UM DEFEITO DE LINGUAGEM

 

Demétrio Magnoli

22 de julho de 2024

Linguagem visual: Donald Trump circulou na Convenção Republicana de Milwaukee exibindo, orgulhoso, a bandagem na orelha ferida. O atirador que, por milímetros, não o matou no atentado de 13 de julho conseguiu o feito de converter o ex-presidente em herói cívico. Agora, a figura que atentou contra a democracia pode posar de ícone da política institucional.

Guerras sobre linguagem: logo depois do atentado, o senador J.D. Vance, nomeado vice na chapa de Trump, acusou a “linguagem de ódio” dos democratas pelo ato terrorista. O presidente-candidato Joe Biden dissera, dias antes, em chamada com doadores de campanha, que era hora de “colocar Trump no alvo”. A frase, obviamente figurativa, tornou-se repulsiva – e o obrigou a uma penosa retratação parcial.

No mês anterior ao atentado, a revista The New Republic, uma publicação tradicional, ideologicamente próxima à esquerda democrata, estampou na capa uma fusão das imagens de Trump e Hitler. A “redução a Hitler” é um truque propagandístico vulgar e intelectualmente desabonador. Os republicanos não pensaram duas vezes antes de apontar aquela capa como uma conclamação à violência política.

Na forma como foram feitas, as acusações republicanas carecem de sentido – e não apenas porque a linguagem odienta popularizou-se na cena política dos EUA justamente a partir do movimento MAGA (Make America Great Again), de Trump.

O atirador, ao que indicam as investigações, era um “lobo solitário”. Os “lobos solitários”, mostram incontáveis estudos, agem por motivos irracionais. Seus impulsos assassinos derivam de fracassos pessoais, crises familiares ou amorosas, intensa solidão, desequilíbrio psíquico, uma incontida vontade de reconhecimento público. Não precisam de frases tortas de lideranças políticas ou de excessos oriundos de veículos de imprensa.

Mas os republicanos souberam capturar o momento. O Trump de punho erguido e rosto ensanguentado das fotos do atentado foi alçado à condição de vítima do ódio político. A ironia não poderia atingir um ápice maior: repentinamente, o líder que se refere a centenas de milhares de imigrantes como assassinos e estupradores, semeando uma cultura de criminosa hostilidade, inverteu o jogo da vitimização.

Contudo, no debate sobre a linguagem que eclodiu nos EUA, há mais que simples farsa. A política é feita, essencialmente, de palavras – o que a distingue da guerra. Quando essas palavras movem-se na sintaxe da guerra, a democracia corre perigo.

 

A linguagem do excesso

Na Convenção Republicana, militantes vendiam camisetas estampadas com a reação de Trump à tentativa de assassinato

Num passado recente, debates presidenciais nos EUA eram exercícios pontuados por duros intercâmbios retóricos, mas conduzidos sob a regra da civilidade. Os candidatos cumprimentavam-se, referiam-se ao adversário pelo nome ou pelo cargo que ocupavam, admitiam a hipótese legítima da ascensão do outro à Casa Branca.

O advento de Trump mudou, radicalmente, o cenário. O debate tornou-se um exercício de pugilato, marcado por trocas de insultos. A linguagem envenenou-se pela noção, típica de regimes autoritários, do “inimigo do povo”. Dos dois lados da divisória política e partidária.

A frase infeliz de Biden sobre colocar Trump “no alvo” trafega pela metáfora do tiro. A capa da The New Republic viola a mais básica objetividade jornalística. A normalização do discurso político odiento disseminou-se tanto que, nos idos de 2016, o jovem senador republicano J.D. Vance, à época inimigo jurado de Trump, indagou se o então pré-candidato de seu partido não seria o “Hitler americano”.

A linguagem dos políticos não fabrica “lobos solitários”. Entretanto, molda uma cultura política de aceitação da violência. A prova encontra-se em uma pesquisa de opinião pública realizada nos EUA um mês antes do atentado contra Trump.

São números assustadores. Um décimo dos americanos, ou mais de 33 milhões de pessoas, concordam com a ideia de uso da força para impedir a chegada de Trump à Casa Branca – e, talvez pior, outros quase 24% são ambivalentes ou não têm opinião sobre o assunto. Na direção oposta, o uso da força para elevar Trump à presidência é admitido por quase 7% – e mais de 22% são indiferentes diante disso.

 

Terrorismo estocástico

Há imensa distância entre oferecer uma resposta a um pesquisador e atirar num candidato presidencial. Mas existe uma relação indireta entre a cultura da violência política e a violência política real.

Terrorismo estocástico é, segundo um especialista, “uma relação quantificável entre atos aparentemente fortuitos de terrorismo e a retórica demonizadora no discurso público, acompanhada por catastrofismo e fabricação do pânico em fontes da mídia”. Dito de outro modo. Se alguém é odiado por cem pessoas, a probabilidade de se tornar alvo de um atentado terrorista é muito diminuta. Contudo, se o ódio é compartilhado por milhões de pessoas, a probabilidade aumenta geometricamente.

O que fazer, então, diante de lideranças tóxicas aos direitos humanos e às instituições democráticas, como é o caso de Trump? A resposta não é tão complexa: basta dizer a verdade, apoiada em fatos e argumentos, sem recorrer a hipérboles destinadas a provocar pânico.

Trump não é Hitler, mas comanda um movimento político extremista que contesta a democracia americana, como ficou comprovado nas eleições de 2020. Trump não é o nazismo e não instituirá campos de extermínio, mas difunde bárbara hostilidade contra imigrantes. São razões suficientes para votar contra ele – não para assassiná-lo.

 

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