Entre abril e junho de 1994 o mundo assistiu inerte a uma espantosa onda de violência em Ruanda, quando cerca de um milhão de pessoas, tutsis em sua maioria, foram assassinadas a golpes de machetes e facões por pertencerem à “raça inimiga”. Na disputa travada entre o governo, composto por hutus, e a Frente Patriótica Ruandesa, formada pelos tutsis, a limpeza étnica foi adotada como solução, em um conjunto de ações rapidamente descritas como genocídio.
A existência de tratados internacionais exigindo a intervenção da ONU em casos de genocídio produziu, no entanto, um triste espetáculo da comunidade internacional. Tentando evitar os custos econômicos e políticos de uma ação militar, seus líderes demoraram a reconhecer o massacre deliberado e planejado de pessoas “culpadas” por pertencerem à “raça inimiga”. A matança acabou antes que a ONU de fato agisse.
Em compensação, a rápida instalação de um tribunal internacional para julgar os responsáveis pelo genocídio ajudou a sociedade ruandesa a processar parte daqueles eventos dramáticos e a olhar para frente.
A história contemporânea de Ruanda começa na Conferência de Berlim (1884-85), quando as potências imperialistas da Europa fizeram a “partilha da África”. Enquanto Leopoldo II, rei da Bélgica, conquistava o controle sobre o Congo – o “coração das trevas” de John Conrad-, a Alemanha recebia as terras de Ruanda onde, pelo menos desde o século XV, existia o reino dos Banyaruandas.
A sociedade banyaruanda estava dividida em três grupos: a aristocracia tutsi, caracterizada pela posse de rebanhos; a massa camponesa de hutus, com seus pequenos lotes e sujeita ao poder dos tutsis; e uma minoria de servos domésticos denominados tuás. Mitos explicavam o caráter distinto de cada grupo, legitimando o poder tutsi – mas sem nenhuma sugestão de diferença de origem, como uma conquista inicial de um grupo ou divindade. Inclusive, apesar do caráter estamental da sociedade banyaruanda, há registros de mobilidade social em contextos de desastres naturais e epidemias, quando tutsis perderam o gado e passaram a ser considerados hutus e hutus enriquecidos adquiriram rebanhos, tornando-se tutsis.
Encerrada a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o Tratado de Versalhes (1919) retirou todas as colônias da Alemanha. A recém-criada Liga das Nações redistribuiu-as na forma de mandatos entre as potências vencedoras. A Bélgica, que durante o conflito avançara para o leste a partir do Congo ocupando domínios do inimigo, passou a controlar as terras de Ruanda-Urundi.
Os belgas aliaram-se aos tutsis para exercer o poder – o que fizeram de forma bastante opressiva – e, para tanto, conservaram os traços estruturantes da antiga ordem social. Os tutsis converteram-se numa elite subordinada, com acesso a empregos públicos, ensino superior etc, enquanto os hutus foram submetidos a novas modalidades de trabalho compulsório nas terras destinadas ao plantio de café para exportação.
Enquanto isso, a Antropologia Física colonial baseada em concepções racistas afirmou serem tuás, hutus e tutsis raças distintas. A afirmação especulativa ganhou forma legal quando, em 1926, o governo belga resolveu distribuir carteiras de identidade discriminando a “raça” de cada ruandês. Os belgas garantiam, por exemplo, que uma suposta diferença de altura entre tutsis (que seriam mais altos) e hutus era uma questão racial. Hoje, sabe-se que tais diferenças, quando existentes, decorriam de condições sócio econômicas distintas: os tutsis, que formavam a aristocracia proprietárias de rebanhos, tinham mais acesso aos alimentos e uma dieta rica em proteína.
O fato é que a narrativa belga aparecia como uma confirmação “científica” da diferença de status social entre os tutsis e os demais ruandeses. Os tutsis seriam uma “raça superior”, justificando sua posição dominante. Adotada como verdade oficial e ensinada nas escolas, a ideologia servia perfeitamente ao governo indireto conduzido pelos belgas por intermédio dos tutsis. O efeito colateral foi que os tutsis se tornaram “diferentes”, “invasores”, aos olhos dos hutus.
