Os seis padrinhos

 

A Declaração, ao lograr este consenso moral e político – com as implicações jurídicas que foi adquirindo e que adiante serão discutidas – muito deve a um reduzido número de personagens que foram decisivos na sua formulação e subsequente aprovação. Dizia o eminente historiador inglês Lord Acton, em carta a Mary Gladstone, que as ideias, por força da sua irradiação e desenvolvimento, possuem passado e futuro próprios em relação aos quais os seres humanos têm antes o papel de padrinhos do que de pais. Esta concepção da filiação intelectual parece-me muito pertinente na discussão da génese normativa da Declaração. Ela não tem pais, mas tem alguns padrinhos de grande relevância sem os quais não teria chegado a bom termo. São eles: Eleanor Roosevelt (dos EUA); René Cassin (da França); Charles Malik (do Líbano); Peng-chan Chung (da China), e John P. Humphrey (canadense, do secretariado da ONU), cabendo também lembrar Hernán Santa Cruz (do Chile). Respectivamente, nas fotos abaixo.

 

 

Eleanor Roosevelt, a viúva do presidente Roosevelt, presidiu a Comissão no período da elaboração e aprovação da Declaração Universal. Era uma forte personalidade. Havia sido parceira política do seu marido e uma das articuladas defensoras da mensagem social do New Deal. Possuía peso político próprio, acesso direto ao presidente Truman e nas discussões sobre direitos humanos no seio da Comissão, deles tratou não como abstrações teóricas, mas como matéria relacionada aos seres humanos nas suas fragilidades. Deu-se conta do significado do drama dos displaced people e do horror do Holocausto, integrando a Delegação dos EUA à ONU (1).

Na acurada avaliação de Mary Ann Glendon, professora da Faculdade de Direito de Harvard, a grande contribuição de Eleanor Roosevelt não se deu propriamente na redação do texto da Declaração, mas sim na liderança que exerceu na presidência da Comissão. Foi ela que manteve o projeto da Declaração vivo e em andamento em momentos difíceis da negociação e exerceu a sua influência política para assegurar a continuidade do apoio do Departamento de Estado e do governo norte-americanos. No desempenho da presidência, teve o tato e as atenções que fizeram com que todos os membros da Comissão se sentissem respeitados, e soube lidar com as divergências ideológicas articuladas pelo representante da URSS, sobretudo em matéria de direitos civis e políticos, de maneira firme, mas com espírito conciliador (2).

Eleanor Roosevelt e a Comissão contaram com o qualificado e dedicado apoio do secretariado da ONU na pessoa de John P. Humphrey que, antes de ter sido designado diretor da Divisão de Direitos Humanos, fora professor da Universidade McGill. Versado em Direito Internacional Público, fluente em inglês e francês, Humphrey preparou uma primeira minuta de projeto da Declaração. Esta minuta, já referida acima, foi uma competente destilação de numerosos projetos elaborados por diferentes indivíduos e organizações, lastreada igualmente na documentação que o secretariado coligiu de textos extraídos das constituições de muitos países (3).

O texto preparado por Humphrey foi submetido ao também acima mencionado comité de redação que, depois de discussões, solicitou ao delegado francês, René Cassin que, nele baseado, preparasse um novo texto, contemplando o que seria apropriado incluir numa Declaração. O projeto de Cassin é um documento integrado, com sentido de aplicação universal, que partiu do elenco de direitos preparado pelo secretariado, mas teve o indiscutível mérito de iluminar o significado desses direitos e das suas interdependências (4).

Para um projeto com estas qualidades arquitetônicas, René Cassin estava admiravelmente preparado e motivado. Professor de Direito, antigo combatente da Primeira Guerra Mundial, atuara diplomaticamente na Sociedade das Nações e colaborara com Aristide Briand. Cassin também havia sido o talentoso artífice dos acordos Churchill-De Gaulle, que deram, durante a Segunda Guerra Mundial, o importante estatuto jurídico que individualizou a França Livre. Na sua atuação no projeto da Declaração, Cassin partiu do pressuposto, por ele já afirmado em conferência pronunciada em Londres em 24 de setembro de 1941: seria impossível estabelecer uma paz internacional efetiva num mundo no qual os direitos humanos fossem muito desigualmente respeitados.

Cassin, em função do seu prestígio na França do pós-guerra, preparara os textos legais do Comitê Francês de Libertação Nacional e do Governo Provisório que organizou o retorno à legalidade republicana –, foi um delegado com latitude própria. Agregou à Comissão a competência do jurista experimentado na elaboração normativa, impulsionado pela convicção ética, haurida na tradição republicana francesa afirmadora do papel dos direitos humanos na convivência coletiva. Não lhe faltou, também, perante os horrores do Holocausto, a sensibilidade de quem perdera, na fúria antissemita do nazismo, vinte e nove parentes em campos de concentração (5).

Por aproximações sucessivas, várias minutas de um projeto da Declaração Universal foram sendo elaboradas no âmbito da Comissão, a partir do projeto de Cassin. Nas discussões destas minutas, tiveram papel de grande relevo Charles Malik e Peng-chan Chung, que foram, além de exímios diplomatas, os filósofos da Comissão. Malik doutorara-se em Harvard, com uma tese sobre a metafísica do tempo em Whitehead e Heidegger e fora um professor de sucesso e prestígio no Líbano antes de ingressar, por convocação das lideranças do seu país, na diplomacia. Chang doutorara-se na Universidade de Columbia orientado por John Dewey, e foi, na China, um respeitado educador e crítico literário que, subsequentemente, como diplomata, empenhou-se em promover a compreensão, no exterior, da cultura chinesa.

