TEMOR DE LIMPEZA ÉTNICA PAIRA SOBRE NAGORNO-KARABAKH

 

Elaine Senise Barbosa

25 de setembro de 2023

           

Na terça-feira passada, 19 de setembro, o Azerbaijão rompeu o cessar-fogo estabelecido com a Armênia desde 2020. A operação militar garantiu-lhe uma rápida vitória na região disputada de Nagorno-Karabakh, situada em território azeri mas historicamente habitada por armênios. Os dados de 2023 indicam 120 mil habitantes na região, basicamente armênios.   

A história dos armênios nas altas montanhas (nagorno) de Karabakh, no Cáucaso, remonta a séculos antes de Cristo. Mas as divisões territoriais-administrativas (oblast) do período em que Armênia e Azerbaijão pertenciam à URSS colocaram Nagorno-Karabakh no território do Azerbaijão, um estatuto reconhecido internacionalmente. Essa circunstância geopolítica desencadeou uma disputa sangrenta baseada na crença de que a convivência entre diferentes etnias é impossível. É o que ocorre quando se invoca coisas como “sangue” ou “cultura” para definir nacionalidades e cidadanias. Eis a ideologia que molda as guerras étnicas.

Há um ponto onde as fronteiras da Armênia e de Nagorno Karabakh estão muito próximas e são ligadas por uma estrada com menos de dez quilômetros, o Corredor de Lachin. Foi pelo bloqueio sistemático desse corredor, desde o ano passado, que o Azerbaijão criou crise humanitária entre os armênios do enclave. O bloqueio militar dificultou a chegada de alimentos e remédios e o acesso a tratamentos médicos. Também impôs constrangimentos contra civis, pela instalação de alto-falantes que emitiam mensagens ameaçadoras.

Mapa-Nagorno-Karabakh

As agências humanitárias estão acompanhando a situação, criada pelo triunfo militar do Azerbaijão, que impôs a rendição dos separatistas armênios do enclave. Há o justificado temor de limpeza étnica, um crime que já foi cometido pelos dois lados, em diferentes momentos.

E como reagirá Moscou, supostamente dona do tabuleiro e fiel da balança na região? Essa é uma parte crucial da equação, pois a Rússia está ocupada com sua guerra imperial na Ucrânia e os acontecimentos da última semana sugerem um imprevisto enfraquecimento da potência na geopolítica do Cáucaso.

 

Antes da URSS

A disputa territorial entre azeris e armênios desenvolveu-se no século XIX, quando a Ásia Central começou a se dividir em fronteiras nacionais. Mas foi encoberta, durante quase um século, após a Revolução Bolchevique alcançar o Cáucaso e configurar a URSS.

A desintegração da União Soviética, em 1991, mostrou que os velhos nacionalismos e conflitos entre religiões continuavam lá. O Estado soviético deu lugar a 15 repúblicas no interior  das quais minorias étnicas viram-se subitamente espoliadas de cidadania e transformadas da noite para o dia em “estrangeiros” e “inimigos”. 

civil armenia com fuzil

Uma octagenária armênia tenta proteger a si mesma e à sua casa. A foto é de 1990 e mostra a longevidade dos nacionalismos xenófobos. O olhar dela revela o espanto de quem já viu horrores

A Armênia, identificada pelo cristianismo ortodoxo com a Rússia, reafirmou seus laços históricos com Moscou, que foram petrificados após o genocídio armênio de 1915. Por outro lado, o Azerbaijão, habitado por uma maioria de turcos étnicos e muçulmanos, perfilou-se com a Turquia, rival história da Rússia no Mar Negro. 

A Armênia faz parte de uma aliança de defesa mútua com a Rússia. Contudo, já bastante enrascado na Ucrânia, Vladimir Putin tem pouco campo de manobra para intervir na região. De um lado, faltam-lhe recursos militares. De outro, o Kremlin não quer gerar atritos com o líder turco Recep Erdogan, cuja neutralidade na questão da guerra na Ucrânia é um ativo precioso para Moscou.

 

A nação como sangue

As duas repúblicas do Cáucaso entraram em conflito direto em 1994, com o ataque vindo da Armênia. A vitória assegurou aos armênios de Karabakh o controle sobre o enclave e mais sete distritos no entorno. Na época, aproximadamente meio milhão de azeris foram obrigados a deixar suas casas. 

