “combatentes inimigos ilegais”, à margem dos direitos humanos e do direito humanitário. No Afeganistão, seu palco original, ela prossegue, como guerra crônica de contra-insurgência. Mas desdobra-se em inúmeros palcos, a maioria deles situados no mundo muçulmano, oculta sob pesados mantos de segredo.
Hoje, fragmentos de informação filtrados do Paquistão e do Egito revelam as dimensões das guerras conduzidas contra grupos jihadistas estabelecidos nas regiões fronteiriças paquistanesas e no Sinai. De um lado, estão forças estatais, que são unidades militares e destacamentos de operações especiais; de outro, militantes da “guerra santa” que se apropriam fraudulentamente da bandeira do Islã. As vítimas esquecidas são os habitantes dessas regiões, acuados entre dois fogos.
A faixa de fronteiras do noroeste do Paquistão com o Afeganistão é constituída pela província KPK, dividida em diversas áreas tribais sob administração federal e habitada majoritariamente pela etnia Pashtun. A região da Caxemira, fonte de antiga disputa entre Índia e Paquistão, está cindida na Caxemira indiana, a oriente, e na Caxemira paquistanesa, a ocidente.
A derrubada do regime do Talebã, no Afeganistão, em novembro de 2001, provocada pela intervenção americana, ativou o jihadismo nas áreas tribais do Paquistão. Na Caxemira paquistanesa, grupos jihadistas operam há mais tempo, sob a complacência das agências de inteligência e das forças armadas, que os enxergam como ferramentas úteis na disputa territorial com a Índia.
O jihadismo expandiu-se pelos países árabes do Oriente Médio e da África do Norte após a ocupação americana do Iraque, em 2003. A península do Sinai, um dos focos da indústria do turirsmo no Egito, experimentou três grandes atentados terroristas em resorts do Golfo de Aqaba e do Mar Vermelho entre 2004 e 2006.
Com a instabilidade política que se seguiu à revolução popular de 2011, intensificou-se a insurgência no Sinai. Os ataques a patrulhas militares e os assassinatos e sequestros de civis são conduzidos por uma mescla de jihadistas inspirados pela Al Qaeda e pelo Estado Islâmico com chefes locais beduínos. Em outubro de 2015, os militantes jihadistas derrubaram o voo russo Metrojet 9268, que iniciava a rota Sharm El Sheik-São Petersburgo, matando todos os 224 passageiros e tripulantes.
O Talebã nasceu nas madrassas (escolas religiosas) paquistanesas, no início da década de 1990, como um instrumento para estender a influência do Paquistão ao Afeganistão. A tomada de Cabul, a capital afegã, por forças afegãs apoiadas pelos EUA, no final de 2001, provocou a retirada dos combatentes do Talebã e de centenas de militantes da Al Qaeda. Os militares paquistaneses fizeram vistas grossas para a travessia da fronteira de milhares de jihadistas, que se relocalizaram nas áreas tribais do noroeste.
Formalmente, o Paquistão é um aliado dos EUA e suas forças armadas recebem significativa ajuda americana. Contudo, o governo paquistanês e os chefes dos poderosos serviços secretos nem sempre cooperaram com a “guerra ao terror”, pois o Talebã poderia ser-lhes útil na futura balança de poder no Afeganistão. Significativamente, o presidente americano Barack Obama manteve o governo do Paquistão na ignorância da operação de comando que eliminou Osama Bin Laden, o líder da Al-Qaeda, em maio de 2011, no seu esconderijo na cidade paquistanesa de Abbottabad.
Os paquistaneses imaginaram que conseguiriam manter sob controle os militantes oriundos do Afeganistão, assim como fazem com os jihadistas da Caxemira. O que eles não previam era a difusão das sementes da jihad no interior do próprio Paquistão, com a multiplicação de correntes radicais mais ou menos autônomas nos territórios tribais.
Desde 2001, cerca de 50 mil pessoas morreram na guerra suja que devasta a província fronteiriça do KPK. Jihadistas e militares formam a minoria das vítimas. A maioria, contudo, é de civis, assediados por militantes que exigem obediência e por brutais ataques das forças armadas. Uma investigação jornalística da BBC, que examinou informações fornecidas pelo Movimento de Proteção Pashtun (PTM), começa a iluminar a escala dos abusos.
Um episódio icônico foi o bombardeio aéreo de 20 de janeiro de 2014, no Waziristão do Norte, que supostamente teria matado Adnan Rasheed, um chefe paquistanês das forças do Talebã. De fato, Rasheed não se encontrava nas residências bombardeadas. A prova definitiva surgiu por meio de um vídeo inquestionável no qual o jihadista anunciou que seguia vivo. As bombas atingiram outra edificação. Os quatro mortos pertenciam a uma família local sem nenhuma conexão com o jihadismo. Eles somaram-se à macabra estatística de vítimas fatais do conflito paquistanês. Já os dois sobreviventes, um adulto e uma menina, juntaram-se aos mais de 170 mil deslocados internos das áreas tribais.