A crítica ao pensamento racial veio no pós-guerra. Em 1962, o historiador e antropólogo belga Jan Vansina publicou um estudo sobre o reino dos Banyaruandas demonstrando que, originalmente, não havia a ideia de diferença de “sangue” entre tutsis, hutus e tuás. “Vansina mostrou que as concepções, normas, costumes e rituais do reino controlado pelos tutsis foram, em grande parte, absorvidos dos estados hutus prévios, alguns dos quais sobreviveram autonomamente até a organização da administração belga. (…) Ele evidenciou que os termos “tutsi” e “hutu” só se generalizaram e passaram a refletir uma polaridade social abrangente no período final do reino dos Banyaruandas (portanto, no século XIX).” [Demétrio Magnoli, Uma gota de sangue, p.265]
O Ocidente do pós-guerra estava, ao menos em tese, comprometido com a nova ordem mundial ancorada na Carta da ONU e na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. A luta pela autodeterminação dos povos e pela igualdade e liberdade entre as pessoas eram os novos referenciais. Na Bélgica, a opinião pública passou a ver como injusta a situação dos hutus, criando pressões que levaram o rei de Ruanda, Mutara III, um tutsi, a promover reformas em favor dos hutus. Houve redistribuição de terras e rebanhos, amenizando a pobreza dos camponeses. Essas iniciativas, todavia, provocaram o ressentimento tutsi e a resposta foi um nacionalismo ultra-elitista.
Em julho de 1959, Mutara III morreu logo após ser vacinado por um médico belga, no Burundi. A rápida coroação de seu irmão, Kigeri V, não foi suficiente para conter as especulações sobre assassinato disseminadas pelos tutsis. Em setembro, eles fundaram a União Nacional Ruandesa para lutar pela independência. Em novembro a maioria hutu levantou-se contra o poder tutsi e Kigeri V fugiu para Uganda.
Os hutus descrevem como “revolução” o sangrento levante camponês contra os antigos senhores, com ataques a propriedades e confisco de rebanhos. Dezenas de milhares de tutsis foram mortos; de um total de quase 300 mil tutsis, entre 100 mil e 150 mil fugiram para os países vizinhos. Expulsos, os tutsis começaram a organizar uma espécie de “exército na diáspora” recrutando soldados nos campos de refugiados no Zaire (atual Congo), Burundi, Tanzânia e Uganda. A violência levou à intervenção da ONU, em 1960, para mediar o processo de paz.
Na sociedade ruandesa tradicional, a posse de rebanhos era o símbolo de status social da aristocracia tutsi
Um referendo decidiu pelo fim da monarquia e pela adoção da República. Nesse momento, as histórias de Ruanda e Burundi se separaram: os tutsis mantiveram o poder no Burundi. Em Ruanda, o Partido de Emancipação Hutu (Parmehutu), fundado por Grégoire Kayibanda, formou o governo e conduziu as negociações de independência, reconhecida oficialmente em 1962. Nas eleições do ano seguinte, o Parmehutu ganhou todas as cadeiras no Parlamento e Kayibanda iniciou um longo governo. Sem a presença belga, os hutus tornaram-se os donos do poder.
Do paradoxo resultante entre a ideia democrática de igualdade civil e a ideia de direitos vinculados ao sangue (ou raça) decorreu o genocídio de 1994. Pensamentos e ações trabalharam juntos dos dois lados até que se chegasse ao holocausto.
Em 1963, forças tutsis atacaram Ruanda a partir da fronteira com o Burundi. Dois anos depois, uma nova ofensiva foi contida e, em resposta, o Exército ruandês matou mais de 20 mil tutsis. Enquanto isso, o governo do Parmehutu disseminava uma nova versão da história nacional ruandesa que aprofundava a distinção racial, classificando como “uma longa idade das trevas” os tempos do poder tutsi – descritos como estrangeiros e ameaçadores à nação hutu. Uma marca do ódio “étnico” foi a disseminação da palavra “barata” para fazer referência aos tutsis.
