O ESTADO DE DIREITO, NO ESPELHO DOS HUMANOS “TORTOS”

 

Reinaldo Azevedo

(Jornalista, colunista da Folha de S. Paulo, âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM e titular do “Blog do Reinaldo Azevedo”)
19 de novembro de 2018

 

A expressão “Direitos humanos para humanos direitos” não é um conceito, um pensamento ou uma provocação intelectual. Trata-se da defesa objetiva da tortura, do justiçamento e da barbárie. Chegou ao poder junto com Jair Bolsonaro. E tem de ser combatida em nome da civilização. Nem mesmo se pode conceder a quem vocaliza essa estupidez o benefício moral da ignorância. O que se pretende, de forma deliberada, é impor ao conjunto da sociedade o arbítrio dos que se querem bons. Ao arrepio da ordem democrática e do Estado de Direito.

Cumpre fazer não exatamente uma distinção, mas o cruzamento de esferas distintas da experiência humana. A civilização deu à luz o direito penal. Ele existe para proteger os indivíduos certos e punir os errados, de acordo com os valores consagrados num determinando tempo. As sociedades aplicam penas a seus faltosos segundo sua cultura, sua história, seus equilíbrios particulares de poder, suas formas específicas de arbitrar a distribuição de bens, suas – como virou moda dizer hoje em dia – narrativas influentes.

Inexistem, no que concerne ao direito penal, condutas universalmente criminosas. Para que determinados atos sejam crimes, é preciso que existam leis que assim os definam – em certos casos, os costumes. E o mesmo direito penal que estabelece esses marcos impõe, então, as punições. Os delitos e as penas compõem um retrato bastante eloquente da sociedade.

Se vocês querem uma boa métrica da salubridade ética de um país, não olhem as condições de vida dos “humanos direitos”. Observem que tratamento é dispensado aos “tortos”, que tiveram sua liberdade cassada pelo Estado – e notem que não entro aqui na justeza ou não da punição nem na qualidade do processo legal. Inexiste país que maltrate seus presos e dispense tratamento digno aos homens livres. E nada há de surpreendente nisso. Muito pelo contrário.

 

Recado ao homem livre

Um sistema, uma cultura ou um conjunto de valores que espezinham quem já está despido de direitos enxerga, por definição, em cada homem livre uma ameaça. Em termos simbólicos: a guilhotina não busca punir quem caiu em desgraça, mas advertir a cabeça dos que restarão vivos para o perigo de certas ideias – ou para o risco de tê-las, quaisquer que sejam. Quem tortura um preso diz ao homem livre: “Não corra o risco de cair sob a nossa guarda porque, do lado de cá, desaparecem os limites”. Ou por outra: os reclusos são, à revelia dos motivos que os levaram a ser apartados da sociedade, elementos de controle da qualidade de nossa própria liberdade.

Os que passaram pela terrível experiência da tortura por motivos políticos sabem que os torturadores estavam menos empenhados em obter uma informação – para tanto, certamente haveria meios mais eficazes – do que em evidenciar que pertenciam a uma ordem à qual tudo era permitido. Os círculos do inferno em que se encontram a esmagadora maioria dos presos comuns não têm a função de reparar o mal que estes causaram a terceiros.

O Estado de Direito, no espelho dos humanos tortos

Detalhe do Sudarium de Claude Mellan, 1649

Na verdade, amesquinham a sociedade, rebaixando-a ao padrão do ato criminoso, em vez de lhe conferir autoridade moral para impor uma pena justa. Ao se cassarem direitos humanos de humanos que não são direitos, degrada-se o entendimento do humanamente universal – e, pois, perde o conjunto dos homens.

Por que evoco aqui o direito penal? Porque ele enfeixa um conjunto essencial de valores que define quem está e quem não está à margem do sistema. Expressa e desenha o caráter de uma sociedade e a diferencia das demais. Direitos humanos são valores que buscam se impor transversalmente aos países e a seus respectivos ordenamentos jurídicos, garantindo aos indivíduos uma proteção que independa da cultura, da crença, das convicções ideológicas. Caso decidamos nos aprofundar em juízos especulativos, há, sim, nessa concepção certa vocação de fundo religioso.

Não se pode fazer essa defesa sem que se considere que certas práticas agridem uma espécie do território do sagrado. E, entendo, esse sagrado se traduz, de imediato, na inviolabilidade do corpo, porque é ele a matriz da vontade, real ou potencial, que nos distingue como indivíduos e nos particulariza. É nessa mesma vereda que me causam repúdio tanto o aborto como a pena de morte. Mas tais temas ficarão para outras quaresmas – o Carnaval nem veio e já passou…

 

Um criminoso em cada um de nós

Falo aqui da religião da supremacia do humano, que compreende o corpo e o espírito, necessariamente livre, que ele abriga. Nessas horas, sempre me socorre uma fala que Marguerite Yourcenar atribui ao imperador que dá título à obra “Memórias de Adriano”, um romance magistral: “Nós, somente nós, soubemos mostrar a força e a agilidade latentes em um corpo imóvel; nós, só nós, transformamos uma fronte lisa no equivalente a um pensamento sábio. Sou como nossos escultores: o humano me satisfaz plenamente; nele encontro tudo, até o eterno.”

