O NOVO MILITARISMO URBANO

17 de setembro de 2018

 

Stephen Graham, em seu livro de 2011, Cities under siege – The New Military Urbanism (“Cidades sitiadas: o novo militarismo urbano”) analisa as mudanças que vêm ocorrendo em diversos países nas últimas décadas e que têm transformado o pensamento (e a prática) sobre o fazer da guerra no contexto da segurança internacional contemporânea. O que faz dessas guerras “novas” é a mudança de adversário: se antes os conflitos armados eram travados entre Estados, agora ocorrem cada vez mais entre Estado versus população civil (insurgente ou não).

No capítulo “Lições sobre Urbicídio”, Graham estuda o caso da Operation Defensive Shield (2002), operação militar conduzida pelo Exército israelense em territórios da Cisjordânia durante a Segunda Intifada, com o objetivo de ilustrar o que seria essa nova forma urbana de guerra. (Intifada significa revolta, insurreição e assim são conhecidos os movimentos palestinos contra a ocupação israelense, caracterizados por ações que evidenciam a desproporção de forças: enquanto os palestinos jogam pedras, os israelenses atiram balas mortais. Ocorreram duas Intifadas, a primeira, teve início em 1987 e a segunda, em 2000).

Segundo o discurso oficial, a Operation Defensive Shield serviria para “desmantelar a infraestrutura terrorista” por trás dos ataques suicidas palestinos. Mas o que se viu de fato foi a demolição de grande parte do campo de refugiados de Jenin (localizado no norte da Cisjordânia); 52 mortes de palestinos, sendo que metade eram civis; destruição de 140 edifícios de moradia; 4 mil desalojados, além da destruição da infraestrutura básica, administrativa e cultural de muitas outras cidades palestinas (Nablus, Hebron, Ramallah etc).

Tendo estudado o quadro geral da Operation Defensive Shield, Stephen Graham sugere que o real objetivo da invasão israelense às cidades palestinas teria sido aproveitar-se do contexto mundial favorável ao discurso da “guerra ao terror”, promovido pelos EUA, para, na verdade, destruir as estruturas de um proto Estado palestino. Os alvos do Exército foram as fundações urbanas e a infraestrutura social e de bem estar, das quais os combatentes da Intifada e suas famílias dependem. Tal estratégia de destruição deliberada de uma dada cidade foi chamada por Marshall Berman (escritor e filósofo norte-americano) de “urbicídio”.

Durante a ação israelense para conter as revoltas palestinas em 2002, “observadores” norte-americanos estavam em campo e viram a doutrina militar de guerra urbana (urban warfare) do Exército de Israel como uma fonte de aprendizado, absorvendo as estratégias e tecnologias utilizadas. Muitas delas foram, reconhecidamente, aplicadas na invasão do Iraque por parte dos Estados Unidos um ano depois, em 2003.

Como ressalta Bashir Abu Manneh, professor na Universidade de Haifa (Israel), a dinâmica dos interesses norte-americanos no Oriente Médio e a aliança com Israel é circular. O apoio norte-americano reforça a ocupação israelense, que por sua vez reforça a militarização do Estado e da sociedade, gerando novas justificativas políticas e ideológicas, e alimentando novos fanatismos religiosos e levando a mais intervenções norte-americanas na região. Desde os ataques de 11/09/2001, ambos os governos têm se aproximado sob a justificativa da existência de um “inimigo comum”: o terror urbano. Tal justificativa foi especialmente útil para Israel, cujos líderes conservadores passaram a tratar Osama bin Laden e Yasser Arafat (líder da Autoridade Palestina) como semelhantes, atraindo a atenção dos EUA para suas próprias questões.

A demonização do “outro”, construída através de discursos maniqueístas, também se mostra crucial para que a guerra urbana seja colocada em prática e para que se justifique o emprego de estratégias militares desproporcionais contra as estruturas sociais do adversário – as quais seriam responsáveis por “proteger” e “policiar” a fronteira entre “modernidade” e “liberdade” versus “barbárie”.

Outra ideia central presente nas guerras urbanas atuais é de prevenção (“guerra preventiva”). Nas palavras de Graham:

“À época do lançamento da Guerra ao Terror, a administração Bush usou a Segunda Intifada como um modelo para o “novo paradigma” norte-americano do fazer a guerra. Isso porque observou-se que ambos envolvem conflitos assimétricos, opondo poderosos e tecnológicos Exércitos e indivíduos e grupos não-estatais os quais operam nessas concentrações densas de civis urbanos. Além do mais, no contexto da Guerra ao Terror, a construção de zonas cinzentas jurídicas e geográficas como meio de justificar a suspensão das normas internacionais também encontram precedente direto na prática israelense na Palestina”. (p. 238)

Também encontramos similaridades no vocabulário usado pelos governos para tratar das “cidades em guerra”. Legalmente, a descrição feita por Israel sobre o status da Cisjordânia e da Faixa de Gaza é tão vaga e sui generis quanto o discurso americano sobre o Afeganistão como um “Estado falido”. Ambos na intenção de justificar a não aplicação do direito internacional humanitário nos casos em questão.

Estados Unidos e Israel têm operado de modo muito semelhante na justificativa legal para o estado de exceção estabelecido em algumas áreas e para a irrelevância do direito internacional humanitário nas mesmas. Em ambos os casos, brechas legais estão sendo usadas para legitimar detenções em massa, sem nenhum processo legal. A Guerra do Iraque, em 2003, seguida pela invasão do país pelas forças norte-americanas, deixa clara a inspiração na ação israelense nos Territórios Ocupados.

