Miranda Martinelli Magnoli (in memoriam)

                                    Miranda, 1957

 

Demétrio Magnoli

Miranda Maria Esmeralda Martinelli Magnoli morreu em 24 de julho de 2017, em São Paulo. O site 1948, criado e parcialmente mantido com recursos que ela deixou em meu nome, é uma contribuição à difusão da mensagem da Declaração Universal dos Direitos Humanos e, ao mesmo tempo, um tributo à sua memória.

A arquiteta e paisagista Miranda é lembrada no seu campo acadêmico e profissional como uma pioneira: a fundadora do grupo de disciplinas de Ambiente e Paisagem da FAU-USP. Contudo, a trajetória de vida de Miranda tem ressonâncias mais amplas. São elas que inspiraram a criação de 1948.

Filha do ítalo-brasileiro Alfredo Martinelli e da italiana Maria Castellani, Miranda nasceu em 6 de dezembro de 1932, numa pequena cidade da região setentrional italiana do Veneto. Um dia antes, numa reunião secreta da liderança do Partido Nacional-Socialista (nazista) alemão, Adolf Hitler derrotou a corrente de Gregor Strasser, impondo sua estratégia de “tudo ou nada”. Hitler obteria “tudo” com sua nomeação a chanceler (primeiro-ministro), em 30 de janeiro de 1933, o incêndio do Reichstag (parlamento imperial), em 27 de fevereiro, e a elevação do chanceler a ditador, por ato parlamentar, em 24 de março. O conclave dos nazistas e suas consequências determinariam o futuro de Alfredo, Maria, Miranda e seu irmão pouco mais velho, Dante.

Benito Mussolini governava a Itália desde 1922. A Guerra Civil Espanhola começou em 1936, acelerando a aproximação entre Mussolini e Hitler. Simultaneamente, iniciavam-se os Processos de Moscou, que sedimentaram o poder totalitário de Josef Stalin. Era “meia-noite no século”, na expressão do ex-bolchevique Victor Serge. O antifascista Alfredo, pai de Miranda, acabaria sendo preso e, depois, libertado sem seu passaporte. Com a Conferência de Munique, diante da guerra iminente, ele planejava emigrar para o Brasil. O plano foi levado a cabo em setembro de 1939, quando zarpou de Antuérpia, numa Bélgica ainda neutra, o último navio com destino ao Brasil antes da declaração belga de guerra ao Eixo.

O paquete Siqueira Campos, do Lloyd Brasileiro, que navegava as rotas perigosas entre a Europa e o Brasil, durante a Segunda Guerra Mundial

Os quatro tomaram um trem em Milão, deixando tudo para trás. Na fronteira com a Suíça, Alfredo e Maria esconderam-se no banheiro, escapando ao controle de passaportes da Itália, enquanto as crianças aguardavam, ansiosas, nos seus lugares. Miranda nunca esqueceu o alívio causado pela seguinte entrada dos agentes de imigração suíços, cujos uniformes tinham a cruz grega branca sobre fundo vermelho. Finalmente, eles embarcaram na terceira classe do paquete Siqueira Campos, de dois mastros, 132 metros de comprimento e 6.465 toneladas, construído na Alemanha em 1907, confiscado pelo governo do Brasil em 1917 e incorporado ao Lloyd Brasileiro, que naufragaria em 1943 perto da costa do Ceará. Na lista de passageiros, predominavam portugueses e brasileiros, mas contavam-se uns poucos alemães e italianos, além de um apátrida.

Sob os perigos da guerra no mar, o Siqueira Campos abortou a escala prevista em Dacar (Senegal), seguindo direto para a América, totalmente às escuras. Muito mais tarde, Miranda recordava-se de um susto, a abordagem do navio por uma embarcação militar alemã, e de outro, a tempestade que os sacudiu no meio do Atlântico, pouco depois da ultrapassagem da linha do Equador. Não esqueceu, também, do espanto de sua mãe, que jamais vira um negro, na escala no porto de Salvador. Sobretudo, guardou na clara memória da infância a frase tantas vezes repetida por Alfredo: “pátria é o lugar onde nos sentimos bem”.

