CANADÁ REVÊ SEU PASSADO ASSIMILACIONISTA

 

Fernanda Fogaça Dourado

(Mestranda em Conflito, Segurança e Desenvolvimento na Universidade de Sussex)
16 de agosto de 2021

 

O Canadá é referência mundial de país desenvolvido e atualmente ocupa a 16ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU (IDH), que considera aspectos como desigualdade, renda e igualdade de gênero. O mesmo IDH mostra seu vizinho, os Estados Unidos, uma posição atrás. No entanto, é raro o Canadá aparecer em noticiários por problemas de segurança, especialmente homicídios provocados pela posse descontrolada de armas de fogo. O Estado canadense tem se caracterizado por uma política externa sólida em prol do multilateralismo, além da defesa da igualdade de gênero e de políticas ambientalistas globais.

Escola Residencial Indiana Kamloops em 1937

Por isso, foram especialmente chocantes as denúncias publicadas nas últimas semanas, quando o país ganhou manchetes mundo afora após a descoberta de centenas de sepulturas não identificadas próximas a escolas religiosas dedicadas a assimilação de crianças indígenas. A descoberta não foi casual, mas sim o resultado de pesquisas realizadas nos espaços dessas Escolas Residências para Indígenas (uma rede de colégios internos), como a Escola Missionária de St. Eugene, investigada pela comunidade de ʔaq’am, da nação Ktunaxa. O que tivemos nas últimas semanas foi a divulgação desses resultados e, por isso, a repetição da notícia, só que em diferentes locais.

Utilizando aparelhos de ondas magnéticas, os pesquisadores e as comunidades das chamadas First Nation têm conseguido rastrear restos mortais de crianças e adolescentes em covas não identificadas próximas às escolas. Até o momento, aproximadamente 1,1 mil corpos não identificados já foram resgatados; apenas na antiga Escola Residencial Indígena de Marieval, que funcionou de 1899 a 1997 na província de Saskatchewan, foram 751 túmulos. Há estimativas de que 15 mil crianças tenham sido vitimadas nessas escolas, afirmou uma fonte ao jornal britânico The Guardian.

Aprendemos, com a trágica descoberta, que o Canadá multicultural de hoje era bastante eurocêntrico e racista há apenas 70 anos. Porque a colonização do Canadá não foi diferente do restante do continente, onde generalizou-se a violência contra os povos originários em nome de Deus, para dar espaço ao colonizador europeu. Em toda a América, a mesma associação entre os Estados e as Igrejas Cristãs justificou a imposição de outros modelos culturais e sociais em nome de evangelizar “selvagens que cultuavam demônios”. A mesma destruição até a extinção completa de etnias e suas culturas, até não sobrar nada, por doenças, fome e loucura.

As descobertas fazem parte de um conjunto de esforços empreendidos pelos descendentes desses ameríndios, com o intuito de obter reconhecimento para sua posição de espoliados pela colonização. Lá, como aqui, os índios são vítimas de forte preconceito, tratados como tolos e inferiores, vivendo em piores condições que o restante da sociedade.

 

Colonização, evangelização e aculturação

Por muito tempo, “Canadá” era a colônia francesa do Quebec. Os britânicos chegaram no final do século XVIII, depois da Guerra dos Sete Anos, e lá ficaram até 1967. Foram eles os responsáveis pela expansão do território até o Oceano Pacífico, com seus povos das pradarias geladas, e pelas terras do Ártico, onde vivem os Métis e os Inuits.

A dominação colonial britânica coincidiu com o estabelecimento dos colégios internos para crianças ameríndias. O primeiro abriu as portas em 1831; o último fechou-as em 1996. Por antiguidade e experiência em aculturação colonizadora, a maioria dessas escolas tinha gestão compartilhada com a Igreja Católica. Mas havia grande número de escolas administradas pela Igreja Anglicana, seguida de Presbiteriana e Metodista.

A progressiva expansão territorial acelerou os contatos com os nativos e, na década de 1920, a metrópole tornou obrigatório o recolhimento das crianças ameríndias junto a esses internatos, com penalização aos pais que não entregassem suas crianças. O objetivo supremacista era apagar as memórias das crianças para impor o sistema de valores europeus. Estima-se que, ao longo desse período, mais de 150 mil crianças tenham sido arrancadas de seus pais, muitas vezes para sempre.

Localizadas geograficamente em pontos distantes dos territórios indígenas, assim como das grandes cidades, os internatos podiam mais facilmente cumprir o papel de separar fisicamente as crianças de suas culturas. A distância tornou as escolas ambientes propícios para abusos. Parte significativa das mortes identificadas ocorreu por conta de abusos físicos, emocionais e sexuais, assim como devido a doenças e negligência.

Ao longo do tempo, foram mais de 130 internatos administrados conjuntamente pelo governo canadense e as diferentes igrejas, cabendo ao Estado o papel de financiador e a responsabilidade por estabelecer os parâmetros de cuidado e supervisão regular dessas escolas. Em seu auge, 1931, existiam 80 desses colégios internos funcionado. Eles são a prova irrefutável da existência de uma política oficial de assimilação dos ameríndios por parte do Estado canadense, na época colonial e mesmo pós-independência, que configuram situações de etnocídio.