Para legitimar a discriminação reversa invocava-se a prova democrática da maioria: a carteira de identidade criada pelos belgas distinguindo uns e outros provava a superioridade numérica dos hutus. Por essa razão, elas continuaram a valer, transformando-se, em 1994, em condenações de morte para centenas de milhares de tutsis. Para compensar a diferença histórica e assegurar a estabilidade do novo regime hutu, os tutsis foram excluídos da oficialidade militar, enquanto universidades e escolas adotaram cotas raciais.
No vizinho Burundi, ocorriam eventos simétricos: hutus se rebelavam e eram massacrados pelo governo tutsi. Em 1972, foram 100 mil ou 200 mil hutus – não se sabe ao certo. O massacre produziu uma avalanche de refugiados em Ruanda e o súbito aumento da população intensificou a crise social, favorecendo a manipulação do discurso de ódio étnico.
Gregoire Kayibanda, o moderado
Em 5 julho de 1973 um golpe de Estado vindo de dentro do próprio governo derrubou o moderado Kayibanda e levou o ministro da defesa, o radical Juvenal Habyarimana, à presidência, junto com o Movimento Revolucionário Nacional pelo Desenvolvimento (MRND), partido único, no qual eram compulsoriamente inscritos todos os ruandeses.
A política de cotas foi nacionalizada e passou a abranger todo o funcionalismo público: aos tutsis estavam reservadas 9% das vagas, supostamente o percentual que representavam na população. E havia comitês oficiais de fiscalização para averiguar se as cotas estavam sendo rigorosamente cumpridas.
No início dos anos 1990, enquanto as atenções mundiais estavam voltadas para o fim da Guerra Fria e a chocante Guerra da Bósnia, as peças da política mundial se mexiam. A França buscava retomar sua influência na África valendo-se da língua e da histórica identificação da Bélgica aos tutsis. Logo, o governo francês de François Mitterrand tornou-se o mais importante aliado externo do regime hutu ruandês.
Enquanto isso, muitos tutsis reagiam às políticas de discriminação aderindo à Frente Patriótica Ruandesa (FPR) para lutar pelo poder. Em resposta, Habyarimana organizou a milícia Interahamwe (“Juntos Atacaremos”), destinada não só a combater a FPR, mas também a amedrontar hutus e tuás que se opunham à ditadura violenta e corrupta. Com o aumento das tensões, qualquer um que fizesse oposição ao Parmehutu tornava-se suspeito de apoiar a FPR e, portanto, de ser traidor.
Quando a FPR desencadeou uma onda de ataques a partir do norte, no início da década de 1990, a situação rapidamente degenerou em guerra civil. O governo ruandês precisou da ajuda externa do Congo e da França (que enviou paraquedistas) para brecar o avanço do inimigo. Temendo que as forças tutsis ocupassem a capital, Kigali, e lembrando o massacre de 1972, radicais hutus mais próximos a Habyarimana deram vazão a ideias cada vez mais extremadas.
Juvenal Habyarimana, o radical
Os intelectuais hutus – especialmente os saídos da Universidade de Butare – desempenharam um papel decisivo na formulação e legitimação do discurso exterminista anti-tutsi, em nome da “pureza hutu”. Em 1992, o historiador Leon Musegira afirmou em um comício que o “erro fatal” cometido pela revolução de 1959 foi não haver exterminado todos os tutsis. No início de 1994, o jornal extremista La Medaille clamava pela “extinção” da “raça tutsi”.
As ideias dos sábios acadêmicos foram disseminadas por algumas emissoras de rádio e televisão francamente engajadas com a causa do genocídio. A atuação desses veículos foi tão decisiva na produção da violência que, posteriormente, houve responsabilização criminal. Em julho de 1993, começaram as transmissões da Rádio e Televisão Livre das Mil Colinas (RTLM) dirigida por Ferdinand Nahimana, historiador; Casimir Bizimungu, médico; Hassan Nzege, jornalista e um dos proprietários. Todos eram formados na Universidade de Butare. Quando o genocídio teve início, em abril de 1994, a emissora conclamava os ouvintes a “preencher os túmulos ainda vazios com mais tutsis”.