A família desembarcou em Santos, em 24 de setembro, e estabeleceu-se em São Paulo, inicialmente no porão de uma residência, com pequenas janelas gradeadas à altura da calçada. Eles nada tinham, exceto a inteligência, a persistência, a capacidade de trabalhar. Dante e Miranda deram aulas particulares desde os tempos do colegial (o atual ensino médio), ajudando a completar o orçamento familiar. Mas nenhum dos quatro jamais se queixou. A cultura da queixa, a demanda de proteção por algum governante paternal sempre foi estranha àquela família. Miranda e Dante optaram pela nacionalidade brasileira e abraçaram a pátria adotiva, onde se sentiam bem. Porém, no Brasil da ditadura do Estado Novo, eram estrangeiros políticos.

Graças a bolsas integrais de estudo, condicionadas a draconianos critérios de performance, os irmãos puderam cursar o Dante Alighieri, escola da comunidade italiana. Uma amarga ironia os perseguia. Nos primeiros anos, até a declaração brasileira de guerra à Alemanha e à Itália, em agosto de 1942, entoava-se na escola a Giovinezza, hino do Partido Nacional Fascista e hino oficioso italiano. “Giovinezza, giovinezza/Primavera di bellezza/Per la vita, nell’asprezza/Il tuo canto squilla e va!/E per Benito Mussolini,/E per la nostra Patria bella” – os versos ficaram gravados na memória de ambos, como um alerta contra as tiranias. Miranda e Dante adquiriram uma repulsa instintiva a multidões vociferantes marchando atrás de bandeiras.

A Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP) nasceu em 1948. Miranda ingressou na faculdade em 1951, como uma das duas únicas mulheres de sua turma, e concluiu a graduação em 1955. Começou a trabalhar no escritório do arquiteto Abelardo de Souza, que lecionava na FAU como assistente de Vilanova Artigas. Abelardo, ao contrário de Artigas, nunca teve papel de destaque no Partido Comunista, mas era um simpatizante. O “Partidão” exercia forte influência sobre a seção paulista do Instituto dos Arquitetos do Brasil e, de modo geral, no meio profissional da arquitetura. Miranda, porém, ficou fora do círculo dos iniciados, renunciando a lucrativas redes de contatos e negócios. Líderes incontestes, bandeiras, utopias definitivas – tudo aquilo parecia-lhe não muito diferente do fascismo italiano.

A aversão aos totalitarismos simétricos não conduzia à insensibilidade política. Miranda devotava profundo desprezo à ditadura militar implantada em 1964, considerando-a um insulto à pátria de adoção. Nos piores anos, após o AI-5, solidarizou-se com militantes políticos na clandestinidade ou na prisão, ajudando a proteger seus familiares. Mas ela não enxergava saídas decentes no “Partidão” nem, muito menos, nas organizações esquerdistas engajadas na luta armada.

A centelha do paisagismo acendeu-se cedo, no último ano da faculdade, por influência do professor Roberto Coelho Cardozo, um americano de origem portuguesa que se transferiu de Berkeley para a USP. Junto com a colega de faculdade Rosa Kliass, fundou o primeiro escritório paulista dedicado ao paisagismo. Desde o começo, as duas distinguiam paisagismo de jardinagem e, logo que puderam, ultrapassaram a escala do lote para operar sobre os grandes espaços urbanos. A reflexão sobre o significado e os usos do espaço público nas metrópoles converteu-se no foco permanente do trabalho acadêmico de Miranda. A longa jornada deixou um fruto valioso: o estabelecimento de uma estrutura de produção de conhecimento que formou gerações de arquitetos paisagistas.

Extrato da lista de passageiros do Siqueira Campos. No destaque em vermelho, a família de Alfredo Martinelli

“Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado”, diz um artigo da Declaração Universal.

A prisão de Alfredo e seu auto-exílio derivaram, diretamente, da ascensão do nazifascismo. A travessia do Atlântico da criança de 7 anos incompletos inscreve-se entre incontáveis histórias de exilados de regimes totalitários e refugiados de guerras. A guerra civil na Síria, deflagrada em 2011/2012, provocou o maior deslocamento humano por causas políticas desde a Segunda Guerra Mundial.

Meses antes de morrer, Miranda voltou-se para mim, apontou uma foto das precárias embarcações de refugiados no Mediterrâneo e disse: “sou eu, somos nós”. Não há documento mais atual que a Declaração de 1948.

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