Violações trágicas dos direitos humanos em experimentos médicos não se limitaram à Alemanha nazista. Nos EUA, há um caso que não deve ser esquecido.
Ernest Heldon tinha 96 anos de idade quando morreu em 2004, no estado do Alabama, nos EUA. Como centenas de milhares de cidadãos americanos de sua geração, ele combateu na Segunda Guerra Mundial. No entanto, a vida de Ernest foi marcada por outro episódio: sem saber, durante 40 anos, participou como “cobaia humana” em um dos mais perturbadores eventos da ciência médica mundial: o “Estudo Tuskegee da sífilis não tratada em homens negros”. E ele foi o último sobrevivente do grupo.
A sífilis é uma doença sexualmente transmissível, conhecida desde a Antiguidade e causada por bactérias da espécie Treponema pallidum. Quando não tratada, evolui por anos ou décadas, afetando órgãos genitais, pele e articulações, sistema nervoso e outros órgãos e sistemas, podendo causar a morte. Antes o surgimento das drogas antimicrobianas (principalmente a penicilina, na década de 1940), usavam-se o mercúrio, o iodo e o bismuto, com pouco sucesso.
O Estudo Tuskegee: racismo, zombaria dos direitos humanos e violação flagrante da ética médica
Na década de 1930, o Departamento de Saúde Pública do governo dos Estados Unidos decidiu investigar a evolução natural da doença. Para isso, recrutou 600 homens da localidade de Tuskegee (na cidade de Macon, estado do Alabama), todos negros e pobres, dos quais 399 tinham sífilis e 201 eram saudáveis (acompanhados para comparação). Entre eles estava Ernest Heldon.
Nenhum foi informado de que tinha ou não sífilis, nem sobre as possíveis consequências da doença. A contrapartida pela participação no programa foram benesses inimagináveis para a maioria da população negra da época: atendimento médico gratuito, transporte e uma refeição quente nos dias em que fossem examinados; para os que morressem, garantia-se o pagamento das despesas com o funeral e US$ 50 para as famílias que autorizassem a realização da necropsia. Informado, na época do estudo, de que tinha “sangue ruim”, Ernest Heldon disse em uma entrevista (em 2001) que imaginava até estar sendo beneficiado.
Entre 1932 e 1972, as “cobaias” foram acompanhadas periodicamente para avaliação das manifestações da doença; porém, mantidos sem tratamento. As instituições de saúde pública dos Estados Unidos, mesmo de outras localidades, receberam a relação dos participantes para garantir que não fossem medicados.
Mesmo depois de se difundir o uso da penicilina, o Departamento de Saúde Pública fez um enorme esforço para que nenhum deles recebesse o medicamento. A maioria dos infectados teve intenso avanço da sífilis; muitos apresentaram lesões irreversíveis do sistema nervoso; outros tantos morreram. Lembre-se de que o Código de Nuremberg tem a data de 1947.
No início do estudo, não havia tratamento antimicrobiano eficaz contra a bactéria. A inadequação ética inicial foi a omissão – para os homens e para as famílias – de informações sobre um diagnóstico conhecido e o prognóstico esperado. A omissão de informações foi seguida pela omissão do tratamento, a partir de quando este se tornou disponível. Os resultados do Estudo Tuskegee foram apresentados em congressos médicos e em dezenas de artigos em revistas especializadas sem receber crítica da comunidade científica.
Capa do The New York Times de 26 de julho de 1972
O projeto só foi interrompido depois de denunciado pela imprensa, em 25 de julho de 1972, quando o jornal The Washington Star publicou na primeira página uma reportagem intitulada: “Pacientes com sífilis morrem sem tratamento”. No dia seguinte, o The New York Times divulgou o caso, em um artigo que provocou forte comoção popular e pressões políticas incontornáveis. Todavia, a tragédia estava consumada: somente 74 homens estavam vivos; entre as suas esposas, 40 tinham sido infectadas; 19 crianças com sífilis congênita haviam nascido.
Em 1974, o governo pagou uma primeira indenização aos sobreviventes e às famílias dos falecidos, totalizando US$ 10 milhões; outras indenizações foram pagas até a década de 1990, somando perto de US$ 1 bilhão. Em maio de 1997, o então presidente americano Bill Clinton pediu publicamente desculpas, em nome do governo dos EUA, à comunidade de Tuskegee, aos sobreviventes (na ocasião, eram apenas oito), às viúvas e aos descendentes.
Nunca se soube da existência – pelo menos, nunca se localizou o documento – de um protocolo ou projeto de pesquisa que definisse as diretrizes e orientasse a realização do estudo. Os procedimentos simplesmente iam acontecendo, sem que alguém ou uma instituição de pesquisa assumisse formalmente a responsabilidade por eles.
“A sociedade é que deve pregar o regulamento na porta dos laboratórios. Assim como se diz que a guerra é assunto grave demais para ser decidido pelos generais, a ciência é perigosa demais para ser decidida apenas pelos cientistas.” (Steve Grebe, biólogo americano).
Cientistas que lidam com seres humanos enfrentam sérios dilemas éticos. Tomemos um caso frequente: o teste de eficácia de determinada droga. Após realizar experimentos com animais, um pesquisador decide testar a eficácia da substância no tratamento de uma doença humana. Dois grupos de pacientes são selecionados: o grupo experimental receberá a droga; o grupo controle não a receberá. Se há alguma convicção de que o novo medicamento pode curar a doença, pergunta-se: é justo que um grupo de pessoas não seja tratado, correndo o risco de sua doença se agravar?