No dia 6 de abril de 1994, Juvenal Habyarimana, presidente de Ruanda, e Cyprien Ntaryamira, um hutu eleito presidente do Burundi, ambos promovendo reformas políticas em seus países, morreram quando o avião em que viajavam explodiu ao se aproximar de Kigali. Até hoje as causas do acidente aéreo permanecem sem investigação.
O fato é que, nas semanas anteriores ao acidente, Habyarimana oscilava entre a radicalização desejada pelos supremacistas hutus e políticas de reconciliação nacional sugeridas pelo governo francês em troca de ajuda financeira ao país. O presidente ruandês anunciara o fim do sistema de partido único, chamando os tutsis a participarem das eleições gerais. Negociações mediadas pela ONU e pela Organização de Unidade Africana (OUA) haviam resultado na assinatura dos Acordos de Arusha, encerrando formalmente a guerra civil e estabelecendo um plano para a paz.
Tais ações desagradaram profundamente os extremistas hutus, que perderam a confiança em Habyarimana e intensificaram a perseguição contra os tutsis. Hoje, sabe-se que os líderes hutus radicais já tinham em mente o massacre enquanto negociavam a paz.
Horas depois da morte de Habyarimana, membros do governo e a FPR trocavam acusações mútuas, afirmando tratar-se de um atentado, enquanto a Rádio Livre das Mil Colinas convocava o povo hutu para o festim macabro.
A programação da Rádio Livre das Mil Colinas disseminava o ódio entre os hutus, qualificando os tutsis de “baratas”. A emissora orientava a carnificina, anunciando a localização dos “alvos” tutsis. Os locutores justificavam a matança lembrando a opressão histórica. Falavam de justiça…
Algumas horas depois da queda do avião, as milícias Interhamwe cercaram Kigali, tomando as ruas e disseminando a violência. Em um único dia todas as lideranças políticas moderadas do país estavam mortas. Havia um claro “intento de destruição” perpetrado pelo Estado – e os órgãos administrativos civis e militares asseguraram a logística do extermínio. Os milicianos fizeram a matança com a ajuda do Exército. De acordo com um relatório da Humans Right Watch:
Os aproximadamente 7 mil homens das forças ruandesas estacionados próximos à capital no dia em que o massacre foi iniciado, sendo entre 1,5 mil e 2 mil soldados de elite – da Guarda Presidencial, das unidades de paracomando e de reconhecimento – apoiados por cerca de 2 mil milicianos, realizaram a maior parte dos assassinatos de civis.
Porém, o genocídio também foi uma ação de massa, perpetrada por parcela significativa da população hutu. Muitos mataram para se vingar de injúrias históricas efetivas ou míticas, ou simplesmente dando vazão a ressentimentos banais contra vizinhos. Outros engajaram-se nas atrocidades para não serem mortos pela milícia ou pelos soldados, pois os exterministas queriam envolver toda a “nação hutu” na operação genocida. As carteiras de identidade foram uma condenação à morte para os tutsis, mas as chacinas atingiram também hutus e tuás que se opunham ao regime. A arma preferida foi o machete, mas utilizaram-se foices, facões, lanças e armas de fogo.
Altar da igreja de Ntrama, hoje um memorial do genocídio. “De Kibuye, no oeste, a Kibungo, no leste, as pessoas se reuniam, aos milhares, em busca de refúgio nas igrejas, nos hospitais, nas escolas. E quando eles foram encontrados, os velhos e os doentes, mulheres e crianças, eles foram mortos – mortos porque sua carteira de identidade dizia que eram tutsis ou porque eles tinham um pai tutsi, ou porque alguém achava que eles pareciam um tutsi, ou mortos, como milhares de hutus, porque protegiam os tutsis ou não toleravam uma política que tentava eliminar as pessoas que, no dia anterior e durante anos antes, tinham sido seus amigos e vizinhos.” (Discurso de Bill Clinton em 25 de março de 1998)
À medida em que as forças tutsis da FPR avançavam e assumiam o controle de grande parte do território, centenas de milhares de hutus começaram a fugir para os países vizinhos, sobretudo o Congo, temendo represálias. Em 17 de julho, sob a liderança de Paul Kagame, a FPR tomou Kigali e depôs o regime hutu, declarando o MRND ilegal. O morticínio terminou sem que a comunidade internacional tivesse qualquer participação efetiva no desfecho.