O dinheiro do petróleo e do gás inverteu a relação de forças. Em 2020, valendo-se do isolamento mundial provocado pela pandemia de Covid-19, o Azerbaijão desencadeou uma forte ofensiva, retomando as áreas perdidas e parte de Nagorno-Karabakh. Em 44 dias de guerra, morreram quatro mil jovens armênios. Então, 20 mil armênios étnicos foram expulsos de suas casas. O cessar-fogo foi negociado por Moscou, com a interposição de uma força de paz russa de cerca de 2 mil homens, reduzida agora a 1,6 mil e acusada pelos armênios de pouco fazerem para protegê-los.   

CAPA-NagornoKarabakh_

Da direita para a esquerda, os chanceler do Azerbaijão, da Rússia e da Armênia assinando o cessar-fogo em 2020. Na época, Moscou ainda dava as cartas

Finalmente, na semana passada, o exército azeri iniciou uma operação militar “antiterror”, exigindo que o autoproclamado governo autônomo local hasteasse bandeira branca e entregasse as armas, dissolvendo o que o governo de Baku classifica como um “regime ilegal”. Sem perspectiva de receber ajuda da militar da Armênia, o governo do enclave capitulou em 24 horas e começou a entregar as armas.

O ataque surpresa do Azerbaijão reflete a crença de que apenas a guerra pode resolver a disputa. O governo de Baku tem afirmado que os armênios de Karabakh nada tem a temer e podem permanecer na região, agora sob soberania do Azerbaijão, ou partir para a Armênia, se desejarem.

Nada indica que as forças oficiais do Azerbaijão estejam preparando uma limpeza étnica. Contudo, ninguém se surpreenderá se a expulsão dos armênios decorrer de intimidações organizadas por grupos paramilitares.    

 

Ecos da Ucrânia

Para as autoridades europeias preocupadas com a interrupção de fornecimento de gás russo, o Azerbaijão apareceu como uma das alternativas de importação. As exportações de gás e petróleo fortaleceram econômica e politicamente o presidente Ilham Aliyev e contribuíram indiretamente para a ação militar.

No lado oposto, o primeiro-ministro armênio, Nikol Pashinyan, procura cautelosamente, desde 2018, modernizar o país e reduzir a dependência em relação à Rússia. O afastamento foi acelerado pela invasão russa da Ucrânia e expresso no voto de abstenção da Armênia diante da resolução da ONU que condenou a Rússia. Nos últimos dias, os armênios estão reclamando da falta de ação das forças russas para garantir o cessar-fogo. Há, inclusive no governo, vozes que acusam uma retaliação de Putin.

Ilham Aliyev

O presidente azeri, Ilham Aliyev, em uniforme militar, perfila-se à tropa. Seu governo fala em respeitar os direitos humanos dos armênios de Karabakh, mas as ações dos últimos meses despertam fortes suspeitas

A oportunidade não foi desperdiçada pelo presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, que ofereceu ajuda à Armênia e mediação no conflito com o vizinho azeri. Michel é visto pelas duas partes como um mediador mais honesto do que Moscou e tem obtido resultados mais consistentes. Por enquanto, conseguiu estabelecer uma agenda de negociações sobre temas preliminares, como a libertação de prisioneiros e a troca de informações sobre campos minados.

 

A paz depende de novas atitudes

A operação militar do Azerbaijão, obtendo rápida rendição, foi acompanhada de declarações lacônicas do primeiro-ministro armênio, que deixou claro não pretender deflagrar uma nova guerra. Ato contínuo, nacionalistas armênios ocuparam as ruas da capital, Yerevan, para protestar contra Pashinyan e pedir sua renúncia.

O chefe de governo armênio chegou ao poder comprometido em reformar o Estado e desenvolver o pequeno país, ao contrário de seus antecessores, oriundos de Karabakh e obcecados pelo tema do conflito étnico. Em abril, Pashinyan afirmou, em discurso ao parlamento: “A questão de Karabakh não é uma questão de território, mas de direitos”.

Ele tem razão. Do ponto de vista dos direitos humanos, o que interessa não é contestar a soberania do Azerbaijão sobre Karabakh, mas garantir a segurança, as liberdades e os direitos de cidadania dos armênios da região. Resta, porém, saber para que lado penderá a maioria da população, porque o nacionalismo étnico é uma doença arraigada, que ressurge como pústulas.

O poder de fato está, de agora em diante, com o governo do Azerbaijão. Seu dever internacional é oferecer segurança e conceder cidadania e direitos de minoria nacional aos armênios de Nagorno-Karabakh. Um primeiro passo: impedir a expulsão dos habitantes da região por grupos nacionalistas que fazem da religião e do “sangue” suas bandeiras políticas.  

  

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