OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

 

 

A proteção à criança é tema com imenso potencial mobilizador na política contemporânea. Contudo, é tema bem recente. Se a Convenção sobre os Direitos da Criança aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em 1989 – é até hoje o documento internacional com o maior número de adesões entre os Estados membros da instituição, menos de um século antes a criança basicamente não existia para além do direito de família. Cuidar dos desvalidos era uma atividade relacionada à caridade religiosa, não um tema político.

Antes do surgimento das vacinas e dos métodos contraceptivos, a partir do século XIX, a infância não era uma fase legalmente protegida, como acontece hoje. Nos mortais primeiros anos de vida, as crianças passavam um tanto despercebidas pelos adultos. E sempre havia outros filhos demandando atenção.

Também não era estranho que mãe e pai tivessem filhos e filhas preferidos, que recebiam mais afeto e investimento social. Demandas igualitárias são, historicamente, recentes.

Philippe Ariès, um premiado historiador autodidata, escreveu História Social da Criança e da Família, no qual analisa, ao longo do tempo, como surgiram e como foram sendo construídas pela percepção social o que ele chamou de “as idades da vida”. Analisando imagens e documentos de diferentes épocas, Áries demonstra que a infância e a adolescência são fenômenos “recentes”. Essas “idades de vida” passaram a ser identificadas como fases distintas do que se chamava “juventude” por volta dos séculos XIX (a infância) e XX (a adolescência).    

Trabalho infantil na revolução industrial

A superexploração do trabalho infantil a partir da industrialização provocou reações na sociedade civil em defesa dos menores

Tal processo de diferenciação das “idades da vida” expressava, segundo o autor, um nítido recorte de classe social. Nas famílias mais pobres, as crianças começavam a participar do mundo do trabalho desde muito pequenas, o que as inseria nos ambientes da vida adulta desde cedo. Já os filhos da aristocracia e da alta burguesia eram tratados em conformidade com a opinião de moralistas, filósofos e religiosos, que recomendavam separar as crianças, consideradas imaturas, do convívio com o mundo bruto dos adultos.

Era preciso resguardar essas crianças, física, mental e espiritualmente. E foi este um dos primeiros papéis das escolas: um lugar apartado do mundo adulto e do mundo do trabalho.

A expansão da produção de riquezas promovida pela industrialização caminhou junto com a universalização do ensino para meninos e meninas. A revolução médica e sanitária, derivada da rápida urbanização, trouxe as vacinas e as práticas de boa higiene, responsáveis por derrubar as taxas de mortalidade infantil. O planejamento familiar começou a entrar na pauta, trazido pelo nascente movimento feminista.   

Nesses novo tempos, as crianças se tornaram “patrimônio social” e “futuro da nação”. E o Estado legislador foi se tornando “parceiro” na criação dos filhos, por meio de leis destinadas a garantir que pais e tutores agissem de acordo com o que especialistas, médicos e professores recomendam.

A violência das guerras do século XX obrigou os Estados Nacionais a cuidarem de milhares de órfãos. A partir de então, os Estados passaram a promover tratados e convenções internacionais destinados à proteção da infância e adolescência.

           

Salvem as crianças!

A britânica Eglantyne Jebb (1876-1928) foi uma das pioneiras a trazer a questão da proteção das crianças e adolescentes para o espaço da política institucional. Testemunha das durezas trazidas pelas novas sociedades industriais e, especialmente, dos efeitos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) sobre os pequenos, a senhorita Jebb dedicou-se a chamar a atenção para a necessidade de evoluir das ações assistenciais a um entendimento mais comprometido com a causa, mais duradouro.

Eglantyne Jebb

Eglantyne Jebb

Em 1919, Eglantyne e sua irmã Doroty fundaram a organização Save the Children para pressionar o governo britânico a suspender o bloqueio naval que afetava as já derrotadas Alemanha e Áustria-Hungria, agravando a fome do povo e, ainda mais, das crianças. Em seguida, com a Revolução Russa e a guerra civil na Rússia (1917-1921) gerando ondas de emigração e deslocamento interno, elas comandaram uma operação imensa para arrecadar doações e enviar ajuda às famílias russas. A Save the Children estabeleceu um fundo de doações e logo tornou-se respeitada internacionalmente.

