A pandemia do novo coronavírus têm jogado luz sobre a vulnerabilidade dos imigrantes em lugares como Cingapura, onde esses trabalhadores e trabalhadoras que garantem o funcionamento da sociedade se tornaram as maiores vítimas da doença e, para piorar, alvo de xenofobia.
No final do século XX, a globalização deu impulso a um fenômeno observável em alguns países cujas populações não ultrapassam a unidade do milhão. Foi a possibilidade de se inserirem na economia mundial, em sua nova divisão internacional do trabalho, como fornecedores de mão de obra qualificada para a revolução tecnológica. São cidades-Estado como Hong Kong (hoje, reincorporada à China) e Cingapura, com pequenos territórios e elevadas densidades demográficas, cujas populações foram beneficiadas pelas mudanças nos padrões de vida e consumo.
Cingapura situa-se na extremidade sul da península malaia. A cidade separou-se da Malásia, tornando-se um Estado soberano, em 1965. Cerca de 74% de sua população de 5,7 milhões é formada por chineses étnicos e A minoria mais significativa é a dos malaios étnicos (13,5%).
Quando a pandemia do coronavírus atingiu a cidade-Estado, no início de março, não chegou a ser surpresa o sucesso obtido pelas ações sanitárias do governo, que asseguraram um reduzido número de vítimas, como estava acontecendo na Coreia do Sul e em Taiwan.
O coronavírus, no entanto, ainda não teve tempo de aprender sobre nacionalismos e não ignorou, como fez o governo, os cerca de 1,4 milhão de trabalhadores estrangeiros que lá vivem. Esses imigrantes, quase um quarto da população total, não têm cidadania e são classificados como “residentes permanentes”. Eles formam uma força de trabalho absolutamente indispensável. Contudo, quando o coronavírus chegou, as autoridades nem sequer se preocuparam em fornecer-lhes informação ou meios de prevenção.
Fonte: Deutsche Welle
A cidade-Estado situa-se numa pequena ilha costeira. Os trabalhadores imigrantes vivem longe do centro comercial, nas periferias, em alojamentos coletivos próximos às zonas industriais. O resultado da negligência do governo: um aumento dramático no número de mortos por covid-19 nas últimas semanas, entre os trabalhadores estrangeiros.
Os números são dramáticos. Em meados de março, o país apresentava 266 mortos; em abril, segundo o mapeamento realizado pela Universidade John Hopkins, os óbitos saltaram para 12.075. Entre mil infectados identificados em um único dia, cerca de uma dúzia eram cidadãos nascidos em Cingapura. Todos os demais eram estrangeiros.
Agora, o governo corre para controlar a disseminação da doença. Isolou os alojamentos desses trabalhadores, restringindo duramente a circulação. Mas nada fez para melhorar as precárias condições de saúde vigentes em muitos deles, sujeitos à superlotação, limitando-se a exigir limpezas mais frequentes. O governo também realizou grande número de testes entre os trabalhadores, transferindo os pacientes sintomáticos para instalações dedicadas à quarentena. E, diante de um aumento de manifestações xenófobas e racistas, o ministro de Assuntos Internos e Direito, K. Shanmugam finalmente surgiu frente às câmeras para condená-las.
O repique da pandemia em Cingapura vitimou essa massa de pessoas semi- invisíveis, normalmente ignorada pelo poder público, e também revelou outra forma de desigualdade social profunda gerada pela mesma globalização: o deslocamento transfronteiriço de pessoas em busca de oportunidades de trabalho, naqueles setores que empregam mão de obra pouco qualificada e barata. Essa massa de imigrantes geralmente está à margem de qualquer tipo de proteção trabalhista ou social e a pandemia do coronavírus está deixando isso evidente.
Se até agora a sociedade de Cingapura podia conviver com essa situação sem se sentir diretamente afetada pelo problema, a crise sanitária muda o cenário. A opinião pública percebe, enfim, que muitos desses trabalhadores circulam nos mesmos espaços dos cidadãos nacionais, na condição de empregados. E esses, da construção civil, limpeza, entregas e similares, ainda podem se considerar sortudos por terem uma cama para chamar de sua.
Situação mais precária encontram as mulheres imigrantes. Milhares delas atuam como trabalhadoras domésticas e deparam-se agora com duas situações.
Na primeira, são dispensadas das casas onde trabalham e, geralmente, residem. Muitas estão sendo alimentadas por caridade e abrigadas por instituições – supostamente com alguma ajuda do governo, o que alguns dizem não estar acontecendo. A segunda possibilidade é cruzar a linha tênue sobre a qual muitas já normalmente caminham, deslizando do trabalho doméstico para a condição de escravidão doméstica – uma tragédia que afeta parcela significativa das mulheres imigrantes.
