O século XIX chega sob o signo das revoluções liberais e, com elas, do combate ao sistema econômico baseado na escravização e venda de seres humanos e na extrema violência necessária para impor tal ordem social. O Iluminismo afirmava a igualdade entre todos os seres humanos e o direito à liberdade. A revolução industrial revolucionou as relações de trabalho, com a difusão do assalariamento e a expansão dos mercados consumidores.
Perdido o domínio político sobre as Américas, os Estados europeus voltaram-se para a exploração da África e da Ásia e uma nova ideologia justificaria o imperialismo: a superioridade do homem branco. No século XIX, a colonização seria motivada pela “missão civilizadora” e a África seria “partilhada” na Conferência de Berlim (1884-85).
O ritmo vertiginoso das mudanças, contudo, não atingiu o reino de Portugal, que se manteve rural, profundamente católico e cada vez mais dependente da exploração de suas colônias. Angola e Brasil mantinham estreitos laços até que o tráfico transatlântico de escravos foi extinto por pressão do Império Britânico.
Fonte: slavevoyages.org
A independência do Brasil, em 1822, deixou Portugal na dependência das colônias africanas, sendo Angola a mais importante, mas esse domínio era bastante frágil, restrito a alguns pontos do litoral. O avanço para o interior colocaria os portugueses em contato com reinos africanos diversos, com outras línguas e dinâmicas políticas próprias, capazes de resistir ao estrangeiro e assegurar o domínio de suas terras.
Sempre em minoria e muito associados ao tráfico de escravos, que sobrevivia ilegalmente em menor escala, os portugueses passaram o século XIX tentando obter o controle sobre a área mais vasta possível de terras africanas, para onde olhavam com olhos mercantilistas e enxergavam a extração permanente de riquezas naturais. De modo geral, a conquista foi árdua e resultado da carência econômica.
Em 1869, o total de população branca nos territórios portugueses em Angola era de apenas 2.332 habitantes. Como representação cartográfica, “Angola” era um nome europeu, mas não tinha significado para as sociedades que habitavam aquelas terras.
Viena, capital da Áustria, 1815. Ali se reuniram os representantes das monarquias absolutistas e da Inglaterra após vencerem Napoleão Bonaparte para restaurar a ordem antiliberal na Europa. A Inglaterra, exceção liberal, agiu guiada por uma estratégia de obter vantagens econômicas de longo prazo, para consolidar sua posição de potência comercial. Assim, trabalhou por um acordo entre as potências que incluísse a condenação do tráfico de escravos e da própria escravidão.
Desde 1810, em Portugal-Brasil, o príncipe Dom João havia se comprometido com a abolição gradual do tráfico de escravos pelo Tratado de Paz e Amizade, com o qual “retribuíam” a cobertura da marinha britânica durante a transferência da família real e da corte portuguesa de Lisboa para o Rio de Janeiro.
O movimento abolicionista tornou-se popular quando o protestantismo cristão abraçou a causa
Durante o Congresso de Viena, os portugueses foram hábeis, argumentando que um corte abrupto do fornecimento de mão de obra escrava para as grandes lavouras provocaria a completa desorganização produtiva nas colônias, afetando diretamente a arrecadação do reino. A estratégia lusa era adiar ao máximo o fim de tão lucrativo comércio e seu sistema produtivo. Os representantes de Espanha e França concordaram e, juntos, conseguiram restringir a proibição a algumas partes do Atlântico, mas não todo o oceano, como gostariam os britânicos.
O tráfico de escravos tornou-se ilegal ao norte da linha do Equador (impactando diretamente o fornecimento de mão de obra para as colônias do sul dos Estados Unidos), e na costa ocidental da África, mas não no Brasil, de acordo com a Declaração contra o Tráfico de Escravos, assinada em 8 de fevereiro de 1815.
Desde a expulsão dos holandeses, no século XVII, os laços entre comerciantes luso-brasileiros e luso-angolanos se tornaram dominantes e as tentativas dos governadores portugueses em Angola de retomarem a hegemonia obtiveram poucos resultados. Por volta de 1800, 88% das rendas obtidas pela coroa portuguesa em Angola eram provenientes do comércio de escravos.
Depois da proibição do tráfico, em 1815, brasileiros e angolanos deslocaram-se para pequenos portos naturais, menos fiscalizados, como Ambriz, ao norte de Luanda, e Moçâmedes, ao sul de Benguela.
Os vultosos valores envolvidos e as densas cadeias de comércio que ligavam Luanda ao Rio de Janeiro geraran muitos casamentos entre famílias dos dois lados do Atlântico, que assim como no Brasil, iam se desdobrando em uma descendência mestiça. Em 1822, um movimento político em Benguela defendeu a ruptura com Portugal e a declaração de união com o Brasil.
