O papa Francisco, no 13 de abril de 2015, chamou a atenção para um tema tabu: o massacre do povo armênio praticado pelo Império Turco Otomano durante a Primeira Guerra Mundial. O pontífice disse com todas as letras ter sido o primeiro genocídio do século XX.
Não que a história humana não esteja repleta de atrocidades contra populações inteiras em todos os continentes. A diferença decorria do novo quadro mental e teórico expresso no nascente Direito Humanitário Internacional por meio das convenções de guerra que estavam surgindo. Só que essas convenções regulavam a guerra entre Estados inimigos que, a princípio, poderiam destruir impiedosamente os vencidos, mas começavam a recusar tal “selvageria” tentando discipliná-la por meio de leis racionais (leve-se em conta ser essa a Belle Époque). Daí a perplexidade causada pelo massacre dos armênios que, apesar de cristãos, eram parte do Império Turco havia séculos e, mesmo assim, foram progressivamente vistos como “inimigos internos” a serem eliminados pelo Estado Otomano.
O Império Otomano desapareceu no final Primeira Guerra e o governo da então recém-fundada República da Turquia transformou o assunto em tabu, ao mesmo tempo em que responsabilizou os armênios pelas mortes (levantes contra os turcos; decisão espontânea de emigrar, etc). Depois da Segunda Guerra, dada a importância estratégica da Turquia no quadro da OTAN, as potências ocidentais escolheram o silêncio sobre o tema. Os armênios, não, espalhados pelo mundo, nunca deixaram de lembrar e reivindicar o reconhecimento internacional sobre o ocorrido.
Atualmente 22 países reconhecem o fato como genocídio; mas isso depende de um cálculo diplomático de perdas nas relações com Ancara. Para os turcos a questão não é só semântica: a admissão do crime pode implicar em reivindicações de reparação financeira e devolução de terras para a vizinha República da Armênia. O governo armênio diz que só quer o reconhecimento do genocídio. Mas em época de recrudescimento de conflitos etno-religiosos e nacionalismos, quem vai apostar nisso?
Fonte: Armenian National Comittee for America
Em 1915, durante a Primeira Guerra Mundial, o povo armênio, que habitava as terras entre o Cáucaso e o oeste da península da Anatólia desde tempos pré-cristãos, foi subitamente desterrado pelo governo do Império Turco Otomano em uma marcha em direção ao deserto da Síria. Proibidos de levar qualquer bem, milhares de pessoas morreram de fome, sede e doenças durante a “travessia”. Os armênios praticamente desapareceram das terras da República da Turquia, fundada em 1923, sobre os escombros do Império.
Aparentemente, tudo começou no dia 24 de abril de 1915, quando foram presos em Istambul e executados na distante Ancara 235 intelectuais e líderes armênios acusados de conspiração contra a Sublime Porta (como era conhecido o governo imperial turco). Nos dias seguintes o número chegou a 600 penalizados – essencialmente lideranças comerciais e religiosas, de modo a desorganizar focos de resistência. Mas foi com a Lei de Confisco e Deportação (Lei Tehcir), aprovada em 29 de maio, que se iniciou o processo massivo execuções e desterros, cujo número de vítimas estimadas por historiadores varia entre 800 mil e 1,5 milhão de pessoas.
O povo armênio tem origens muito antigas e esteve entre os primeiros a se converter ao cristianismo, antes mesmo de Roma. Ocupando uma área estratégica no Cáucaso, eles sobreviveram a séculos de movimentos de conquista e ocupação daquelas terras, sobretudo à expansão islâmica. Quando os turcos começaram a erigir o seu império, ainda no final da Idade Média, os armênios foram integrados e ocuparam, por muitos séculos, papéis de destaque no universo islâmico, revelando relativa harmonia nesse convívio. No entanto, a expansão do Império Russo em direção ao Cáucaso, desde o século XVIII-XIX começou a gerar atritos, pois armênios e russos eram cristãos e, portanto, “aliados naturais” contra o Islã.