No final daquele ano, a ação norte-americana no Iraque se transformou: de uma missão militar simples para derrotar um Exército infinitamente inferior para o desafio de pacificar insurgências urbanas complexas. O que inicialmente poderia ser chamado de um “conflito armado convencional” transformou-se num “conflito de contra insurgência”, lembrando a contenção da Segunda Intifada. O envolvimento de Israel cresceu dramaticamente no conflito, moldando doutrinas e partilhando estratégias militares e tecnologias com as forças ocupantes. A economia israelense viveu um boom nesse período.

Esse compartilhamento massivo de conhecimento, estratégia, doutrina, armamentos e tecnologia, proveniente majoritariamente do desenvolvimento de know-how de “guerra urbana” por parte de Israel têm influenciado fortemente as doutrinas militares dos EUA, e gerado ótimas contrapartidas para Israel em termos de economia.

Toufic Haddad, pensador sobre a questão Israel versus Palestina e atuante como jornalista na região, observou que as técnicas militares utilizadas pelos EUA no Iraque em 2004 foram muito semelhantes àquelas escolhidas por Israel durante a Operation Defensive Shield. Segundo ele, isso se deveu à cooperação em solo entre conselheiros militares israelenses e norte-americanos. Em seu “diagnóstico de similaridades”, lemos:

“O uso de técnicas agressivas de guerra urbana com ênfase em unidades especiais; buscas de casa em casa; campanhas de prisão em larga escala; tortura; construção de um elaborado sistema de torres de vigília; bases militares; check-points; arame farpado e cercas de monitoramento; restrição e controle de transporte e movimento; devastação de grandes áreas nos entornos das estradas; uso de demolidores para destruir casas de supostos militantes; devastação de grandes campos onde os militantes podem buscar refúgio; a relevância de snipers e drones; e elaboração de redes de colaboração para extrair informações da população local sobre atividades de resistência” (p. 240).

Israel tem desenvolvido a estratégia de “controlar à distância” a região da Faixa de Gaza através de fronteiras ultra militarizadas, invasões, ataques e vigilância aérea contínua, ao invés do controle através da presença contínua de Exércitos ocupantes. Assim, com menos efetivo militar em solo e menos “fricção” (criada pelo contato direto) com a população civil, Israel está menos sujeito a perdas materiais e tem menor potencial de sofrer publicidade negativa. Os Estados Unidos aplicaram a mesma lógica em cidades problemáticas iraquianas, como Bagdá. Como escreve Stephen Graham:

“Nas novas cidades e distritos urbanos embarreirados do Iraque, a população civil frequentemente se vê habitando o que Robert Fisk chamou de prisão da ‘população controlada” (p. 241).

Além da ampla cooperação em termos de armamentos, Estados Unidos e Israel estão colaborando intensivamente no desenvolvimento de uma ampla variedade de armas não-letais, incluindo substâncias irritantes, malcheirosas, barulhentas, infravermelho e ultrassons, agentes de vômito, luzes estroboscópicas, bombas de atordoamento e “projéteis não penetrantes”.

A doutrina da “Guerra Longa” (Long War), desenvolvida pelo Pentágono nos idos de 2005 como uma espécie de renovação da Guerra ao Terror (War on Terror), substitui operações em terra, com amplo uso do efetivo militar material e humano (por exemplo, ocupações de território), por táticas de monitoramento e “ataques preventivos” à distância (principalmente via drones). Os argumentos em favor dessa mudança se fortaleceram após o fracasso desastroso da invasão militar completa do Iraque.

Uma interessante conclusão para o tema debatido no artigo de Stephen Graham sobre as novas guerras urbanas é o crescimento econômico de Israel fortemente impulsionado por tais tecnologias.

“Não é coincidência que a emergência de Israel como um laboratório global de militarismo urbano e securitização tenha sido intimamente associada com um ressurgimento dramático de sua economia nacional. Entre 2000 e 2003, a economia israelense passou por uma grande recessão. Isso devido a impactos do colapso global das bolsas de Internet e também à al-Aqsa, ou, Segunda Intifada, iniciada em setembro de 2000 e marcada por ataques suicidas devastadores contra cidades israelenses e seus espaços públicos.

Desde essa recessão, porém, a economia israelense, cada vez mais high-tech, tem sido impulsionada através do desafio de vender sistemas de segurança de última geração e maquinário de guerra urbana para um mercado global em rápido crescimento, usando como vantagem seu status de ‘comprovado em combate’

Desde os ataques de 11 de setembro, e o aprofundamento da estratégia israelense nos aspectos das guerras urbanas na Guerra ao Terror, o capital israelense, com considerável suporte dos governos dos EUA e de Israel, tem levado suas habilidades, expertise e produtos para além dos mercados mais óbvios em torno da guerra urbana, e os projetado com perícia para a arena muito mais ampla e sempre-em-expansão da securitização global, guerra securocrática, “segurança interna” e contraterrorismo. […] ” (p. 253).

 

SAIBA MAIS

  • Movement restrictions west bank roads tightened Cisjordania 
    (09/02/2016) – Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de assuntos humanitários (OCHA)
    Reportagem sobre a crescente implantação de postos de controle em áreas palestinas, em 2015, chegando a um aumento de 20% em poucos meses. Mapa detalhado de todos os obstáculos no caminho dos palestinos.

 

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