De acordo com o Censo Demográfico de 2022, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 2,4 milhões de pessoas no Brasil apresentam diagnóstico para TEA – Transtorno do Espectro Autista. Embora o número seja expressivo, ele representa menos da metade das estimativas mais conservadoras, que apontam para uma população autista de aproximadamente 6 milhões de pessoas no país.
Fonte: IBGE
Esta é a primeira vez que o Brasil levanta dados específicos sobre a população autista e as informações divulgadas pelo IBGE revelam um cenário preocupante. Entre os principais desafios estão o subdiagnóstico, especialmente entre mulheres, e a alta taxa de evasão escolar. Os dados mostram que 35,2% dos autistas com mais de 25 anos não concluíram o ensino fundamental, evidenciando dificuldades no acesso e permanência na educação ao longo da vida.
Por outro lado, observou-se um avanço nas taxas de escolarização na primeira infância, o que indica um possível progresso nas etapas iniciais do ensino. No entanto, mesmo esse singelo progresso enfrenta ameaças constantes, diante de tentativas recorrentes de retrocesso nas políticas educacionais inclusivas.
A forma como se entende e descreve usualmente o autismo mudou significativamente nos últimos anos. O autismo é uma forma atípica do neurodesenvolvimento que se manifesta de diversas maneiras, impactando a forma como o indivíduo interage socialmente, se comunica, processa informações, gerencia emoções e reage a estímulos.
Em vez de falar em “severidade”, um termo que soa clínico demais e não reflete as condições diversas do autismo, por sua falta de lastro técnico, foca-se agora nos “níveis de suporte”. Essa nova abordagem é um avanço. Ela busca descrever, a partir de uma análise de contexto sócio-ambiental, o quanto de apoio uma pessoa autista precisa para navegar nas atividades do dia a dia, mapeando o tipo e a intensidade de auxílio necessário.
O símbolo do autismo celebra a diversidade da condição humana
A identificação desses níveis de suporte pode ser, temporalmente, bastante dinâmica. Essa volatilidade e a necessidade de uma análise constante e atenta mostram que o suporte não é algo fixo, mas sim um reflexo das necessidades que se transformam com o tempo.
Durante muito tempo, trabalhava-se o autismo mediado pelo modelo biomédico. A partir dessa noção, que impõe o binômio normal-patológico, o autismo era considerado uma doença e o tratamento era retirar tais pessoas do convívio social, como se fazia com qualquer pessoa diferente.
O pensamento racial transformou-se em “ciência” com a eugenia e seus representantes defendiam a “melhoria das raças”, mesmo que recorrendo a intervenções extremas como a eutanásia e a esterilização em massa. Nessa lógica, deficiências físicas ou comportamentos fora do padrão eram “defeitos” a serem eliminados. Tal perspectiva entrou em crise após a Segunda Guerra Mundial (1939-45), quando a Alemanha nazista foi julgada pelo Tribunal de Nuremberg e os crimes contra a humanidade cometidos em nome da eugenia foram relacionados.
Na nova ordem mundial que surgia representada pela criação da ONU e a proclamação da Declaração dos Direitos Humanos, aprovou-se o Código de Nuremberg, que estabeleceu regras éticas para o exercício da medicina e ciências afins em todo o mundo.
Em substituição crítica a essa abordagem, foi adotado o modelo social da deficiência, corroborado pela ONU. Trata-se de uma mudança de paradigma que desloca o eixo do problema do indivíduo autista para a sociedade.
Passou-se a considerar que é a sociedade que promove uma série de barreiras à participação social das pessoas deficientes ou pertencentes ao espectro autista. Em parte, porque a mentalidade anterior persiste. O esforço passou a ser pela eliminação das barreiras à integração, e não das pessoas.
O neurodesenvolvimento é mediado pelas relações sociais e, como essas relações não são acessíveis ao indivíduo autista por conta das barreiras impostas à sua participação em razão da sua forma atípica de interação, o desenvolvimento torna-se quase inacessível. No fim, a própria exclusão do indivíduo autista será um freio ao seu desenvolvimento.
O Brasil optou oficialmente pela educação inclusiva como modelo educacional, em conformidade com a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Nova Iorque, 2007) e a Declaração de Salamanca (1994). Essa abordagem tem como princípio fundamental o acesso de todos os alunos à educação regular, em um ambiente escolar plural, no qual a diversidade seja acolhida e cada estudante receba o suporte necessário para aprender e se desenvolver.
Terapias específicas não implicam em retirar os autistas do convívio com os demais colegas
No entanto, são recorrentes as tentativas de retomar o antigo modelo das “escolas especializadas”: espaços segregados do ensino regular, voltados exclusivamente para alunos com deficiências diversas, sob o argumento de atender de forma mais adequada às suas necessidades. Essas propostas, porém, contrariam os princípios da inclusão e reforçam a exclusão estrutural que justamente busca-se superar.
As investidas para a retomada de um modelo educacional segregacionista têm se repetido tanto no debate público quanto no campo legislativo. Um exemplo emblemático é o Decreto nº 10.502/2020, que tentou instituir, de forma coercitiva, uma política de educação excludente. O decreto foi posteriormente declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6.590/DF).
No entanto, seu conteúdo foi reapresentado sob a forma de Projeto de Lei na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP). Atualmente, duas normas estaduais do Paraná, que seguem a mesma lógica, também são objeto de questionamento no STF (ADI 7.796/DF) e aguardam julgamento.
Sob o signo da “especialização”, que soa como música aos ouvidos dos desavisados, os legisladores brasileiros ameaçam uma conquista histórica dos movimentos sociais pela inclusão e um predicado essencial dos direitos humanos. A promoção da segregação escolar nega ao seu sujeito o direito do ensino em escola regular e, ao restante da população, o direito de conviver com a diferença.
Essa lógica reafirma a institucionalização da deficiência como um assunto médico, a ser abordado a partir de uma perspectiva clínica e medicamentosa, reforçando a noção de “especialização” como sinônimo de tratamento.
Sobram boas intenções sobre o tema. O Projeto de Lei 2308/2024, que trata da reserva de vagas no mercado de trabalho para pessoas autistas, é um exemplo recente. Embora se proponha a ampliar direitos, a proposta, como tantas outras, tenta alterar a Lei nº 12.764/2012 (marco legal dos direitos da pessoa com transtorno do espectro autista) com a justificativa de aprimorar a coleta de dados sob uma perspectiva “epidemiológica”. Mesmo a linguagem adotada em muitas dessas iniciativas está impregnada de um discurso patologizante, que insiste em enquadrar o autismo como doença.
É preciso romper com o modelo clínico que reduz a pessoa ao diagnóstico. O autismo é uma forma distinta de perceber, processar e interagir com o mundo, uma variação natural da experiência humana que não precisa ser corrigida. Insistir em abordagens medicalizantes compromete a formulação de políticas públicas eficazes, reforça o estigma social e silencia a vivência e a voz das próprias pessoas autistas.
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