No governo provisório implantado pela Frente Patriótica, a presidência ficou com Pasteur Bizimungu, um hutu, num gesto de conciliação, enquanto o poder real permaneceu nas mãos de Kagame (que o detém até hoje). As carteiras de identidade étnica foram abolidas; leis foram aprovadas proibindo, sob penas severas, o uso de identificações étnicas nos debates políticos. Tudo isso foi incorporado à Constituição aprovada por referendo em 2003. No artigo 54º, o texto constitucional determina que as “organizações políticas são proibidas de se basear em raça, grupo étnico, tribo, clã, região, sexo, religião ou qualquer outra divisão que possa originar discriminação”.
Se a sociedade ruandesa conseguiu de fato superar a trágica divisão, só o tempo dirá.
Na reconfiguração mundial que se seguiu à queda do Muro de Berlim (1989), o continente africano foi rapidamente deixando em segundo plano pelas duas superpotências, que se ajustavam aos novos tempos cortando gastos militares ou realocando-os. À época, a África foi descrita como o “continente esquecido” da política mundial.
Em Ruanda, casaram-se o desinteresse da Bélgica pela ex-colônia e o interesse da França em expandir sua influência aos “países francófonos” africanos para fazer frente à “área da anglofonia” – revivendo um velho enredo sobre a África.
O genocídio de Ruanda foi um exemplo brutal de como a chamada “Nova Ordem Mundial” proclamada pelo presidente americano George H. Bush baseava-se em um pragmatismo cínico. Os líderes políticos mundiais dispunham de informações sobre os planos para a execução dos massacres, o que tem sido comprovado por documentos americanos, franceses, belgas e da ONU liberados para conhecimento público depois de 20 anos. Cinismo porque, enquanto os líderes desses países celebravam o fim da ordem bipolar e o que parecia ser a vitória das democracias capitalistas, eles eximiram-se de agir para interromper o evidente genocídio em curso.
Não vale sequer o argumento de poupar soldados do perigo, pois os ruandenses foram mortos a golpes de facão, não a rajadas de metralhadoras!
O governo de François Mitterand (1981-1995) foi o responsável pelo resgate da política para a África baseada na francofonia. Em junho de 1990, em La Baule, França, ocorreu um Encontro Franco-Africano com a presença de diversos chefes de Estado africanos perante os quais Mitterrand exaltou os benefícios de reformas democráticas naqueles novos tempos, prometendo ajuda e investimentos aos países que se engajassem na empreitada.
Foi nesse contexto que Habyarimana deu início às reformas políticas que acabariam levando ao diálogo com a Frente Patriótica Ruandesa e ao Tratado de Arusha, de 1993. Mas o que parecia ser um sucesso da política externa francesa escondia informações de planos de genocídio de tutsis por agentes do governo aliado de Habyarimana . Enquanto celebravam a paz aparente, os franceses preparavam a retirada de seus cidadãos e suas tropas, ao mesmo tempo em que enviavam armas para o governo ruandês (vendidas antes do acordo de paz, explicaram depois).
François Mitterrand escolheu fantasiar-se de grande estadista ao invés de sê-lo, pois quando o genocídio começou e as tropas da FPR ocuparam o norte de Ruanda, a França ampliou o apoio militar ao Exército de Habyarimana, ao mesmo tempo em que orientava seus soldados a não se envolverem no conflito. Na prática, as ações francesas permitiram aos hutus matarem tutsis sem terem que se preocupar com a chegada da FPR. O governo francês não pode alegar ter sido pego de surpresa, pois sabia o que estava acontecendo.