O problema principal, no entanto, derivou do avanço da ideologia nacionalista no século XIX e da crescente debilidade do Império Turco, que se desintegrava paulatinamente. Os armênios, ciosos de sua identidade cultural, buscavam a independência e passaram a ser alvo de perseguições e massacres. Enquanto isso, no coração do Império, movimentos nacionalistas reivindicavam a criação de um Estado nacional turco, extirpando de outras minorias étnicas, como curdos, assírios e gregos – além dos armênios. Essa ideologia racista era conhecida como pan-turquismo ou pan-turanismo e ambicionava integrar os povos de origem turca espalhados pela Ásia Central, especialmente em regiões do Turcomenistão e Azerbaidjão. E as províncias da Armênia histórica constituíam um obstáculo nesse caminho.
O Comitê pela União e Progresso (CUP), do qual fazia parte o movimento dos Jovens Turcos, era o principal expoente do pan-turquismo. Esse grupo praticamente assumiu o poder a partir de 1908 e passou a agir para executar seu projeto. Quando a Primeira Guerra Mundial eclodiu, opondo claramente russos e turcos, o temor de uma aliança entre russos e armênios na área do Cáucaso justificou a ação. O genocídio teria sido planejado pelo Comitê Central da CUP, com a criação da chamada Organização Especial (Teshkilati Mahsusa): batalhões compostos pelos criminosos mais violentos das prisões, que executariam o morticínio.
Nota do The New York Times sobre o genocídio armênio em 1915.
A partir de então, o objetivo de expulsar todos os armênios foi levado a cabo vigorosamente. A estratégia foi deportar a população para o deserto da Síria, proibindo que os armênios pudessem carregar qualquer pertence consigo. Obviamente isso era uma condenação à morte por fome e sede. Para trás ficaram cidades destruídas, igrejas e outros símbolos religiosos arrasados, propriedades confiscadas e assassinatos em massa. Tudo isso relatado por diplomatas e missionários que viviam no Império Turco e graças aos quais, devido ao caráter oficial de seus comentários, não se perderam e servem de prova para o ocorrido.
Desde o início, tanto governos das potências ocidentais quanto alguns jornais souberam do ocorrido e reportaram ao público. Sublinhe-se que o fato de as vítimas serem cristãos europeus agregava maior indignação aos fatos, no momento em que se vivia o ápice do darwinismo social e a crença na superioridade da civilização cristã europeia. Mas havia uma guerra mundial em curso, bem como um entendimento tácito da parte de muitos governos que viviam problemas semelhantes relacionados a minorias étnicas que, na prática, justificaram as ações turcas.
Mesmo assim, ainda em 1916, o Ministério do Interior do moribundo governo imperial turco-otomano reconheceu a existência de um grande número de mortos, insistindo que tudo aquilo fora consequência do mau planejamento das deportações num contexto de guerra, e que eventualmente alguns oficiais teriam cometido “excessos”.
Com o término da guerra e a fundação da República pelos Jovens Turcos, vieram o silêncio e o negacionismo. Enquanto isso, a diáspora armênia se organizava internacionalmente para não deixar que aquele crime hediondo fosse esquecido. Desde então cada lado tratou de organizar suas próprias narrativas. Por exemplo, dada a dificuldade em calcular o número de vítimas e como isso impacta na definição do crime, enquanto Ancara fala em 300 mil mortos, os armênios estimam entre 1,5 e 2 milhões de vítimas.
Desde 1915 a comunidade internacional incorporou uma nova expressão ao vocabulário dos crimes de guerra: crimes contra a humanidade. Foi nesse contexto que apareceu o advogado e linguísta Raphael Lenkim, apontando para o problema de como conceituar aqueles eventos e assim enquadrá-los no Direito Internacional e puni-los.
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