A xenofobia emergiu mais uma vez, sob o pretexto da pandemia. Em 20 de abril, Donald Trump tuitou o seguinte:
“À luz do ataque do Inimigo Invisível, bem como da necessidade de proteger os empregos de nossos GRANDES cidadãos americanos, assinarei uma Ordem Executiva para suspender temporariamente a imigração aos Estados Unidos!”.
O “inimigo invisível” converte-se, desse modo, no amigo oculto do presidente americano. A emergência sanitária – a “guerra contra o vírus”, como gostam de dizer tantos líderes em busca de poderes de exceção – transmuta-se em argumento para iniciativas políticas ensaiadas bem antes do salto biológico do novo coronavírus de um animal silvestre para um ser humano.
A senadora democrata Kamala Harris registrou o óbvio: Trump mobiliza a epidemia para avançar sua política anti-imigração. Ali Noorani, diretor do Fórum Nacional de Imigração dos EUA, observou que o presidente escolhe os imigrantes como o alvo “mais fácil para culpar”. Por seu lado, o deputado republicano Paul Gosar, do Arizona, solicitou que a imigração seja impedida até que “cada americano que quer um emprego o consiga”. A iniciativa “temporária” durará indefinidamente – isso é o que querem os nacionalistas xenófobos.
A Ordem Executiva foi assinada três dias depois do tuíte. Ela suspende a emissão de green cards, o documento que confere a imigrantes residência permanente e o direito a solicitar cidadania, inicialmente por 60 dias.
Os impactos recaem, principalmente, sobre imigrantes com green card que patrocinam solicitações do documento por seus familiares. A medida também paralisa a Loteria de Diversidade de Vistos, que distribui anualmente cerca de 50 mil green cards. O prazo de suspensão pode ser estendido em função do objetivo de “assegurar que americanos desempregados serão os primeiros da fila por empregos, enquanto nossa economia reabre”, segundo explicou o presidente.
Green card, o visto de residência permanente nos EUA
Os 60 dias são deliberadamente ilusórios. Atualmente, em função da pandemia, a maioria dos consulados fechou as portas ou, ao menos, interrompeu o processamento de pedidos de green cards. Assim, na prática, os efeitos práticos da Ordem Executiva só começarão a ser sentidos no horizonte de várias semanas ou meses, o que implicará, logicamente, a renovação da suspensão. O muro da fronteira vai sendo substituído por uma muralha legal construída com os tijolos da emergência sanitária.
Na história dos EUA, o discurso xenófobo adquiriu colorações econômicas após o crash da Bolsa de Nova York, em 1929. A década de 1930 conheceu uma aliança entre os nativistas e os sindicatos destinada a conter a imigração mexicana. Naquele período, surgiu a acusação de que os imigrantes “roubam os nossos empregos”.
O tema dos empregos, associado ao da imigração, retornou ao centro do palco na década de 1970, com o governo de Richard Nixon, que o conectou também à “guerra às drogas”. Depois, a ênfase da xenofobia deslocou-se para a esfera do terrorismo e da segurança nacional, especialmente após os atentados do 11 de setembro de 2001.
Trump nada inventa de novo. De fato, recupera um fio discursivo antigo articulado em torno do nacionalismo econômico. A proteção dos “nossos empregos” diante da Grande Depressão, 90 anos atrás, ganha uma versão adaptada para a nova depressão econômica que se anuncia com a emergência sanitária.
A suspensão de green cards afeta a imigração legal. Ao longo de 2019, os EUA emitiram cerca de um milhão de green cards. O Migration Policy Institute, centro de estudos americano, estima que as medidas de Trump reduzirão em 110 mil a concessão desses vistos de residência permanente no período de dois meses. A provável extensão do congelamento de emissões teria impactos ainda maiores.
Trump em coletiva de imprensa durante a crise do coronavírus, em abril de 2020. Ao fundo, a epidemiologista Deborah Birx. Para ela, o vírus é o inimigo. Para ele, o inimigo são os imigrantes
Do ponto de vista jurídico, Trump pode se apoiar na Lei de Imigração e Nacionalidade, assinada em 1965, por Lyndon Johnson, aos pés da Estátua da Liberdade.
Ironicamente, a lei surgiu na esteira da Lei dos Direitos Civis, de 1964, para encerrar as políticas restricionistas de cotas de imigração adotadas nos anos 1930. Mas ela concede ao presidente a prerrogativa de barrar a entrada de qualquer grupo rotulado como “prejudicial” aos interesses americanos.
Do ponto de vista político, Trump acena à sua base eleitoral, às vésperas de uma eleição que girará em torno da emergência sanitária e de suas implicações para a economia e os empregos. O presidente culpa a China pelo vírus. Seu gesto de congelamento da concessão de green cards é parte de um esforço para culpar os imigrantes pelo desemprego. Xenofobia, com pretexto astuto.
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