A preocupação organizacional levou a senhorita Jebb a elaborar um texto sucinto sobre os direitos da criança que dizia: “à criança devem ser concedidos os meios necessários para o seu desenvolvimento normal, tanto material como espiritual. A criança que tem fome deve ser alimentada, a criança que está doente deve receber os cuidados de saúde necessários, a criança que está atrasada [em seu desenvolvimento] deve ser ajudada, a criança delinquente deve ser recuperada, e o órfão e a criança abandonada devem ser protegidos e abrigados. A criança deve ser a primeira a receber o socorro em tempos de crise ou emergência. À criança devem ser dadas todas as ferramentas para que ela se torne capaz de se sustentar, e deve ser protegida contra toda forma de exploração. A criança deve ser criada na consciência de que seus talentos devem ser colocados a serviço de seus semelhantes.” (Fonte: Elifas Andreato, Almanaque Brasil, janeiro de 2003).

A carta de Jebb orientou a Liga das Nações a redigir o primeiro documento internacional dedicado à proteção da infância, a Declaração dos Direitos da Criança ou Declaração de Genebra, de 1924. O documento enuncia que a “humanidade” deve zelar pelas crianças “independente de raça, nacionalidade ou credo”. Elas devem ser tratadas com prioridade e ter acesso a condições favoráveis para se desenvolverem.

 

O reconhecimento jurídico da infância

Crianças em torno do texto da DUDH

Encerrada a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a recém-criada Organização das Nações Unidas aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nela, a infância – entendida como um período de imaturidade física e psíquica – é tratada como um “direito humano” da criança, que deve ser retirada do mundo adulto do trabalho.

O artigo 25 da Declaração faz referência direta às crianças:

“1. Todo homem deve ter um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar, incluindo alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis.

2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.”

No mesmo espírito, houve grande mobilização pela criação de um fundo internacional dedicado a ajudar as crianças órfãs e em situação de risco deixadas pela guerra mundial. O Fundo de Emergência das Nações Unidas para as Crianças (Unicef) nasceu assim, em dezembro de 1946. Oito anos depois, a Assembleia Geral decidiu que essa ação seria permanente e a sigla Unicef passou a significar Fundo das Nações Unidas para a Infância.

 

O Dia Internacional da Criança

Nos anos seguintes, por intermédio da ONU, representantes da sociedade civil, trataram de aprofundar a defesa dos direitos humanos listados pela Declaração de 1948, incluindo direitos específicos para as crianças e adolescentes.

Instaura-se, porém, a Guerra Fria, e as divergências se multiplicavam no interior dos comitês de trabalho. Ainda assim, em 20 de novembro de 1959, a Assembleia Geral aprovou a Declaração dos Direitos da Criança, documento de caráter recomendatório. Isso significa que os Estados se comprometem a seguir as orientações destinadas a promover políticas consideradas adequadas ao desenvolvimento das crianças. Mas não é uma obrigação, é uma sugestão.

Na mesma data foi instituído o Dia Internacional da Criança, comemorado em 20 de novembro. As ações promovidas na data visam a educar as sociedades para as especificidades e cuidados necessários para com as crianças.

A Declaração dos Direitos da Criança mantinha o entendimento básico da criança como um ser incompleto, sem plena autonomia e, portanto, dependente de cuidados. O texto do documento cobrava a universalização da educação gratuita e obrigatória para meninas e meninos; a necessidade de protegê-los da negligência, crueldade, exploração e discriminação, independentemente de raça, gênero, religião ou etnia.

 

Direitos humanos de “segunda geração”

A bipolaridade da Guerra Fria se refletiu nas interpretações dadas por URSS e EUA aos temas de direitos humanos.

Alfabetização de meninos no Yemen

A educação é uma das ferramentas fundamentais para a promoção do desenvolvimento digno das crianças e adolescentes

O bloco capitalista privilegiava os direitos civis e políticos herdados da tradição liberal-iluminista, como a liberdade de ir e vir ou a liberdade de crença religiosa (exatamente as inexistentes nos países socialistas). Em contrapartida, o bloco socialista preconizava os direitos sociais e econômicos, falando em direito ao trabalho e erradicação do analfabetismo, por exemplo (problemas crônicos do Ocidente).