Uma rica família brasileira retratada por Jean Baptiste Debret, 1839. É muito provável que algumas das pessoas negras aí representadas tenham saído dos portos de Angola
Já a coroa portuguesa, para escapar à proibição do comércio na costa ocidental da África, abriu uma nova rota para o tráfico a partir de Moçambique, na costa oriental. Seu destino principal: o Rio de Janeiro. Já o Brasil independente seguiu a mesma estratégia de Portugal, assumindo compromissos abolicionistas para o futuro.
Em 1845 o Parlamento britânico decidiu dar um basta ao votar a Lei Aberdeen, que dava à marinha real a autorização para tratar os navios brasileiros envolvidos com o tráfico de escravos como piratas e afundá-los, como era feito com os traficantes na costa angolana. Em 1850, o Parlamento brasileiro votou a Lei Eusébio de Queiroz declarando ilegal o comércio transatlântico de escravos.
Apesar da queda abrupta, o comércio ilegal prosseguiu ainda por décadas, muitas vezes com a participação de agentes da coroa. Entre 1811 e 1870, o Brasil recebeu aproximadamente 60% dos escravos embarcados nos portos de Luanda, Cabinda e Benguela. Mas a escravidão permaneceu em várias sociedades africanas e angolanas e podia ser encontrada ainda no início do século XX.
A partir de então, o “rio Atlântico”, que até então unia as duas colônias criadas por Portugal, começou a se transformar em intransponível oceano. O Brasil consolidou-se como Estado monárquico apoiado pela elite escravista, capaz de impedir o fim da escravidão até 1888 – o último país do Ocidente a fazê-lo. Em Angola a escravidão seria oficialmente abolida 20 anos antes.
Portugal e Brasil faziam pequenas concessões destinadas a acalmar os britânicos, como leis que declaravam livres os recém-nascidos mas davam aos proprietários de suas mães o direito de exigir que trabalhassem até a maioridade para pagarem seus custos. Tratava-se de retardar ao máximo o fim do sistema escravista.
Sob crescente pressão britânica, em 10 de dezembro de 1836, em Portugal, o presidente do Conselho de Ministros, o liberal, Marquês de Sá da Bandeira assinou a lei que proibiu o tráfico de escravos em todos os territórios da Coroa e o uso de embarcações de bandeira lusitana para tal fim.
Marquês de Sá da Bandeira, liderança destacada nas disputas politicas portuguesas em meados do século XIX
Em 1854, Sá da Bandeira fez novo gesto, pondo fim ao uso de trabalhadores escravos em todas as instâncias do Estado, deixando o setor privado livre para mantê-lo. Em 1858, em mais uma jogada, o ministro determinou o fim da escravidão em todas as colônias luso-africanas – para 20 anos depois. Isso aconteceu em 29 de abril de 1878.
Nos anos seguintes a elite colonial branca e mestiça produziu uma série de artifícios legais para justificar o uso de trabalho servil, como o pagamento de indenizações, dívidas e, o mais usado dos argumentos, vadiagem. Empreendimentos públicos portugueses ou privados, em agricultura, mineração e construção civil estariam sempre ancorados em pagamentos de salários baixíssimos, próprios ao endividamento. A superexploração das populações nativas ocorreu até a eclosão das lutas de independência na África, na década de 1960.
As perspectivas imperiais com as quais os portugueses gostavam de sonhar não iam bem em meados do século XIX. A intensa disputa política no reino refletiu-se numa administração colonial irregular e sempre carente de recursos. Para piorar, as custosas expedições ao interior destinadas a construir fortalezas para marcar a ocupação terminaram com a retomada dessas terras pelos reinos atacados. E, perigo mais temido, a marinha britânica navega constantemente pela costa angolana.
Nos acordos do Congresso de Viena, o Reino Unido tomou a holandesa colônia do Cabo, aumentando seu domínio oceânico para controlar a passagem do Atlântico para o Índico e para a Índia. A presença britânica era uma ameaça e Portugal necessitava ocupar de forma efetiva as largas faixas desprotegidas de terras no litoral.
Forte português em Lobito, na região de Benguela. Durante séculos esses pequenos espaços simbolizavam a presença lusitana
Defender terras tão longínquas exigia tornar Angola rentável e, para isso, era fundamental combater o imenso contrabando. Além da ocupação da costa, era necessário avançar para o interior e encontras as rotas comerciais utilizadas nas distintas regiões. O plano dos colonizadores era subordinar os distintos chefes locais que poderiam ameaçar os fluxos comerciais nessas rotas internas por onde transitariam os novos produtos de exportação.
Os portos de Luanda e Benguela foram finalmente abertos às nações estrangeiras, apesar das taxas alfandegárias continuarem diferenciadas para portugueses e não-portugueses até 1863. As exportações triplicaram entre 1844 e 1848. Parte disso era o antigo contrabando passando agora pelas vias legais. Nos anos seguintes, o comércio nos portos de Ambriz, ao norte, e Moçâmedes, ao sul, também foi aberto a todas as nações.