François Mitterrand (direita) e Bill Clinton, os principais atores externos da tragédia de Ruanda
Vinte e um anos depois do genocídio, a revista Foreign Policy publicou um dossiê sobre Ruanda baseado em entrevistas com os agentes de Estado diretamente envolvidos e em documentos então recentemente liberados. Ele fornece o contexto do ponto de vista da política dos Estados Unidos à época:
O pano de fundo para a falta de interesse dos Estados Unidos em Ruanda estava ligado ao fim da Guerra Fria, quando o então Secretário de Estado James Baker fez cortes no Departamento de Estado para financiar o estabelecimento de mais de uma dúzia de novas embaixadas na antiga União Soviética. O escritório da África no Departamento de Estado viu seu orçamento encolher. Clinton também demonstrou pouco interesse pela África. (…)
A única iniciativa (na qual Bill Clinton) buscou engajamento considerável foi a Somália, para onde o presidente George H. Bush havia autorizado o envio de fuzileiros navais dos EUA para preparar o caminho para um esforço maciço de ajuda humanitária. Clinton herdou a operação, que gradualmente envolveu as forças militares americanas em uma guerra com a milícia somali que desafiava a presença internacional. Em 3 de outubro de 1993, as mortes de 18 soldados dos EUA em um ataque fracassado em Mogadíscio colocaram o governo Clinton na defensiva e esfriaram a atitude do Pentágono em relação à manutenção das forças de paz.
O genocídio em Ruanda, que começaria seis meses depois, encontrou a Casa Branca finalizando uma diretriz presidencial, conhecida como PDD-25, que colocava severas restrições nas condições exigidas para o apoio dos EUA a missões de manutenção de paz. Enquanto isso, o presidente Clinton estava preocupado com um projeto de lei para a saúde e com as próximas eleições parlamentares de meio-mandato, estando determinado, portanto, a manter os Estados Unidos longe de qualquer complicação militar estrangeira (…). (Colum Lynch, Exclusive: Rwanda revisited)
Um telegrama diplomático de agosto de 1992, escrito por um funcionário da embaixada dos EUA em Kigali emitia alertas de que extremistas hutus ligados ao governo estavam defendendo o extermínio de tutsis. Para Washington, porém, não havia interesse nacional americano que justificasse qualquer intervenção. Quando o massacre começou, Clinton realizou peripécias verbais para falar de Ruanda sem jamais empregar a palavra genocídio. Ele sabia que a credibilidade do país enquanto liderança mundial sairia abalada se não enviassem tropas imediatamente, como determina a Convenção Contra o Genocídio de 1948.
As consequências da inação dos EUA se revelariam funestas, em pouco tempo.
Os capacetes azuis da ONU estavam em Ruanda desde 1993 intermediando as negociações para acabar com a guerra civil. Era a Missão de Assistência das Nações Unidas para Ruanda (UNAMIR), com um mandato para a manutenção da paz e ações de ajuda humanitária. O comandante da operação, general Romeo Dallaire solicitou oito mil homens para supervisionar o cumprimento do acordo de paz; prometeram-lhe cinco mil, pouco depois reduzidos à metade por ordem do Conselho de Segurança (leia-se, no caso, EUA).
Meses antes de começar o genocídio , o general Dallaire enviou o agora chamado “fax do genocídio” para os responsáveis no Conselho de Segurança, alertando para um plano de “extermínio contra os tutsis”. Mesmo assim, os 2,5 mil soldados da UNAMIR receberam ordens para não intervir, devendo apenas “monitorar” a situação. “Fui instruído que essa missão deveria ser barata”, lembrou Dallaire. “Os americanos não pagaram [as contribuições da ONU], não havia dinheiro e ninguém estava particularmente interessado em dar início à missão.”
General Romeo Dallaire. Apesar de todo o seu empenho, o comandante das tropas da ONU não foi capaz de convencer o Conselho de Segurança a enviar mais homens para interromper o genocídio. A culpa nunca o abandonou.
