“MIMMO”, PRESO POLÍTICO NA ITÁLIA XENÓFOBA

Riace tornou-se um caso celebrado de integração dos imigrantes

Riace tornou-se um caso celebrado de integração dos imigrantes

Demétrio Magnoli

8 de outubro de 2018

 

Riace, cidadezinha de 2,3 mil habitantes na Calábria, a ponta da bota italiana, experimentou constante declínio demográfico até tornar-se um improvável centro de acolhimento de imigrantes. A virada começou em 1998 e, hoje, quase mil imigrantes juntaram-se à população local. O programa deve-se a Domenico Lucano, que acolheu os primeiros imigrantes e fundou a associação Città Futura (Cidade Futura), uma eficaz iniciativa local de promoção dos direitos humanos.

“Mimmo”, como é conhecido, elegeu-se prefeito em 2004, com 35% dos votos e reelegeu-se duas vezes, em 2009, com 52%, e em 2014, com 54%. Uma semana atrás, o prefeito foi encarcerado pela polícia financeira italiana sob as acusações de arranjar casamentos de conveniência e de desvio de fundos públicos. A segunda acusação, de corrupção, foi logo retirada, por absoluta carência de evidências. A primeira exige tradução: a Itália xenófoba já tem um preso político.

A investigação que gerou a detenção é sobre auxílio à imigração ilegal. Ironicamente, seu nome codificado é “Xenia”, palavra que, em grego antigo, refere-se ao conceito de hospitalidade. De certa forma, a Itália do governo duplamente populista da Liga e do M5S imita a Hungria de Viktor Orban, que editou um pacote de leis destinado a criminalizar atos humanitários de apoio a imigrantes. Mimmo é acusado de explicar a uma imigrante nigeriana que o casamento com um italiano evitaria sua iminente deportação. Diante da renúncia da Procuradoria à absurda acusação de corrupção, a ex-ministra da Integração, Cécile Kyenge, tuitou a pergunta incômoda: “Então, o que #MimmoLucano fez de errado? Solidariedade humana, talvez?”.

“Domenico Lucano, prefeito de Riace, não enxerga nos imigrantes uma ameaça, mas uma oportunidade para revitalizar um povoado que parecia destinado ao despovoamento”. A declaração, que aparece no site de Città Futura, não é uma esperançosa profecia, mas um registro factualmente comprovável. A associação criou uma cooperativa que qualifica imigrantes para trabalhar em indústrias de tecelagem, cerâmica, vidros e geleias. O sucesso do programa reflete-se tanto nas eleições locais quanto no reconhecimento nacional e internacional. Mimmo recebeu diversos prêmios por seu trabalho de integração e, em 2016, a revista Fortune colocou-o em 40º lugar na sua lista de líderes mais influentes do mundo.

O “modelo Riace” distancia-se radicalmente dos modelos tradicionais de incorporação de imigrantes. De um lado, estimula a integração ao mercado de trabalho, dispensando rapidamente o financiamento público. De outro, aloja os recém-chegados em casas abandonadas, restauradas pelos próprios imigrantes, não em quartéis, hotéis duvidosos ou acampamentos. O conceito de que os imigrantes representam uma oportunidade, tão óbvio no caso do povoado calabrês, pode ser trasladado, com adaptações, ao conjunto da Europa.

O Velho Mundo experimenta envelhecimento demográfico e concomitante redução da população economicamente ativa. O peso da população idosa sobre os sistemas previdenciários desequilibra os orçamentos públicos. A imigração tem o potencial de ampliar a parcela da população em idade ativa, reativando mercados de trabalho quase inoperantes. Quando, em 2015, a primeira-ministra Angela Merkel tomou a ousada decisão de abrir as portas da Alemanha à onda de refugiados, ela combinava um imperativo político humanitário a um cálculo econômico de longo horizonte.

O nativismo e a xenofobia puseram freios à iniciativa de Merkel. Na Itália, são eles os responsáveis pela prisão de Mimmo Lucano. O ministro do Interior Matteo Salvini, líder da Liga, partido da direita nacionalista, saudou o encarceramento e indagou o que dirão do episódio “todos os caras bonzinhos que pretendem inundar a Itália de imigrantes”. Salvini, um eurocético radical, admirador de Vladimir Putin e de Donald Trump, crítico da vacinação obrigatória, fechou os portos italianos a embarcações que recolhem imigrantes em naufrágios no Mediterrâneo. As respostas à sua indagação sugerem que, numa nação rendida aos populismos, ainda há vida inteligente e figuras dispostas a erguer a voz em defesa das liberdades e dos direitos humanos.

Riace lançou uma campanha contra a prisão arbitrária de seu prefeito. Os atores  Beppe Fiorello e Alessandro Gassman, filho de Vittorio Gassman, difundiram seus protestos. O jornalista e escritor Roberto Saviano, que denunciou as atividades da Camorra, a máfia napolitana, desafiou Salvini a “vir ver o milagre de Riace”, algo que não acontecerá. “A verdade é que, nos atos de Mimmo Lucano, nunca houve finalidade de lucro, mas desobediência civil”, escreveu Saviano. “Desobediência civil: eis a única arma que temos para defender não só os direitos dos imigrantes, mas os direitos de todos”. E diagnosticou que o governo “dá os primeiros passos em direção à transformação da Itália de uma democracia num Estado autoritário”.

O governo italiano finge que a história das migrações começou ontem. Desde o século XIX, imigrantes italianos das mais diversas origens encontraram novas pátrias e refizeram suas vidas nos EUA, no Canadá, no Brasil, na Argentina, no Uruguai, na Austrália, na África do Sul e em tantos outros países. “A vergonha não tem limites”, conclui o deputado Giuseppe Civato.

 

 

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