Nas décadas de 1960 e 1970, o ingresso de praticamente uma centena de países na ONU, oriundos dos movimentos de descolonização em África e Ásia e classificados como “subdesenvolvidos” ou do “Terceiro Mundo”, ajudou a fortalecer a defesa dessa nova “família” dos direitos humanos. Na linguagem dos especialistas, surgiam as expressões “direitos de primeira geração” (civis e políticos) e “direitos de segunda geração” (sociais, econômicos e culturais).

Na ONU, a disputa ideológica foi contornada pela decisão de elaborar dois pactos internacionais em separado, um para cada “geração”. O objetivo continuava a ser garantir a implementação dos direitos esboçados na Declaração Universal de 1948, dessa vez por meio de obrigação jurídica vinculante para os Estados signatários. Foram necessárias duas décadas de debates até que se atingissem consensos mínimos.

 

Os Pactos de 1966

Em 16 de dezembro 1966 a Assembleia Geral aprovou o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. Nele, os Artigos 23 e 24 tratam especificamente dos direitos da família e da criança. A essa se reconhece o direito de obter personalidade jurídica a partir do nascimento, por meio de registro civil obrigatório e atribuição de uma nacionalidade. Nenhum tipo de discriminação será admissível.

Como se pretendia, o Pacto dos Direitos Civis e Políticos impõe aos Estados aderentes a obrigação de “tomar as providências necessárias”, inclusive de natureza legislativa, para “garantir a todos os indivíduos que se encontrem em seu território e que estejam sujeitos à sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente pacto”, explica o professor Benigno Núñez Novo.

Unicef_Philippines_1956

Imunização infantil nas Filipinas realizada pela Unicef, em 1956

 Já o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, também aprovado em 1966, declara, no seu décimo artigo:

“1. Deve-se conceder à família, que é o núcleo natural e fundamental da sociedade, a mais ampla proteção e assistência possíveis, especialmente para a sua constituição e enquanto ela for responsável pela criação e educação dos filhos. O matrimônio deve ser contraído com o livre consentimento dos futuros cônjuges.

2. Deve-se conceder proteção especial às mães por um período de tempo razoável antes e depois do parto. Durante esse período, deve-se conceder às mães que trabalham licença remunerada ou licença acompanhada de benefícios previdenciários adequados.

3. Deve-se adotar medidas especiais de proteção e assistência em prol de todas as crianças e adolescentes, sem distinção alguma por motivo de filiação ou qualquer outra condição. Deve-se proteger as crianças e adolescentes contra a exploração econômica e social. Será punido por lei o emprego de crianças e adolescentes em trabalho que lhes seja nocivo à moral e à saúde, ou que lhes faça correr perigo de vida, ou ainda que lhes venha prejudicar o desenvolvimento normal. Os Estados devem também estabelecer limites de idade, sob os quais fique proibido e punido por lei o emprego assalariado da mão-de-obra infantil.”

Contudo, ao contrário de seu par, o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais não apresenta caráter jurídico vinculante, sendo apenas um documento recomendatório, que estimula os países a promoverem ações institucionais por decisão própria.

 

Os “Direitos da Criança”

A fim de celebrar os 20 anos da Declaração dos Direitos da Criança, a ONU lançou o Ano Internacional da Criança, em 1979, como uma tentativa de chamar a atenção da comunidade internacional para os dramas que envolviam crianças por todo o mundo. Também decidiu-se pela redação de um novo tratado internacional, a Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada em 1989.

Como pano de fundo, uma ordem mundial em mudança após a queda do Muro de Berlim, na qual líderes globais anunciavam a “Nova Ordem Mundial”. Foi com esse olhar otimista que os chefes de Estado da maioria dos países do mundo rapidamente aderiram à Convenção, o tratado de direitos humanos mais amplamente ratificado da história.