Os Estados Unidos atuavam para retirar todas as forças da ONU da região. A Bélgica alinhou-se aos americanos depois que dez soldados belgas da UNAMIR foram mortos, no dia 7 de abril de 1994, ao tentarem proteger autoridades políticas moderadas hutu. A secretária de Estado americana, Madeleine Albright, entretanto, acabou sendo convencida de que o “abandono” da África causaria imenso dano à imagem dos EUA em todo o continente e mesmo no restante do mundo. Então, Washington reavaliou sua posição e, em 20 de abril, o Conselho de Segurança da ONU garantiu que manteria pelo menos 270 soldados em Ruanda… (Colum Lynch, Exclusive: Rwanda revisited)
Enquanto isso, o Conselho de Segurança adiava o envio de forças de interposição, debatendo se “genocídio” era o termo adequado para definir os massacres massivos de tutsis. Segundo a Human Rights Watch, foram os membros não-permanentes do Conselho de Segurança – naquele momento, República Tcheca, Espanha, Nova Zelândia e Argentina – que pressionaram pela criação de uma nova operação de paz, com um mandato mais forte para proteger os civis.
Finalmente, em 22 de junho, a ONU admitiu que estava diante de um genocídio. As forças de paz destacadas para a missão, no entanto, não eram mais do que as tropas francesas ainda presentes em Ruanda. Esses soldados foram enviados para o sudoeste do país com o objetivo de estabelecer um “corredor” pelo qual os hutus – que começavam a fugir frente o avanço da FPR – alcançassem os países vizinhos em segurança. A chamada Operação Turquesa salvou milhares de civis hutus de atos de vingança, mas também deu cobertura para a fuga de soldados, funcionários e milicianos hutus envolvidos no genocídio. Mais uma vez, a França atuava em prol dos aliados hutus.
Também chamado Tribunal Criminal Internacional para Ruanda (ICTR, na sigla em inglês) foi estabelecido pelo Conselho de Segurança da ONU em 8 novembro de 1994 “para julgar os supostos responsáveis por atos de genocídio ou outras violações graves do direito internacional humanitário cometidas no território de Ruanda e países vizinhos entre 1 de janeiro de 1994 e 31 de dezembro de 1994”.
A corte foi instalada na cidade de Arusha (Tanzânia), com escritórios em Kigali (Ruanda) e Câmara de Recursos em Haia (Bélgica). Desde a sua abertura, em maio de 1995, até seu encerramento, em 31 de dezembro de 2015, o TPIR indiciou 93 pessoas por envolvimento e responsabilidade direta nos atos do genocídio – altos funcionários do governo, militares, políticos, empresários, religiosos, proprietários de rádios e canais de televisão, chefes de milícias.
O Tribunal de Ruanda foi o primeiro da história a tratar efetivamente do crime de genocídio tal como previsto pela Convenção Contra o Genocídio, investigando e julgando os principais chefes políticos e militares, inclusive o primeiro-ministro, condenado à prisão perpétua. Alguns homens em postos chaves conseguiram fugir do tribunal, mas seguem em listas internacionais de procurados.
O TPIR incorporou novas referências ao crime de genocídio. Primeiro, pela responsabilização dos controladores das redes de mídia pelo papel ativo na disseminação do ódio e da violência; segundo, pela inclusão do estupro – étnico ou de guerra – como ato de tortura e característica de política genocida. Em Ruanda, houve um dado de violência adicional contra as mulheres, de acordo com os investigadores: muitas mulheres estupradas coletivamente foram mortas em seguida (o que reduziria a eficácia da própria ideia de fazê-las terem filhos hutus). Aparentemente, atacar as mulheres tutsis justificava-se por um mito de origem que contava ser a sensualidade das tutsis a causa da perdição dos hutus.
Paralelamente à Corte Internacional, os ruandeses recorreram à Gacaca – um tribunal comunitário tradicional que julgou mais de 1,2 milhões de casos.
Comparado a outros casos, a rapidez no estabelecimento do tribunal penal em Ruanda impõe uma pergunta: o quanto da agilidade no julgamento e responsabilização dos culpados serviu para rebater as críticas à omissão da ONU e das grandes potências naqueles pavorosos cem dias – deixando a imagem final de que o “Ocidente” defende os direitos humanos de forma intransigente?
Sessão do Tribunal Criminal Internacional para Ruanda
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