Chang combinava o domínio da tradição chinesa de um mandarim com um amplo entendimento da cultura ocidental. Valia-se de antecedentes culturais do Oriente ou de citações de Confúcio para superar impasses. Malik, menos pragmático, impactou seus pares pela insistência no rigor do pensamento fruto de sua formação filosófica.

Hernán Santa Cruz, situado politicamente à esquerda, empenhou-se em assegurar a presença, na Declaração, dos direitos econômicos e sociais, lado a lado com os direitos civis e políticos. Articulou, no processo negociador, com o apoio do lastro latino-americano, o ponto de vista dos países em desenvolvimento (6).

Charles Malik foi, em 1948, o presidente do Conselho Econômico e Social que apreciou o projeto da Declaração da Comissão de Direitos Humanos e a encaminhou à Terceira Comissão da Assembleia Geral que ele também presidiu. Foi no âmbito da Terceira Comissão que o projeto, como acima mencionado, veio a ser minuciosamente discutido e votado pelos Estados-membros, artigo por artigo. Neste processo de discussão, o pleno domínio do projeto e o vigor diplomático de Malik na condução dos trabalhos foram decisivos. Nesta etapa crucial, Malik contou com o apoio da frente unida pela preservação do projeto da Comissão, composta por Eleanor Roosevelt, René Cassin, Peng-chan Chung e Hernán Santa Cruz (7).

Ao apresentar a Declaração à Assembleia Geral, em 9 de dezembro de 1948, Malik a descreveu como uma inédita “síntese compósita” de todas as tradições do Direito, com muito da sabedoria asiática e latino-americana. Destacou, nos diversos dispositivos, pontos em que cada país poderia encontrar ou as suas contribuições ou reconhecer a influência da cultura a qual pertencia.

Lembrou o significado do aporte latino-americano, tendo em vista a experiência na preparação, no âmbito da OEA, da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, aprovada em Bogotá em abril de 1948. Realçou a atuação da índia em prol do princípio da não discriminação, sobretudo em relação à mulher. Apontou a contribuição francesa e o repertório acumulado da experiência do Reino Unido e dos EUA no campo das liberdades civis e políticas. Sublinhou como a União Soviética, com o apoio de muitos países, patrocinou os direitos econômicos e sociais voltados para melhorar as condições de vida das grandes massas da humanidade. Concluiu historiando as atrocidades da guerra — as “raízes negativas” – que levaram à Declaração e às suas “raízes positivas”, consubstanciadas nas aspirações das quatro liberdades enunciadas por Franklin Roosevelt em 1941 (8). Em síntese, Malik, com talento expositivo e peso diplomático na ONU, deu as circunstanciadas razões que levaram Austregésilo de Athayde a afirmar, no discurso antes mencionado, de 10 de dezembro, a autoridade moral e política da Declaração.

O discurso de Malik buscava não apenas a aprovação da Declaração mas também a afirmação de sua universalidade. De fato, os grandes padrinhos da Declaração – Cassin, Chang, Eleanor Roosevelt e Malik – não eram homogeneizadores, mas eram intelectualmente universalistas. Acreditavam na unidade do gênero humano e entendiam que os processos de experienciar, compreender e julgar eram capazes de a todos conduzir ao entendimento e à aceitação de algumas verdades básicas (9).

A questão da universalidade foi sempre um desafio num mundo multicultural. Porém, no caso da Declaração, seus padrinhos puderam contar, na época, com o apoio de uma investigação conduzida pela Unesco que indicou que os princípios enunciados nas minutas da Declaração estavam presentes em distintas tradições culturais e religiosas e que vários de seus dispositivos eram uma espécie de denominador comum de contrastantes ideologias. Por isso, os filósofos que se debruçaram sobre esta investigação, entre eles Jacques Maritain, manifestaram-se convencidos de que os membros da ONU compartilhavam convicções das quais dependem os direitos humanos (10).

Neste sentido, o debate das ideias no pós-Segunda Guerra Mundial, estruturado no âmbito da Unesco, uma organização especializada da ONU voltada para a educação, a ciência e a cultura que, para realizar os seus propósitos deveria incrementar o conhecimento mútuo dos povos, colaborou para legitimar a negociação e a aceitação da Declaração. Contribuiu, assim, para que a Assembleia Geral, ao proclamá-la, a afirmasse “como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações”.

Notas
(1) BURNS, James MacGregor & DUNN, Susan. The Three Roosevelts. New York, Grave Press, 2001, p. 504-532.
(2) GLENDON, 2001, p. XX, 206.
(3) HUMPHREY, 1989, p. 147-149.
(4) GLENDON, 2001, p. 66.
(5) Cf. AGI, Marc. René Cassin – Prix Nobel de la Paix - 1887-1976 – Père de la Déclaration universelle des droits de l'homme. Mesnil-sur-l'Estrée, Perrin, 1998, p. 212 e passim; GLENDON, 2001, p. XX.
(6) GLENDON, 2001, p. XX, 44, 126-127, 132-134.
(7) Idem, p. 129-171.
(8) Idem, p. 164-165.
(9) Idem, p. 230.
(10)Idem, p. 75-77 e passim.

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