O AUTISMO CRESCE E PEDE EDUCAÇÃO INCLUSIVA (9/6/2025)

 

Silvano Furtado da Costa Silva (Bacharel em Direito pela USP e direto- executivo da ConsulTEA)

 

De acordo com o Censo Demográfico de 2022, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 2,4 milhões de pessoas no Brasil apresentam  diagnóstico  para TEA – Transtorno do Espectro Autista. Embora o número seja expressivo, ele representa menos da metade das estimativas mais conservadoras, que apontam para uma população autista de aproximadamente 6 milhões de pessoas no país.

 

Fonte: IBGE

Esta é a primeira vez que o Brasil levanta dados específicos sobre a população autista e as informações divulgadas pelo IBGE revelam um cenário preocupante. Entre os principais desafios estão o subdiagnóstico, especialmente entre mulheres, e a alta taxa de evasão escolar. Os dados mostram que 35,2% dos autistas com mais de 25 anos não concluíram o ensino fundamental, evidenciando dificuldades no acesso e permanência na educação ao longo da vida.

Por outro lado, observou-se um avanço nas taxas de escolarização na primeira infância, o que indica um possível progresso nas etapas iniciais do ensino. No entanto, mesmo esse singelo progresso enfrenta ameaças constantes, diante de tentativas recorrentes de retrocesso nas políticas educacionais inclusivas.

 

Autismo não é doença

A forma como se entende e descreve usualmente o autismo mudou significativamente nos últimos anos. O autismo é uma forma atípica do neurodesenvolvimento que se manifesta de diversas maneiras, impactando a forma como o indivíduo interage socialmente, se comunica, processa informações, gerencia emoções e reage a estímulos.

Em vez de falar em “severidade”, um termo que soa clínico demais e não reflete as condições diversas do autismo, por sua falta de lastro técnico, foca-se agora nos “níveis de suporte”. Essa nova abordagem é um avanço. Ela busca descrever, a partir de uma análise de contexto sócio-ambiental, o quanto de apoio uma pessoa autista precisa para navegar nas atividades do dia a dia, mapeando o tipo e a intensidade de auxílio necessário.

simbolo do autismo

O símbolo do autismo celebra a diversidade da condição humana

A identificação desses níveis de suporte pode ser, temporalmente, bastante dinâmica. Essa volatilidade e a necessidade de uma análise constante e atenta mostram que o suporte não é algo fixo, mas sim um reflexo das necessidades que se transformam com o tempo.

 

Da eugenia ao Código de Nuremberg

Durante muito tempo, trabalhava-se o autismo mediado pelo modelo biomédico. A partir dessa noção, que impõe o binômio normal-patológico, o autismo era considerado uma doença e o tratamento era retirar tais pessoas do convívio social, como se fazia com qualquer pessoa diferente.

O pensamento racial transformou-se em “ciência” com a eugenia e seus representantes defendiam a “melhoria das raças”, mesmo que recorrendo a intervenções extremas como a eutanásia e a esterilização em massa. Nessa lógica, deficiências físicas ou comportamentos fora do padrão eram “defeitos” a serem eliminados. Tal perspectiva entrou em crise após a Segunda Guerra Mundial (1939-45), quando a Alemanha nazista foi julgada pelo Tribunal de Nuremberg e os crimes contra a humanidade cometidos em nome da eugenia foram relacionados.

Na nova ordem mundial que surgia representada pela criação da ONU e a proclamação da Declaração dos Direitos Humanos, aprovou-se o Código de Nuremberg, que estabeleceu regras éticas para o exercício da medicina e ciências afins em todo o mundo.  

 

Um novo paradigma

Em substituição crítica a essa abordagem, foi adotado o modelo social da deficiência, corroborado pela ONU. Trata-se de uma mudança de paradigma que desloca o eixo do problema do indivíduo autista para a sociedade.

Passou-se a considerar que é a sociedade que promove uma série de barreiras à participação social das pessoas deficientes ou pertencentes ao espectro autista. Em parte, porque a mentalidade anterior persiste. O esforço passou a ser pela eliminação das barreiras à integração, e não das pessoas.

O neurodesenvolvimento é mediado pelas relações sociais e, como essas relações não são acessíveis ao indivíduo autista por conta das barreiras impostas à sua participação em razão da sua forma atípica de interação, o desenvolvimento torna-se quase inacessível. No fim, a própria exclusão do indivíduo autista será um freio ao seu desenvolvimento.

 

A educação inclusiva em alerta

O Brasil optou oficialmente pela educação inclusiva como modelo educacional, em conformidade com a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Nova Iorque, 2007) e a Declaração de Salamanca (1994). Essa abordagem tem como princípio fundamental o acesso de todos os alunos à educação regular, em um ambiente escolar plural, no qual a diversidade seja acolhida e cada estudante receba o suporte necessário para aprender e se desenvolver.

Autismo-psicoterapia

Terapias específicas não implicam em retirar os autistas do convívio com os demais colegas

No entanto, são recorrentes as tentativas de retomar o antigo modelo das “escolas especializadas”: espaços segregados do ensino regular, voltados exclusivamente para alunos com deficiências diversas, sob o argumento de atender de forma mais adequada às suas necessidades. Essas propostas, porém, contrariam os princípios da inclusão e reforçam a exclusão estrutural que justamente busca-se superar.

As investidas para a retomada de um modelo educacional segregacionista têm se repetido tanto no debate público quanto no campo legislativo. Um exemplo emblemático é o Decreto nº 10.502/2020, que tentou instituir, de forma coercitiva, uma política de educação excludente. O decreto foi posteriormente declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6.590/DF).

No entanto, seu conteúdo foi reapresentado sob a forma de Projeto de Lei na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP). Atualmente, duas normas estaduais do Paraná, que seguem a mesma lógica, também são objeto de questionamento no STF (ADI 7.796/DF) e aguardam julgamento.

 

É preciso garantir a inclusão!

Sob o signo da “especialização”, que soa como música aos ouvidos dos desavisados, os legisladores brasileiros ameaçam uma conquista histórica dos movimentos sociais pela inclusão e um predicado essencial dos direitos humanos. A promoção da segregação escolar nega ao seu sujeito o direito do ensino em escola regular e, ao restante da população, o direito de conviver com a diferença.

Essa lógica reafirma a institucionalização da deficiência como um assunto médico, a ser abordado a partir de uma perspectiva clínica e medicamentosa, reforçando a noção de “especialização” como sinônimo de tratamento.

CAPA- Autismo IBGE

Sobram boas intenções sobre o tema. O Projeto de Lei 2308/2024, que trata da reserva de vagas no mercado de trabalho para pessoas autistas, é um exemplo recente. Embora se proponha a ampliar direitos, a proposta, como tantas outras, tenta alterar a Lei nº 12.764/2012 (marco legal dos direitos da pessoa com transtorno do espectro autista) com a justificativa de aprimorar a coleta de dados sob uma perspectiva “epidemiológica”. Mesmo a linguagem adotada em muitas dessas iniciativas está impregnada de um discurso patologizante, que insiste em enquadrar o autismo como doença.

É preciso romper com o modelo clínico que reduz a pessoa ao diagnóstico. O autismo é uma forma distinta de perceber, processar e interagir com o mundo, uma variação natural da experiência humana que não precisa ser corrigida. Insistir em abordagens medicalizantes compromete a formulação de políticas públicas eficazes, reforça o estigma social e silencia a vivência e a voz das próprias pessoas autistas. 

 

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