ABORTO: A CRIMINALIZAÇÃO DAS MULHERES

 

Elaine Senise Barbosa

11 de julho de 2022

 

O aborto não é um direito humano. Não está contemplado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e é tema de debate legítimo nas democracias, que o tratam como assunto de saúde pública.

Mas a politização da questão do aborto, que adquire contornos dramáticos, ameaça os direitos humanos. Isso ocorre quando o fanatismo de certos grupos religiosos antiaborto passa a atropelar direitos fundamentais das mulheres, esses seres específicos exatamente pela capacidade gestacional e cujos corpos são território de disputa política e ideológica. 

CAPA -Campanha pro-aborto Mexico

Campanha pelo direito ao aborto no México, em 2015

As sociedades democráticas tomam diferentes posições sobre o aborto, que refletem fatores culturais, religiosos e socioeconômicos muito diversos. Por isso, os sistemas políticos representativos possibilitam a tomada de decisões que expressam grandes consensos sociais, que são mutáveis.  Todas as posições são legítimas e o trabalho de convencer a maioria – ou organizar a minoria – é o que define o jogo democrático. Leis aprovadas nos Legislativos, por maiorias parlamentares, terão sempre mais legitimidade do que aquelas adotadas por decisões de juízes não eleitos. Mas o acirramento de posições fundamentalistas antiaborto conduz à criminalização das mulheres que, por diferentes motivos, buscam a interrupção da gravidez.

Há duas semanas a Suprema Corte dos Estados Unidos, provocada pelo caso Dobbs vs. Jackson Women’s Health Organizations, reformulou a interpretação de Roe vs. Wade, de 1973, que descriminalizava o aborto. Agora, cada um dos 50 estados pode decidir se proíbe ou não a interrupção da gravidez. Doze deles já tinham na gaveta, aprovadas pelos legislativos estaduais, legislações que criminalizam a prática. No rastro da decisão judicial, grupos fundamentalistas antiaborto costuram leis estaduais de forte conteúdo repressivo. 

argentinas pelo aborto

Mulheres na Argentina acompanharam, mobilizadas, a votação lei do aborto

A via parlamentar tende a evitar a polarização que se verifica nos Estados Unidos. Em diversos países, a discussão racional e mudanças de sensibilidade mostraram-se efetivos, fazendo com que sociedades de longa tradição católica como a Irlanda (2018), Argentina (2020) e México (2021) aprovem leis que descriminalizam o aborto.

Nesses países, prevaleceram as considerações de saúde pública e social. Abortos ilegais são fator de alta mortalidade das mulheres e as mais pobres são as que sofrem mais com a clandestinidade. Também foram consideradas questões éticas, como o direito à interrupção da gravidez decorrente de violência sexual; a existência de risco de morte para a mãe; a inviabilidade do feto. Em todos eles, o direito ao aborto tem limitações nítidas, derivadas do princípio de proteção do feto viável.

 

A intransigência dos fanáticos

“Em abril passado, a americana Lizelle Herrera, que tinha acabado de perder um bebê, foi presa e acusada de fazer um aborto em sua casa, no estado do Texas. Alguns meses antes, Brittney Poolaw foi condenada a quatro anos de prisão por ‘homicídio culposo’ depois de abortar espontaneamente no estado de Oklahoma. Chelsea Becker, que tinha um vício em drogas, ficou presa no estado da Califórnia por 16 meses após gerar um bebê natimorto. E, em 2015, Purvi Patel foi condenada a 20 anos de prisão em Indiana por ‘feticídio’ depois de procurar atendimento médico após um aborto espontâneo. E elas não são as únicas.” A reportagem da BBC ilumina uma verdadeira “caça às bruxas” deflagrada por legisladores e juízes fundamentalistas.

O recurso à judicialização dos direitos individuais, empregado em Roe vs. Wade, foi apropriado pela direita radical, que agora contra-ataca usando outras leis e outras interpretações para criar o que está sendo chamado de “leis de agressão fetal”. Significa que mulheres grávidas que abortaram por qualquer razão estão sendo presas sob a acusação de adotarem atitudes essencialmente homicidas contra o feto que carregavam em seus úteros. Leis abusivas desse tipo surgem em diversos dos estados americanos que restringem o direito ao aborto.