Questões como essa são difíceis de serem respondidas. Universidades e laboratórios geralmente contam com comitês de ética que analisam se os experimentos propostos ferem os direitos básicos das pessoas e a legislação pertinente. Em caso negativo, os experimentos são consentidos, desde que os indivíduos que participem dos trabalhos como “cobaias humanas” o façam de forma voluntária e consciente. E em toda pesquisa envolvendo pessoas, deve prevalecer o critério de respeito à dignidade e à proteção de seus direitos e bem-estar, pesando-se os possíveis benefícios e riscos.
Ocorre que, passadas tantas décadas da divulgação do Código de Nuremberg, ainda não dispomos de mecanismos de controle totalmente eficientes, capazes de coibir procedimentos questionáveis do ponto de vista ético. São estarrecedores alguns casos divulgados pelo jornalista Solano Nascimento no jornal Correio Braziliense, em março de 2002: pacientes sabidamente hipertensos recebendo placebo, indução de ataque de asma em crianças e posterior administração de placebo, crianças com esquistossomose recebendo exclusivamente placebo e outros.
Pior: em todos os casos citados houve aprovação pelos comitês de ética de instituições de pesquisa e/ou de Universidades. Não basta, portanto, cumprir uma formalidade.
O primeiro documento brasileiro a tratar de questões éticas atinentes à prática da Medicina foi publicado em 1867, e consistia na transcrição do Código de Ética da Associação Médica dos EUA. Em 1929, durante o VI Congresso Médico Latino-Americano, foi lançado o Código de Moral Médica, substituído em 1931 pelo Código de Deontologia Médica.
O primeiro documento editado após o Código de Nuremberg foi o Código de Ética da Associação Médica Brasileira, de 1957, substituído pelo Código de Ética do Conselho Federal de Medicina, em 1964. O mais abrangente documento brasileiro referente exclusivamente à ética em experimentos com seres humanos é a Resolução 196 de 10 de outubro de 1996, que traz de forma clara os principais norteadores éticos dessas pesquisas:
O Código de Ética Médica vigente no Brasil (versão de 2019) também trata do tema, particularmente nos seguintes Capítulos, Artigos e Parágrafos:
“(…) a ciência é moldada pela sociedade porque se trata de uma atividade produtiva humana que toma tempo e dinheiro e, portanto, é orientada e guiada por essas forças num mundo que possui o controle do dinheiro e do tempo” (Richard C. Lewontin, Biologia como ideologia: a doutrina do DNA, FUNPEC Editora, Ribeirão Preto, 2001).
O zoólogo britânico Solly Zuckermann (1904-1993) já era mundialmente conhecido quando alguém lhe perguntou qual era sua reação quando, durante a leitura de um trabalho científico, se deparava com fórmulas matemáticas complexas. Sua desconcertante resposta foi: “simplesmente eu as ignoro”.
Pois algo parecido acontece com os médicos. Conforme atesta o cardiologista brasileiro José Nunes de Alencar Neto, no seu Manual de Medicina baseada em evidências (Sanar Saúde, Salvador, 2021), a maioria não entende o trabalho de pesquisadores, desconhece regras básicas de metodologia científica, não reconhece a importância de um experimento controlado (randomizado, duplo-cego, etc.), não lê criticamente papers nem sabe interpretar evidências.
Durante a pandemia de Covid-19, o que se viu – e ainda se vê – foram médicos enxergando “correlações” como “relações de causa e efeito”. Não à toa, muitos profissionais passaram a propagar a desnecessidade do uso de máscaras, a desdenhar o papel dos imunizantes e a prescrever medicamentos sabidamente inúteis, quando não potencialmente danosos.
No Brasil, durante a pandemia de Covid-19, o charlatanismo tornou-se política oficial do governo federal
Outra confusão fez médicos embaralharem “ausência de evidência” com “evidência da ausência”. O popular “kit-Covid”, associação de hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina, eventualmente acompanhada de outras drogas, passou a ser usado à larga, o que fez as vendas desses medicamentos saltarem entre 200% e 500% em um ano, dependendo da região do país.
Dizia-se que, na situação excepcional da epidemia, seria aceitável a utilização dessas drogas com indicação distinta da habitual (a chamada prescrição “off label”). Aqui, no entanto, não se trata de argumentar sobre a “ausência de evidência” da eficácia ou não desse coquetel, pois está bem documentada a “evidência da ausência” do seu papel terapêutico, descartado por entidades respeitadas mundialmente como o CDC (Centro para o Controle e Prevenção de Doenças) e os INH (Institutos Nacionais de Saúde), dos EUA, e a EMA (Agência Europeia de Medicamentos).
Por razões político-ideológicas ou mera ignorância, médicos argumentaram que pacientes “tratados” com cloroquina sobreviveram à Covid-19. Poderiam dizer o mesmo de pacientes “tratados” com água de coco ou tubaína, um popular refrigerante brasileiro à base de guaraná.
É o caso de relembrar o que escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade, em 1980: “Estou confuso e difuso, e não sei se jogo pela janela os remédios que médicos, balconistas de farmácia e amigos dedicados me receitam, ou se aumento o sortimento deles com a aquisição de outras fórmulas que forem aparecendo, enquanto o Ministério da Saúde não as desaconselhar. E não sei, já agora, se se deve proibir os remédios ou proibir o homem. Este planeta está meio inviável”
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