Placa em memória aos judeus presos no Velódromo de Inverno, em Paris, em julho de 1942
“Se houve responsáveis, eram aqueles no poder na época, não a França”. A declaração de Marine Le Pen, líder da Frente Nacional (FN), é de 9 de abril de 2017, pouco antes do 1º turno da eleição francesa que catapultou Emmanuel Macron à presidência. Ela se referia à captura policial de 13.152 judeus em Paris, em 16 de 17 de julho de 1942, que acabariam no campo da morte de Auschwitz. A frase ilumina a difícil marcha de “normalização” de seu partido político.
A FN foi fundada em 1972, como expressão da ultradireita francesa, por Jean-Marie Le Pen, pai de Marine, antigo soldado da Legião Estrangeira na Indochina e organizador político dos veteranos das forças coloniais francesas na Argélia. As raízes ideológicas do partido situam-se no solo do poujadismo, um movimento dirigido por Pierre Poujade para defender a manutenção do poder colonial no Magreb africano. Contudo, no tóxico caldo de cultura da FN misturavam-se a nostalgia do regime de Vichy com a negação histórica do Holocausto.
A cidade de Vichy foi a sede do governo do marechal Philippe Pétain, que colaborou com os ocupantes nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Explicando sua declaração de 2017, Marine Le Pen insistiu na ideia de que o regime de Vichy “não era a França” – e que o legítimo governo francês encontrava-se exilado em Londres, sob o comando do general Charles de Gaulle. Um ano mais tarde, o nome original do partido foi substituído pelo atual Reunião Nacional (RN).
A FN figurou como partido marginal, quase insignificante eleitoralmente, durante sua primeira década. Contudo, nas eleições presidenciais francesas de 1988, Jean-Marie Le Pen obteve mais de 14% dos votos e, em 2002, conseguiu disputar o 2º turno, quando foi fragorosamente batido por Jacques Chirac (82% a 18%).
A decepção eleitoral de 2007 assinalou o fim de seu ciclo. Menos de quatro anos depois, sua filha assumiu a liderança da FN e iniciou uma operação destinada a moderar as posições partidárias. Nesse processo, em 2015, após uma controvérsia sobre a negação do Holocausto, Jean-Marie foi expulso do partido que fundou.
A “normalização” funcionou. Nas eleições presidenciais seguintes, Marine ampliou o eleitorado do partido, disputando o 2º turno em 2017 e, novamente, alcançando o turno final nestas presidenciais de 2022.
Na marcha ideológica da ultradireita à direita nacionalista, Marine rompeu com os dogmas de natureza fascista de seu pai. Separou-se da nostalgia do regime de Vichy e repudiou o negacionismo do genocídio nazista. O novo discurso, coroado com a expulsão de Jean-Marie e a mudança de nome do partido, assenta-se nos pilares do Estado protetor e, sobretudo, da xenofobia.
Desde a campanha de 2017, e com maior ênfase em 2022, Marine concentra-se no populismo social, apelando aos eleitores da classe média baixa das pequenas cidades do leste e do sul. Paralelamente, mantém o discurso anti-imigrantes que está nas origens do partido. Por essas vias, conseguiu conectar a RN às correntes principais da direita nacionalista europeia.
A palavra “soberania” tem especial destaque na política da RN. Por meio dela, desenrola-se a fábula nativista segundo a qual a França é vítima de uma inundação de imigrantes que ameaça sua identidade, sua cultura, seu modo de vida e os empregos de seus cidadãos.
Durante as décadas do pós-guerra, a política francesa organizou-se ao redor de três eixos ideológicos: a centro-direita, os social-democratas e os comunistas. A força da RN deriva da conquista parcial de antigas bases eleitorais comunistas e, mais recentemente, de avanços entre os eleitores de centro-direita.
O Partido Comunista Francês (PCF) entrou em crise com a queda do Muro de Berlim, em 1989, transformando-se em agremiação marginal. Desde a década de 1990, parcela significativa de seu eleitorado, concentrado no velho cinturão industrial do norte e leste franceses, migrou para a FN.
Charles de Gaulle (à direita, ao lado de Winston Churchill), líder do governo francês no exílio, em Londres, 1941
O núcleo da centro-direita era formado pelos seguidores de De Gaulle, agrupados na Reunião pela República (RPR), hoje rebatizada como Republicanos. Nas presidenciais de 2002, o gaullista Chirac bateu implacavelmente Jean-Marie Le Pen. Contudo, o sistema político francês entrou em convulsão em 2017, com o triunfo do centrista Emmanuel Macron, que capturou a maioria dos eleitores social-democratas e parte relevante dos eleitores da centro-direita. No turno final, Macron derrotou Marine Le Pen por margem avassaladora (66% a 34%).
A novidade é que a tradicional base gaullista, como aconteceu antes com os eleitores social-democratas, abandona suas lideranças históricas. Em 2012, o gaullista Nicholas Sarkozy obteve 27% dos votos no turno inicial, perdendo o turno final para o social-democrata François Hollande. Em 2017, o gaullista François Fillon obteve 20% dos votos no 1º turno, ficando de fora da disputa decisiva. No turno inicial de 2022, a gaullista Valérie Pécresse não alcançou 5% dos votos.
Os votos gaullistas fragmentaram-se, engrossando a abstenção ou rumando a outros candidatos conservadores. A RN reformada capturou parcela significativa desse eleitorado. Quando Marine Le Pen repudia o regime de Vichy e aponta no governo do exílio de De Gaulle a “França verdadeira”, ela persegue um reposicionamento estratégico de seu partido. É por isso que a direita nacionalista converteu-se em alternativa viável de poder na França.
Marine Le Pen acostumou-se a derramar elogios a Vladimir Putin e, em 2014, seu partido obteve um empréstimo em condições excepcionalmente vantajosas de um banco que orbita em torno do Kremlin. A aliança com Putin, um traço comum a diversos partidos da direita nacionalista europeia, só foi deixada de lado na atual campanha eleitoral, após a invasão russa da Ucrânia. Tratava-se, claro, de não perder votos de franceses horrorizados diante da barbárie.
Marine Le Pen, o novo rosto do nacionalismo xenófobo na França
A reforma ideológica conduzida por Marine Le Pen abrange o tema da União Europeia. O partido de Jean-Marie queria extrair a França do bloco europeu; a atual RN não pretende imitar o Brexit britânico e nem mesmo almeja uma ruptura com o euro, a moeda comum europeia. Nesse ponto, a RN segue o rumo de partidos nacionalistas irmãos, como os da Itália, da Hungria e da Polônia. Exatamente por isso, o perigo tornou-se maior, não menor: é como alternativa viável de poder que a líder direitista francesa ameaça, a partir de dentro, os princípios democráticos fundamentais da Europa.
Em 2014, pouco antes de sua expulsão da FN, Jean-Marie chegou a celebrar a epidemia do ebola, apontando-a como “solução” para os “problemas” do crescimento demográfico e da imigração. Marine não emprega a linguagem do pai, mas conserva a alma xenófoba do antigo partido. A sua “França soberana” é a “França de mil anos”, uma fortaleza gaulesa, católica e branca, que se fecha a imigrantes e refugiados.
A França opera, em parceria com a Alemanha, como motor da União Europeia. Uma eventual vitória de Marine no turno final da eleição presidencial lançaria o bloco europeu a uma crise ainda mais grave que a do Brexit. Mas, desde já, a sombra de uma RN capaz de, no segundo turno, conquistar os votos de mais de 40% dos eleitores empurra a política francesa um pouco mais para a direita, rumo à intolerância cultural e à exclusão.
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