MapaEUA Aborto estadual

Usa drogas? Bebe? Andou em área insegura? Se a resposta for positiva, a mulher que abortou pode ser acusada criminalmente. Pode provar que o aborto foi espontâneo? Estava usando cinto de segurança? Respostas negativas abrem caminho à acusação. Não, não é ironia. Isso está acontecendo agora, nos Estados Unidos, sob o patrocínio de alas do Partido Republicano alinhadas com a ultradireita cristã.

Advogados que trabalham com o direito ao aborto apontam para a tendência à criminalização das mulheres centrada na discussão sobre a existência de “personalidade fetal”. Trata-se da concepção moral que a direita ultraconservadora pretende transformar em figura jurídica: definir o feto como um ser humano portador de direitos integrais, mesmo que contra a gestante. O Texas acaba de aprovar a lei do “batimento cardíaco”: uma vez identificada atividade cardíaca pelo médico ou agente de saúde, há um ser de personalidade jurídica própria a ser “protegido” – da própria mãe.

A expectativa é que pelo menos 38 estados adotem “leis de agressão fetal”. O que defensores dos direitos das mulheres alertam é que já não se trata apenas de ter leis proibindo ou criminalizando o aborto. A nova investida recorre a leis que tratam de outros assuntos para criminalizar as gestantes. O crescente número de mulheres presas após abortos espontâneos é indicador dessa tendência, pois elas estão sendo enquadradas por homicídio culposo. Numa inversão absoluta da exigência de prova, mulheres incapazes de comprovar que o aborto foi realmente espontâneo arriscam-se a sentenças de até 20 anos de prisão.   

 

“Vê tanto espírito no feto e nenhum no marginal…”

As leis abusivas preveem a criminalização não só de quem colaborar com o aborto como, ainda, dos que não denunciam mulheres às autoridades policiais. Já pesa, sobre enfermeiras e médicos em mais de uma dezena de estados, a obrigação de denunciar por “abuso infantil” gestantes suspeitas de uso de drogas. Obviamente, a Associação Médica Americana condena totalmente a abordagem, explicando que “o vício em drogas é uma doença tratável, não uma atividade criminosa”. Mas isso não importa para os fanáticos engajados numa missão. 

O que nos leva de volta à roda: mulheres pobres, não-brancas são as mais condenadas pela realização de abortos clandestinos e as drogas aparecem, novamente, como pretexto. Para as que têm dinheiro e relações, tudo pode ser feito de forma limpa e segura. Nos Estados Unidos, no Brasil…

Protestos em defesa do aborto

Manifestação pelo direito ao aborto diante da Suprema Corte dos EUA, que reverteu a célebre decisão de 1973

Como constata Dana Sussman, diretora interina da NAPW  (National Advocates of Pregnant Women), uma ONG que advoga pelo direito ao aborto: “Vemos um padrão desproporcional de mulheres negras, pobres, rurais e usuárias de drogas. Acho que o importante aqui é reconhecer como isso é uma extensão de um fenômeno mais complexo de exclusão social e evidência de como o sistema criminal dos EUA é usado mais duramente contra certas comunidades e raças do que contra outras.”

A direita religiosa, atualmente agrupada no Partido Republicano, celebrou o fim de Roe vs. Wade como uma vitória “pró-vida”. No entanto, os republicanos no Congresso e nos estados são conhecidos por barrarem os esforços para a expansão de redes de segurança social nos Estados Unidos. Eles restringem ou eliminam programas de educação sexual e controle de natalidade, bem como o acesso dos pobres a creches e escolas. Pró-vida?

As correntes fundamentalistas cristãs simulam preocupar-se com fetos não nascidos, mas desprezam as crianças e os jovens pobres que já nasceram. Como não lembrar dos versos de “Haiti”, cantada por Caetano Veloso e Gilberto Gil: “E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital/ E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto/ E nenhum no marginal.”

Reagindo às críticas, e sob o impulso do fim de Roe vs. Wade , senadores republicanos anunciam uma legislação de ajuda às famílias. Marco Rubio, senador pela Flórida, apresentou um plano que expande o crédito fiscal para ajudar famílias com crianças. A mesma lei permitirá que grupos religiosos desempenhem papel mais relevante nos programas federais de serviço social, conta reportagem do The Guardian. Como diz o ditado, o diabo mora nos detalhes… 

 

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