 

“Quando cortaram o meu cabelo…”

Chegando às escolas, as crianças recebiam novos nomes, por vezes apenas números,  acompanhados de mudanças visuais significativas, com a troca por roupas europeias e a raspagem do cabelo masculino. Esse processo tinha grande significado, por apagar qualquer traço visual que remetesse à cultura originária, uniformizando costumes de acordo com o padrão cristão europeu.

O corte do cabelo, por exemplo, carregava consigo uma brutal violência simbólica, como explicou Barry Kennedy, um ex-aluno da escola Marieval, na citada entrevista ao The Guardian. Seu cabelo foi raspado assim que ele chegou na instituição, logo após ter sido retirado da casa de seus pais. É uma história muito parecida com a descrita por Daniel Kennedy (Ochankuga’he) em seu livro de memórias publicado em 1972, e resenhado na Enciclopédia Canadense.   

“Em 1886, com a idade de 12 anos, fui laçado, amarrado e levado para a Escola de Governo em Lebret. Seis meses depois de me matricular, descobri, para minha tristeza, que havia perdido meu nome e um nome em inglês tinha sido marcado em mim em troca … “Quando você foi trazido para cá [o intérprete da escola me disse mais tarde], para fins de inscrição, perguntaram o seu nome e, quando você o disse, o diretor comentou que não havia letras no alfabeto para ‘soletrar o nome deste pequeno pagão’ e que nenhuma língua civilizada poderia pronunciá-lo. ‘Nós vamos civilizá-lo, então vamos dar-lhe um nome civilizado’, e foi assim que você adquiriu um nome de homem branco.”

Cumprindo a promessa de civilizar o pequeno pagão, eles começaram a trabalhar e cortar fora as minhas tranças, o que, aliás, de acordo com o costume tradicional Assiniboine, era um sinal de luto – quanto maior o grau de parentesco, mais rente era o corte. Depois do corte de cabelo, perguntei-me em silêncio se minha mãe havia morrido, pois cortaram meu cabelo rente ao couro cabeludo. Eu me olhei no espelho para ver como eu era. Uma abóbora Halloween olhou para mim e foi isso. Se isso era civilização, eu não queria fazer parte dela. Eu fugi da escola, mas fui capturado e trazido de volta. Fiz mais duas tentativas, mas sem melhor sorte.”

Raspagem de cabelo de crianças na Escola Residencial Shingwauk 

 

Comissão da Verdade e Reconciliação       

Os povos indígenas sempre denunciaram essas violências, mas demoraram muito tempo esperando pelo reconhecimento de suas queixas. Apenas na década de 1970 foram aceitas as primeiras denúncias e, muito lentamente, as escolas foram sendo fechadas, até 1996.  

Nos anos 1990, os então adultos que passaram por essas escolas se uniram para lutar pelos seus direitos, sobretudo o direito à memória. Instaurar inquéritos para investigar os crimes sistemáticos cometidos nessas escolas foi sempre uma exigência. A resposta só veio em 2005, quando o governo federal e representantes das Igrejas aceitaram abrir o tema. Mas ainda foram necessários mais três anos para que houvesse um pedido de desculpas oficial do governo, além da criação de uma Comissão da Verdade e Reconciliação do Canadá, que trabalhou recolhendo testemunhos de centenas de sobreviventes.

Este “tribunal” ganhou destaque por ser um caso incomum, no qual a Comissão não resultava do fim de uma ditadura, mas como resultados das ações judiciais encaminhadas pelas vítimas. O relatório final da comissão registra 4,1 mil crianças (identificadas ou não) vítimas desse sistema escolar.

O resultado geral dos trabalhos da Comissão da Verdade desagradou os povos da First Nation (como eles costumam ser designados). Primeiro porque, apesar do abundante material recolhido na forma de depoimentos, as conclusões apresentadas parecem não ter dado muito peso a esse rico material. Depois, porque as propostas de reparação financeira foram percebidas como aviltantes, como se houvesse uma precificação de seus traumas.

A sugestão de compensações materiais de baixos valores em nada pode alterar as condições de vida dessas comunidades, que carregam consigo a condição de minorias mais discriminadas no Canadá. Como na maior parte do continente americano, as nações indígenas integradas e urbanizadas sofrem processos de degradação permanente de seus modos de vida, habitando vilas sem saneamento básico e acesso a água potável. Problemas como alcoolismo, depressão e suicídios podem ser observados igualmente, bem como o aumento de casos de prostituição e violência contra as mulheres, antes incomum entre eles.

O processo foi traumático não apenas para os pequenos. Ele também será duradouro em todas as comunidades atingidas porque avós e pais também ficaram socialmente perdidos em suas culturas, configurando o que se descreve como trauma transgeracional. O Chefe Nacional do Congresso dos Povos Aborígenes, Elmer St. Pierre, comentou em entrevista à CBS News, a propósito dos últimos túmulos revelados: “Está claro que o Canadá encontra-se apenas nos estágios iniciais desse ajuste de contas público com sua história de escolas residenciais”.

 

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