As disputas de poder na metrópole, contudo, tornaram errática a aplicação dessa política. E, devido ao elevado nível de corrupção e oportunismo entre as autoridades portuguesas em Angola, inclusive entre o clero católico, havia intenso desvio de recursos.
Encontrar e explorar novos recursos era fundamental. Produtos naturais como o marfim, a cera de abelha e a goma ganharam importância, sem nunca se aproximarem das rendas derivadas da escravidão. O marfim obtido das presas dos elefantes tornou-se o mais importante deles. Em 1834, a coroa portuguesa abriu mão de seu monopólio sobre o comércio de marfim a fim de atrair comerciantes.
Muitos dos homens envolvidos com a busca de pessoas escravizadas nos pequenos mercados do interior voltaram-se para a nova atividade. A seu favor, esses sertanejos já conheciam inúmeras rotas e mantinham relações de comércio com as autoridades regionais. (No Brasil, os bandeirantes cumpriram papel similar).
“A aquisição de marfim em grande quantidade, para atender a demanda do litoral, exigia um comércio eficiente de longa distância. (…) Com essa penetração no interior atrás de marfim este produto acabou por levar o comércio sertanejo a abrir caminhos por onde, indiretamente, também acabaram passando outros produtos africanos.” (Vieira, As cartas do Dembo Caculo Cacahenda).
Apesar de algum crescimento das exportações, as rendas obtidas mal custeavam as expedições militares. No final do século XIX, outro produto nativo ganharia importância: a borracha.
O que Portugal chamava de “Angola” não era mais do que alguns entrepostos litorâneos, com destaque para Luanda. Ao norte, na área de entrada original, pelo Reino do Congo, desde o século XVII o enfraquecimento dos Manicongos deu aos portugueses a chance de ocupar o porto de Ambriz.
O porto de Luanda era o destino das rotas de comércio do “corredor do Cuanza”, que seguia para leste, acompanhando o rio Cuanza, até alcançar o rio Cassange (sentido NE/SE). Atravessando-o, encontrava-se o reino ambundu de Cassange, que criou permanentes dificuldades à passagem das caravanas portuguesas de escravos e marfim cujo destino era o império Lunda. Portugal decidiu submetê-los e foi à guerra (1850-1862), estendendo a autoridade colonial até as margens do rio Cuango. Mas a resistência local obrigou os portugueses a recuarem, restando-lhes o controle sobre uma área menor que no início do conflito.
Fonte: PÉLISSIER, Rene. História das campanhas de Angola, v.2 (apêndice de mapas)
Já na área de Benguela, mais ao sul, rotas exploratórias encabeçadas pelos sertanejos subiram para o planalto, entrando em terras Ovimbundo. A extensão territorial ocupada pelo povo ovimbundo e a capilaridade de suas relações vão torná-los importantes para o domínio português. Organizados em reinos beneficiados pela localização estratégica, exerceram papel importante como intermediários no tráfico de escravos, mão de obra que usavam amplamente, e depois com o marfim.
A cobrança de “direitos de passagem” é um exemplo do controle que as sociedades africanas mantinham sobre seus territórios e como o agente português precisava conhecer códigos e regras locais para ser aceito. O novo fluxo comercial trouxe vida novamente ao porto de Benguela. A fim de garantir o controle sobre essas rotas para o litoral, os portugueses ergueram o presídio de Catumbela, em 1838.
Ainda mais ao sul encontrava-se o quase esquecido porto de Moçâmedes, estabelecido desde 1785 para controlar o contrabando de escravos. Na década de 1840, o sertanejo João Francisco Garcia foi enviado para comandar a construção de um presídio, a Fortaleza de São Fernando de Namibe. Nessa época, um governo liberal tentou estimular uma política de colonização agrícola oferecendo apoio às famílias que se mudassem para Moçâmedes, sem sucesso.
O ideal da monocultura exportadora sustentada por mão de obra servil era divulgado pelos entusiastas da empreitada colonizadora para atrair colonos da metrópole
O verdadeiro impulso colonizador veio de terras brasileiras, mais precisamente de Pernambuco, província que vivia a Revolução Praieira de 1848, cuja bandeira era a abolição da escravidão. Duas centenas de luso-brasileiros decidiram viver em Angola, onde rapidamente instalaram um engenho de cana de açúcar. Com apoio do governo colonial plantaram cana e algodão para exportação e abriram estradas para a costa. Moçâmedes foi chamada de “celeiro agrícola” de Angola e foi elevada a vila em 1856.
A preocupação em garantir o povoamento em Moçâmedes e proteger os caminhos para o interior levou à construção do Forte de Huíla, em 1845, na área de Humpata. Outras expedições militares conseguiram avançar no território até o rio Cunene, estabelecendo pontos de ocupação em Humpata, Lubango e Chibia.
Aprendendo os caminhos para o interior, os portugueses chegaram ao rio Zambeze em meados do século XIX e, com grande surpresa, começaram a encontrar outros homens brancos. A disputa pela África já não estava restrita ao litoral.
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