A sociedade que prende um transgressor – e parto, para efeitos de pensamento, do princípio de que o crime foi cometido – está se protegendo de uma determinada conduta considerada grave. Para que tal comportamento indesejável não se generalize, é preciso ser convincente pelo exemplo.

Se, no entanto, esse mesmo preso for submetido à tortura, a um tratamento degradante, a uma rotina de humilhações que fira não a dignidade de um homem livre, mas a de um homem preso, pergunto: a que propósito serve tal exemplo? Os direitos de um recluso são distintos dos direitos de um liberto. E os respectivos códigos penais dos diferentes países se encarregam das restrições.

Ao se aplicarem penas restritivas da liberdade, direitos fundamentalmente humanos, tendo os “humanos direitos” como referência, já deixarão, por certo, de ser exercidos. Que agruras adicionais estamos dispostos a impingir aos faltosos que não firam também a condição humana?

“Sou homem, e nada do que é humano reputo alheio a mim”, escreveu Terêncio. Habita em cada criminoso a humanidade que nos distingue; há em cada um de nós um criminoso que não aconteceu porque circunstâncias que nem são de nossa escolha deixaram de se encontrar. E não! Isso não implica condescender com o crime. Ao contrário: ao tipificar determinadas condutas como criminosas, estamos delegando ao Estado a tarefa de aplicar punições para comportamentos que exorcizamos em nós. Em muitos aspectos, o “humano que não é direito” nos protege de nós mesmos.

Deve ter percebido o leitor, a esta altura, que busco aproximar os territórios do “eles” e do “nós”.

O Estado de Direito, no espelho dos humanos tortos

Two Birds, de M. C. Escher, 1933

Definimos os criminosos, mas também eles nos definem. As sociedades não herdam do empíreo as condutas tipificadas como crimes. À medida que elas foram se tornando inconvenientes, arriscadas, antieconômicas, violentas, contraproducentes ou avessas à manifesta vontade da maioria, vigilância e punição se tornam pressupostos da autopreservação. Mas o bandido continua a ser nosso irmão, nosso semelhante. Pelo avesso.

E observem que nem trato aqui da rotina de humilhações a que é submetida a pobreza no Brasil e no mundo. Trata-se de pessoas livres, a quem não se imputa crime nenhum. Não obstante, estão privadas de dignidade porque lhes faltam condições mínimas para o livre exercício da vontade.

Dou relevo, neste artigo, aos encarcerados que há ou a haver porque são eles o alvo da estupidez que prega “direitos humanos para humanos direitos”. Os fascistoides que saem por aí a arrotar essa divisa justificadora de crimes mal se dão conta de que nem mesmo os ampara a eficácia do discurso: quantos são os “humanos direitos” das periferias, dos morros, do semiárido, do Vale do Jequitinhonha ou do Vale do Ribeira aos quais essa boçalidade militante é incapaz de garantir os direitos humanos? O trocadilho não é apenas truculento. É também mentiroso.

Essa brutalidade é vocalizada no país que contabilizou 62.517 homicídios em 2016, segundo o Atlas da Violência 2018, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 11 anos, foram assassinadas no país 553 mil pessoas, 324.967 delas na faixa de 15 a 29 anos. Em 2016, a taxa de homicídios de pretos e pardos (40,2 por cem mil) era duas vezes e meia maior que a de não negros (16 por cem mil). Na hora em que humanos que se julgam direitos resolverem empunhar a pistola, que Bolsonaro lhes quer facultar, para fazer justiça, já sabemos a faixa etária e a cor da maioria das vítimas que vão se somar à carnificina produzida por humanos não muito direitos ao longo da história.

E, por óbvio, noto que esses mesmos patriotas se organizam para cassar o direito humano à divergência nas ruas e nas escolas. Pregam a criminalização de movimentos sociais – coisa muito distinta de pessoas que cometem crimes sob o manto de uma causa –, tentando atribuir-lhes intenções terroristas, e pretendem impor o silêncio nas salas de aula sob o pretexto da isenção. Explica-se: seus adversários, ou aqueles que eles tomam como tais, não lhes parecem “humanos direitos”.

Combatê-los com os instrumentos que a democracia oferece é um imperativo da civilização. Nas ruas, nas escolas, nos quarteis, em qualquer lugar. Direitos humanos para humanos. Ponto. O direito penal se encarrega dos delitos e das penas. O resto é aposta moralmente criminosa na barbárie.

 

 

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