Entre os direitos garantidos destacam-se o direito à vida, à não discriminação, à saúde, à educação, à posse de identidade, à liberdade de pensamento, consciência e religião, ao lazer, bem como a proteção contra violência e abusos ou exploração. Esse documento é visto como um marco porque reconhece direitos fundamentais a serem garantidos com prioridade absoluta às crianças em todas as fases de seu desenvolvimento.

A Convenção deu origem ao Comitê dos Direitos da Criança, um grupo de trabalho cuja finalidade é monitorar a aplicação dos princípios e direitos reconhecidos pela ONU, atuando em diferentes comitês de forma transversal, como ocorre no Comitê para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres ou no Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial.

Selo comemorativo do ano internacional da criança, lançado no Butão em 1979

Selo comemorativo do ano internacional da criança, lançado no Butão em 1979

 

A Doutrina de Proteção Integral

A Convenção tornou os Estados juridicamente responsáveis pela realização objetiva das condições para que os direitos da criança e do adolescente. A infância é definida como o período até os 18 anos, ou outro marco legal definido pelos Estados de acordo com costumes locais.

Criança discursa na Assembleia Geral da ONU em 2020

Criança discursa na Assembleia Geral da ONU em 2020. As crianças têm direito ao respeito por sua opinião 

Um novo paradigma passou a organizar o debate: crianças e adolescentes não são “objetos” que pertencem a seus pais, por quem as decisões são tomadas, nem são “adultos incompletos”. São indivíduos com especificidades e seus próprios direitos.

Essa doutrina agrega o respeito à opinião da criança ao rol de direitos da criança e do adolescente, contrapondo-se a qualquer situação que resulte na sua exclusão social e enfatizando a proteção prioritária à infância.

A interpretação tradicional da falta de domínio das crianças e adolescentes sobre si mesmas foi substituída pela noção de responsabilidade solidária, ou seja, de que Estados e sociedades devem se moldar às necessidades e particularidades da criança, contribuindo para o seu desenvolvimento integral. É a chamada Doutrina de Proteção Integral.

As crianças refugiadas, as de origem estrangeira, as crianças pertencentes a grupos autóctones ou minoritários devem ter os mesmos direitos que todas as outras.  As crianças com deficiência devem ter as mesmas possibilidades que todas as demais.

 

Declarações ao vento

Ainda envolvidos pelo clima de grande conciliação propiciado pelo fim da Guerra Fria, em 30 de setembro de 1990, 71 presidentes e chefes de Estado se reuniram na sede da ONU, em Nova York, e assinaram a Declaração Mundial sobre o Direito à Sobrevivência, Proteção e Desenvolvimento da Criança assumindo o compromisso de promover a aplicabilidade das normas em benefício da proteção infanto-juvenil.

Há 24 anos esses líderes políticos reconheceram:

“4. Todos os dias um número incontável de crianças no mundo inteiro estão expostas a perigos que dificultam seu crescimento e seu desenvolvimento. Elas sofrem profundamente, vitimadas pela guerra e pela violência, pela discriminação racial, pelo “apartheid”, pela agressão, pelas ocupações e anexações estrangeiras; como crianças refugiadas, forçadas a abandonar seus lares e suas raízes; como deficientes; ou como vítimas da negligência, da crueldade e da exploração. 

5. Todos os dias, milhões de crianças sofrem os flagelos da pobreza e da crise econômica, da fome, da falta de um lar, de epidemias e de analfabetismo, da degradação do meio ambiente. Sofrem os graves efeitos dos problemas do endividamento externo e da estagnação do crescimento econômico sustentado e sustentável em muitos países em desenvolvimento, particularmente naqueles menos desenvolvidos.

6. Todos os dias, 40 mil crianças morrem de desnutrição e de doenças, incluindo a AIDS, de falta de água limpa e saneamento adequado, e dos efeitos das drogas.” [dados de 1990].

24 anos depois, pouca coisa mudou.

CAPA_crianças soldado brincando (Unicef)

Crianças-soldado brincando… Apesar das declarações de boas intenções, os Estados ainda não conseguiram proteger as crianças e garantir seus direitos

 

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