Dresden, o nome de uma cidade, é também o signo de um dos mais mortíferos bombardeios incendiários da história. A capital da Saxônia, na Alemanha, foi arrasada por quatro ondas de bombardeios aéreos, entre 13 e 15 de fevereiro de 1945, conduzidas por 722 aeronaves da RAF britânica e 527 da USAF americana. Quantos morreram? A pergunta está no centro de uma disputa política pela interpretação histórica do evento.
Cadáveres amontoados diante dos edifícios destruídos de Dresden após os bombardeios de 13 e 14 de fevereiro de 1945. (Deutsches Budesarchiv)
O tema é delicado. A “higiene racial” foi introduzida como disciplina acadêmica em Dresden em 1920, bem antes da chegada de Hitler ao poder. A cidade se tornaria uma das principais fortalezas do nazismo, a tal ponto que, em 1935, mais de 20 mil funcionários políticos do regime nela trabalhavam. O bombardeio inscreve-se na lógica da guerra contra o sistema que promoveu o Holocausto. Ao mesmo tempo, o deliberado extermínio em massa de civis foi um crime de guerra. Como abordar os dois lados de uma moeda trágica?
No aniversário de 75 anos do bombardeio, o presidente alemão Frank-Walter Steinmeier procurou o caminho do equilíbrio: “Quando, hoje, lembramos a história da guerra de bombardeios em nosso país, lembramos ambos: o sofrimento das pessoas nas cidades alemãs e o sofrimento que os alemães infligiram aos outros”. Foi adiante: “Não esquecemos. Foi a Alemanha que iniciou aquela guerra horrível e, de fato, foram milhões de alemães que a conduziram – não todos, mas muitos movidos pela convicção.”
Steinmeier alertou para que não se trivialize o sofrimento das vítimas civis de Dresden e para que não se fale em “justa punição”. Mas, no mesmo trecho de seu discurso, colocou o debate sobre o crime de guerra no contexto apropriado: “A questão da culpa dos Aliados deriva para atalhos errados se ela é formulada com a finalidade de relativizar a culpa alemã”. Eis o ponto crucial, que remete à produção de uma (falsa) narrativa persistente.
No 15 de março de 1945, um relatório da SS de Dresden informou a Berlim que a contagem das vítimas fatais chegara ao número de 18.375, uma cifra tendente a se elevar até algo como 25 mil. Dias mais tarde, porém, o Ministério da Propaganda dirigido por Joseph Goebbels começou a divulgar números entre 100 mil e 200 mil, destinados a sustentar a narrativa de um “monstruoso ataque terrorista”.
Ruínas da Frauenkirche, a igreja luterana de Dresden erguida no século XVIII, com uma das maiores cúpulas da Europa. (Deutsches Budesarchiv)
Jornais alemães mencionaram as cifras de Goebbels, que teriam convertido a mortandade de Dresden numa carnificina superior ao do bombardeio nuclear de Hiroshima (80 mil mortos pela explosão original), meses depois, em agosto. No 22 de março, a Ordem do Dia da SS de Dresden mencionou 202.040 vítimas fatais – e acrescentou que a cifra final chegaria a cerca de 250 mil. Investigações posteriores revelaram que o documento tinha sido falsificado: alguém inserira um zero a mais.
Os cálculos oficiais provocaram incredulidade. Apontou-se, sobretudo, que a população total de Dresden girava em torno de 600 mil. Fontes do regime retrucaram com argumentos variados, como o influxo de refugiados do leste para a cidade, a incineração imediata de dezenas de milhares de vítimas pelo calor do fogo ou o enterro oculto de incontáveis cadáveres nas ruínas. Mas a contabilidade nazista ganhou novas vidas, pois serviria a múltiplos propósitos políticos.
Durante a Guerra Fria, o movimento pacifista europeu, engajado no combate à corrida armamentista, reproduziu a falsificação original. O número colossal de mortos foi apropriado, também, pelos organizadores das manifestações contra outros crimes de guerra, como os bombardeios americanos no Vietnã, na transição da década de 1960 para a de 1970, e a campanha aérea dos EUA no Iraque, em 2003. Na Alemanha, contudo, a contabilidade nazista da tragédia de Dresden sempre serviu aos nostálgicos do nazismo.
No início da década de 1960, David Irving, que se tornaria um dos arautos do negacionismo do Holocausto, classificou o bombardeio de Dresden como um “ato de terror sem sentido” e repetiu as cifras emanadas de Goebbels. À época, e nas décadas seguintes, veículos de imprensa respeitados, como a revista alemã Der Spiegel, legitimaram seus argumentos e cifras.
Finalmente, em 2004, o prefeito de Dresden, Ingolf Rossberg, reagindo às campanhas de revisionismo histórico da extrema-direita, criou uma comissão de historiadores dedicada a examinar a tragédia. O trabalho exaustivo, dirigido pelo historiador militar Rolf-Dieter Muller, durou vários anos e concluiu que, no máximo, morreram 25 mil pessoas durante os bombardeios incendiários.
O veredito dos historiadores jamais foi seriamente contestado, mas em nada alterou o discurso da extrema-direita alemã. Os nacionalistas xenófobos da Alternativa para a Alemanha (AfD) e os neonazistas do Pegida marcham ritualmente, desde 2015, nos aniversários do bombardeio, ecoando a falsificação nazista. O propósito, como explicou Steinmeier, é “relativizar a culpa alemã” – ou seja, normalizar o regime hitlerista e seus crimes contra a humanidade.
Dresden em meados do século XVIII, vista da margem direita do rio Elba, em óleo sobre tela de Bernardo Bellotto. O domo da Frauenkirche aparece atrás da ponte
A Frauenkirche, igreja luterana de Dresden, edifício icônico da antiga cidade, foi reconstruída entre 1993 e 2005. O banqueiro judeu Henry Arnhold, cuja família foi expropriada pelos nazistas e exilou-se nos EUA em 1942, fez uma das mais vastas doações para a obra de 180 milhões de euros. Martin Roth, então diretor das Coleções Estatais de Arte de Dresden, explicou durante a reconstrução que “isso não é apenas um memorial e um alerta, mas um monumento para o futuro”.
O futuro, não o passado, é o que está em jogo no 75º aniversário do bombardeio. Na mesma Dresden das marchas da extrema-direita, surgiu o Arbeitsgruppe 13 de Fevereiro, uma associação independente que reúne lideranças políticas, religiosas e da sociedade civil para repudiar a narrativa do revisionismo histórico. Nos aniversários do bombardeio, ao longo dos últimos dez anos, eles formam uma corrente humana que cerca o centro da cidade. Nos outros dias do ano, promovem a investigação e a educação para desmascarar a lenda de que o regime nazista foi a vítima de uma guerra de terror promovida pelos Aliados.
Nora Lang, uma das sobreviventes do bombardeio, participou da corrente humana, em 13 de fevereiro. “Já tive o suficiente de Nacional-Socialismo. Ele roubou 13 anos da minha vida. Qualquer um que propague essa ideologia não tem boas intenções.”
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