Manifestação de protesto de deslocados internos no Waziristão do Sul, em julho de 2014
O episódio é parte de uma série interminável. Os bombardeios indiscriminados tornaram-se um traço do cotidiano, nas cidades e povoados da região noroeste paquistanesa, assim como os encarceramentos, os sequestros e os desaparecimentos. As informações sobre a guerra oculta provêm de ativistas locais, como os do PTM, pois o acesso da imprensa é severamente restringido e a população teme igualmente as ameaças de represálias de policiais, militares e jihadistas.
A regra do silêncio é compartilhada pelas autoridades e pelos grupos militantes. Em 26 de maio, militares abriram fogo contra uma manifestação de protesto no Waziristão do Norte, provocando dezenas de mortes, inclusive as de 13 ativistas do PTM. Semanas antes, o general Asif Ghafoor, um comandante do Inter-Services, a temida agência de inteligência paquistanesa, questionara o “patriotismo” dos ativistas do PTM, acusando-os de operar como quintas-colunas da Índia ou do Afeganistão. Alguns dos ativistas que documentavam os abusos de direitos humanos em vídeos e nas redes sociais foram aprisionados ou enfrentam processos. Entre eles, estão dois deputados do Parlamento nacional.
Poucos meses atrás, ainda na oposição, o atual primeiro-ministro paquistanês Imran Khan erguia a voz para denunciar abusos de direitos humanos na província KPK. Hoje, ele curva-se à regra do silêncio. Nas áreas tribais do Paquistão, o principal “inimigo do Estado” é o cidadão que divulga informações, não o jihadista que prepara atentados.
O conflito no Sinai atingiu um patamar inédito após o ataque jihadista à mesquita al-Rawda, em Bir al-Abed, no norte do Sinai, que deixou 235 mortos, em 24 de novembro de 2017. O ditador egípcio Abdel Fatah al-Sisi prometeu retaliar com “força bruta”, lançando a Operação Sinai 2018. A “força bruta” tem como alvos os grupos insurgentes – mas não poupa os civis comuns.
O regime declarou o norte do Sinai zona militar fechada, proibindo o acesso da imprensa independente. Contudo, o silêncio que cerca a “guerra ao terror” no Sinai começa a ser rompido por uma investigação da Human Rights Watch (HRW).
O relatório da HRW, publicado no final de maio, acusa o governo de praticar assassinatos, conduzir sessões de tortura e promover o “desaparecimento” de civis comuns e militantes jihadistas. O mesmo relatório registra que os combatentes da insurgência mataram, sequestraram e torturaram centenas de civis. Um porta-voz militar egípcio rotulou o relatório como tentativa “politizada” de “manchar a imagem do Egito e de suas forças armadas”. Não ofereceu, porém, explicações para as dezenas de bárbaras violações de direitos humanos documentadas no relatório.
O general Mohamed Farid inspeciona as forças militares envolvidas na Operação Sinai, no início de 2018
O principal grupo que opera no Sinai declarou lealdade ao Estado Islâmico e imita suas práticas atrozes, enquanto um dos grupos secundários mantém vínculos com a Al-Qaeda. A selvageria dos jihadistas – inclusive enforcamentos e afogamentos – não surpreende. Mas a HRW oferece inúmeras evidências das barbáries cometidas pelo Estado. Adultos e até mesmo adolescentes de 12 anos são internados por meses em prisões secretas, onde sofrem espancamentos e choques elétricos conduzidos por soldados. Segundo testemunhos de antigos prisioneiros, três dos detidos morreram sob tortura.
Desde 2013, Israel coopera ativamente com as forças egípcias engajadas no conflito do Sinai. Há fortes indícios, inclusive, de que a força aérea israelense participou de bombardeios contra alvos jihadistas. O governo de Israel recusa-se a oferecer informações sobre o seu possível envolvimento direto nas operações militares em curso.
No norte do Sinai vivem cerca de 500 mil pessoas. O emprego de bombardeios aéreos em áreas civis, mencionado por diversas testemunhas, não foi inteiramente comprovado. Contudo, há provas abundantes de que milhares de pessoas foram obrigadas a fugir de seus povoados. O Exército demoliu milhares da casas na cidade de Rafah, na fronteira com Israel, expulsando grande parte de sua população. Segundo o relatório, “alguns dos abusos cometidos pelas forças do governo e pelos militantes são crimes de guerra – e sua natureza disseminada e sistemática permitiriam classificá-los como crimes contra a humanidade”.
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