A Carta Magna de 1215 determinou que ninguém poderia ser preso ilegalmente. Muito depois, em 1679, a Lei de Habeas Corpus, votada pelo Parlamento inglês, sintetizou o direito que havia sido formulado de formas diversas nos séculos anteriores. O instituto do habeas corpus (“você deve ter o corpo”) foi incorporado pela legislação da maior parte das nações, inclusive pela Constituição dos EUA. Hoje, a fim de exercer poderes irrestritos, Donald Trump investe contra o pilar central do Direito Moderno.
Magna Carta de 1215
A lei inglesa criou procedimentos para que pessoas presas fossem conduzidas aos tribunais a fim de verificar a legalidade do confinamento. O habeas corpus é, nas palavras de Eric M. Freedman, “universalmente conhecido e celebrado como o Grande Mandado da Liberdade” pois confere à justiça a prerrogativa de frustrar a opressão governamental. Trump não quer ser frustrado pelo império da lei e, exatamente por isso, pretende suspender o “Grande Mandado da Liberdade”.
A pretensão foi vocalizada por Stephen Miller, um dos principais auxiliares de Trump, em 10 de maio. Segundo Miller, a Casa Branca está “ativamente considerando” suspender o direito de desafiar uma ordem de detenção nos tribunais, sob a justficativa de que a Constituição permite suspendê-lo em tempos de “rebelião ou invasão”. Mas, de acordo com ele, uma decisão definitiva depende dos tribunais “fazerem a coisa certa ou não”. Obviamente, a “coisa certa”, aqui, seria curvar a espinha às detenções arbitrárias ordenadas pelo governo.
A Casa Branca não se conforma com os limites impostos pela lei. Um juiz federal determinou a soltura da estudante turca Rumeysa Ozturk, da Universidade Tufts, aprisionada por escrever um texto de opinião crítico a Israel no jornal do campus. Pouco antes, outro juiz federal ordenara a libertação do estudante da Universidade Colúmbia Mohsen Mahdawi, um palestino com residência permanente nos EUA que liderou manifestações anti-israelenses. E, em março, um terceiro juiz federal decidiu pela ilegalidade da invocação de uma antiga lei de guerra para justificar a deportação de mais de 200 venezuelanos.
Trump tentou intimidar os juízes, inclusive por meio de ameaças de impeachment. A tática fracassou. Daí, a ideia de derrubar o habeas corpus.
No início de 1947, a Comissão de Direitos Humanos, encarregada de produzir uma “Carta Internacional de Direitos”, solicitou sugestões ao Secretariado da ONU. O habeas corpus apareceu entre os 48 itens listados pelo Secretariado.
O primeiro esboço emanado da Comissão incluiu, explicitamente, o direito ao habeas corpus, num artigo que abrangia três categorias de direitos: à liberdade pessoal, à contestação judicial de uma ordem de prisão e de um julgamento justo. Contudo, a Comissão acabou decidindo-se por um texto sintético, menos detalhado, organizado em torno de princípios gerais.
Por isso, o esboço final não mencionava o habeas corpus, o que gerou apreensão em diversos países. A solução partiu do México, que incorporou à Declaração Universal a noção latino-americana de “amparo”. No artigo 8 encontra-se o direito ao recurso contra atos que violem os direitos fundamentais e o artigo 9 estabelece que “ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado”. Desse modo, implícita mas efetivamente, a Declaração reconhece o habeas corpus.
Os Artigos da Confederação, primeiro texto constitucional dos EUA, votado pelo Congresso em 1777, não fazia referência ao habeas corpus. Contudo, a Constituição de 1787 incorporou explicitamente o direito. Dois anos depois, a Lei Judiciária, na sua seção 14, assegurou a prerrogativa dos tribunais federais de invocar o habeas corpus. De lá para cá, todos os estados dos EUA reconheceram o direito, alguns nas suas constituições e outros nas suas leis ordinárias.
O plano de Trump é rasgar a Constituição, mas simulando obedecê-la. Em abril, referindo-se às decisões judiciais contrárias a suas detenções arbitrárias, disse que “há caminhos para mitigar isso – e há alguns caminhos bastante fortes. Existe um caminho utilizado por três presidentes altamente respeitados, mas esperamos não ter que seguir por essa rota”.
A frase remete às suspensões do habeas corpus em tempos de guerra. Durante a Guerra Civil (1861-65), Abraham Lincoln suspendeu o direito. Franklin Roosevelt fez o mesmo, mas apenas para o Havaí, após o ataque japonês a Pearl Harbour, em 1941. Registraram-se, ainda, suspensões localizadas durante o combate à organização supremacista branca Ku Klux Klan, no século XIX, e nas Filipinas sob domínio dos EUA, em 1905.
Cena da assinatura da Constituição dos Estados Unidos, óleo sobre tela de Howard Chandler Christy
O governo Trump almeja rasgar a Constituição alegando a cláusula sobre invasão. Na sua novilíngua, a imigração ilegal é descrita como “invasão”. Admitir distorção tão grosseira da linguagem significaria colocar o Judiciário de joelhos perante um Executivo arbitrário. Seria inaugurar uma rota com destino à ditadura. Estaria a Corte Suprema disponível para tanto?
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