Cingapura é um “tigre asiático”. Assim foram denominados os países do leste e sudeste asiático que, impulsionados pelo crescimento da economia japonesa desde os anos 1970, converteram-se em plataformas de exportações e, no caso, de Cingapura e Hong Kong, pólos financeiros e bases de empresas multinacionais. Hoje, Cingapura apresenta um dos PIB per capita mais altos do mundo e as estatísticas ficam lindas nas fotografias. Nelas, não aparecem as formiguinhas superexploradas por salários aviltantes.
Fonte: Ministério do Exterior de Cingapura
Sem salário mínimo, a média mensal recebida por um trabalhador imigrante fica entre US$ 400 e US$ 465, enquanto o salário médio mensal dos cidadãos gira em torno de US$ 3 mil, de acordo com dados fornecidos por reportagem da CNN. A maioria deles veio da vizinha Malásia, da China, da Índia, da Indonésia ou do Paquistão, na esperança de enviar dinheiro para suas famílias. Seu estilo de vida contrasta fortemente com a elite rica e os trabalhadores financeiros do país.
Existem ainda os imigrantes indocumentados, outros milhares. Uns porque caíram nas mãos de redes de “atravessadores” e “facilitadores de vistos”, aos quais pagaram – às vezes todas as parcas economias familiares – para terem a chance de imigrar. A história deles termina com salários muito menores que os prometidos, condições de trabalho insalubres, documentos retidos por empregadores, temor de ser deportado como represália por denúncias ou reivindicações. Um circo de horrores bem conhecido pelas autoridades de Cingapura, já fartamente descrito pela imprensa e por entidades de direitos humanos.
E existem os indocumentados por vontade própria, aqueles que vivem nas sombras e só buscarão as autoridades médicas ou sanitárias quando sua condição física se tornar insuportável. Como alcançar tais pessoas para informá-las, preveni-las, ou assisti-las em uma pandemia como essa? Como evitar que sigam trabalhando como se tudo estivesse bem, pois precisam do dinheiro e sabem que serão expulsas se forem oficialmente localizadas?
As desigualdades sócio-econômicas se manifestam de diferentes maneiras pelo globo, mas o resultado é o mesmo: serão os pobres os mais atingidos, seja pela mortalidade da doença, seja pela miséria decorrente da recessão que já se contabiliza. As quarentenas estabelecidas pelos governos nos países marcados por grandes desigualdades sociais expõem as diferenças entre a massa de pobres lançada ao risco da fome e o restante da sociedade que dispõe de reservas financeiras e da opção de trabalhar em casa.
Em Cingapura, trata-se de encarar a hipocrisia de uma sociedade bipartida, que se dá ao luxo de ignorar a pobreza dentro do próprio país porque ela é “estrangeira” e carrega os signos clássicos que alimentam a xenofobia: diferenças de aparência física e hábitos culturais. Uma reportagem do jornal South China Morning Post comentou uma carta publicada em chinês, num grande veículo de Cingapura, na qual o missivista culpava os hábitos de vida de trabalhadores estrangeiros por espalharem o vírus. “Muitos deles vêm de países atrasados”, queixou-se o missivista, partindo para a acusação: “Eles gostam de se reunir e têm pouca higiene pessoal. Os trabalhadores migrantes não são responsáveis por esse estado em que estão agora?”. Outros pedem a expulsão dos estrangeiros porque, com “suas mortes”, estariam prejudicando a imagem externa do país.
A xenofobia na China contra imigrantes africanos tem obrigado as autoridades policiais a intervirem – menos para defender a integridade dos imigrantes e mais para defender a imagem do Estado chinês na África
Os imigrantes de Cingapura não são os únicos que sofrem com a discriminação dos locais. Imigrantes de origem africana que trabalham na China, especialmente na província de Guangzhou, também têm sido alvos de agressões físicas e verbais, às vezes expulsos de suas moradias com alugueis já pagos e tratados como culpados pela epidemia.
A forte reação de governos africanos obrigou as autoridades chinesas a virem a público para repudiar essas atitudes, reafirmar os laços de cooperação que ligam a China ao continente africano e, claro, acusar a imprensa ocidental de distorcer os fatos. Para quem reclama da discriminação (real) da qual os chineses são vítimas mundo afora…
O fato é que a pandemia de coronavírus tem demonstrado que, assim como nas pandemias do passado, os mais pobres, os trabalhadores menos qualificados serão os mais atingidos. E hoje, no mundo globalizado, os trabalhadores imigrantes são duplamente vulneráveis: à doença e à xenofobia.
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