História da Declaração por Celso Lafer

10 de dezembro de 1948. Eleanor Roosevelt, presidente da Comissão de Direitos Humanos da ONU, com o documento histórico

 

Celso Lafer

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral da ONU na Resolução 217-A (III) de 10 de dezembro de 1948, foi um acontecimento histórico de grande relevância. Ao afirmar, pela primeira vez em escala planetária, o papel dos direitos humanos na convivência coletiva, pode ser considerada um evento inaugural de uma nova concepção da vida internacional.

No campo das relações internacionais, a Declaração Universal, na esteira da Carta da ONU, alterou a clássica lógica da Paz de Westfália (1648). Esta lógica de Estados soberanos e independentes não atribuía peso a povos e indivíduos. Baseava-se nas relações de coexistência e conflito entre entes soberanos num sistema internacional de natureza intra-estatal. Este sistema criou as normas de mútua abstenção do Direito Internacional Público tradicional. Estas, lastreadas na vontade soberana dos Estados, foram concebidas como normas da convivência possível entre soberanias que se guiavam pelas suas “razões de Estado”. Por isso não contemplavam qualquer ingerência nas relações entre o Estado e as pessoas que estavam sob sua jurisdição.

No século XIX, as necessidades da interdependência no relacionamento entre Estados foram diminuindo a efetividade da lógica de Westfália e de suas normas de mútua abstenção e propiciando normas de mútua colaboração. Este é um dos motivos pelo qual o pós-Primeira Guerra Mundial foi além da informalidade do equilíbrio do poder que caracterizara o Concerto Europeu. Assinalou, com a Sociedade das Nações de 1919, uma primeira tentativa de criar um pactum societatis (pacto de sociedade) no plano internacional.

Este pactum societatis, de vocação universal, estava voltado para regular o uso da força e evitar o que fora a inédita surpresa técnica da destrutividade da guerra moderna. Buscou institucionalizar a comunidade internacional criando um tertius inter-partes (terceiro entre as partes) por meio de uma organização internacional. Esta, no seu tratado constitutivo, expressa técnicas e valores do Direito Constitucional, que inspiraram, no século XIX, a expansão de constitucionalismo no plano interno dos Estados. O Pacto da Sociedade das Nações teve como motivação central propiciar a independência das nacionalidades, a segurança coletiva e a paz mundial. Entretanto, no seu contexto, em função das realidades internacionais da época e dos cuidados na preservação dos valores da soberania, o papel atribuído aos direitos humanos era circunscrito.

A Carta da ONU, de 1945, tem outra amplitude como um tertius institucionalizado entre os Estados, na forma jurídica de uma organização internacional. No seu tratado-constitutivo retoma as técnicas do Direito Constitucional para conceber a vis directiva do pactum societatis (a força e o sentido de direção do seu pacto de sociedade) que é uma resposta à Segunda Guerra Mundial e aos seus antecedentes políticos e ideológicos. Por isso vai além da paz e da segurança coletiva, tratadas apenas no relacionamento inter-estatal. Aponta para uma comunidade internacional não só de Estados igualmente soberanos, mas de indivíduos livres e iguais.

Nesta linha, a Carta da ONU internacionaliza os direitos humanos e insere, de maneira abrangente, a sua temática na construção da ordem mundial. Procura limitar o arbítrio discricionário das soberanias no trato dos seus jurisdicionados, que tantas atrocidades gerou no pós-Primeira Guerra Mundial e que foram subsequentemente percebidas como uma das causas das tensões que levaram à Segunda Guerra.

Esta inserção adquiriu uma feição clara com a Declaração Universal de 1948 que é um desdobramento da Carta da ONU. A Declaração é o primeiro texto de alcance internacional que trata de maneira abrangente da importância dos direitos humanos. É um marco na afirmação histórica da plataforma emancipatória do ser humano representada pela promoção destes direitos como critério organizador e humanizador da vida coletiva na relação governantes-governados. No plano internacional, representa um evento inaugural, à semelhança do que foi, a seu tempo, no plano interno, a passagem do dever dos súditos para os direitos dos cidadãos (2).

Esta passagem foi contemplada pela Declaração da Independência de 1776, dos EUA, pelas Declarações de Direito norte-americanas, como a de Virgínia, de 1787, pelas Declarações de Direito da Revolução Francesa, seja a primeira, de 1789, sejam as que a ela se seguiram, em 1791, 1793, 1795; cabendo também lembrar o alcance dos direitos humanos de cunho sócio-econômico, reconhecidos na Constituição Mexicana de 1917 e na Constituição Alemã de Weimar de 1919.

Todo evento com as características de um evento inaugural como a Declaração Universal é singular e único. Tem, no entanto, antecedentes que explicam a sua gênese. Vou inicialmente apontar os antecedentes que permitem compreender a razão de ser da Declaração Universal , para, a seguir, tratar do processo político-diplomático que levou à sua elaboração e subsequentemente discutir a sua estrutura e os seus dispositivos para, afinal, concluir com uma referência aos seus desdobramentos, posto que traçou uma política do Direito voltada para promover a tutela dos direitos humanos no plano internacional.

Notas
(1) Ensaio publicado em MAGNOLI, Demétrio (Org.), História da Paz, São Paulo, Contexto, 2008.
(2) BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro, Campus-Elsevier, 2004, p. 114.

 

Parceiros

Receba informativos por e-mail